segunda-feira, março 21, 2022

Democratas, ma non troppo…

Ontem, o governo ucraniano decidiu proibir 11 (onze) partidos de esquerda da vida política no pais. Lembrei-me de republicar um texto que aqui coloquei há cerca de sete anos, em abril de 2015. O mundo, afinal, muda pouco

“A decisão ontem anunciada pelas autoridades de Kiev de proibir os símbolos comunistas no país (presumo que com a exceção prática das províncias do Leste) é, com toda a certeza, o primeiro passo para a interdição do próprio Partido Comunista do país. Não me parece que isso seja um bom sinal para a Ucrânia.

Nada, aliás, que seja estranho na antiga União Soviética. Vai para mais de uma década, visitei um determinado país da Ásia Central, integrado numa delegação de cinco embaixadores da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), idos de Viena. Entre os diversos encontros que nos foram proporcionados na capital do país figurava uma mesa-redonda com representantes dos partidos políticos locais.

À volta da mesa, estavam representados aí uns seis ou sete partidos. Cada um deles apresentou-se e definiu o respetivo perfil, ficando claro que estávamos perante um imenso "trompe l'oeil", como o delegado da OSCE já nos tinha alertado. Todas essas formações estavam representadas no parlamento, mas nenhuma delas fez a menor observação crítica ao governo em funções, relativamente ao qual não tinham qualquer objeção visível. Deixámo-los fazer o seu "número" e foram-lhes depois colocadas algumas perguntas por cada um dos visitantes, todos oriundos de democracia ocidentais. Quando chegou a minha vez, não hesitei:

- O representante do Partido Comunista não pôde vir?

Os locais olharam perplexos entre si. Então aquela República tinha-se "libertado" do comunismo e os embaixadores ocidentais, todos de países NATO, onde o comunismo estava bem longe do poder, perguntavam pelos comunistas locais? Imagino se não se perguntavam por que diabo queriam ali comunistas quando o sentido da Guerra Fria fora precisamente derrotá-los.

O "controleiro" da delegação, representante do governo que dirigia a "peça", quebrou o embaraço coletivo e, fixando-me, respondeu com evidente surpresa e não menor firmeza:

- O comunismo acabou neste país. O Partido Comunista foi proibido.

- Peço desculpa, mas tem-nos vindo a ser dito que este país vive hoje em democracia. Como é que podem afirmar isso se não autorizam que uma corrente de opinião como os comunistas se pode organizar e afirmar no vosso sistema constitucional? Os comunistas desapareceram aqui de um dia para o outro? Onde estão? A democracia faz-se precisamente para que todos possam ter o direito à representação política, por muito que não concordemos com eles. Pela minha parte - mas não posso falar pelos meus colegas, naturalmente - tenho de concluir que o vosso regime tem uma falha democrática grave. Tomo nota disso e não deixarei de ter isso em conta no meu regresso a Viena.

Os restantes embaixadores ocidentais que integravam o meu grupo não me pareceram ter ficado muito agradados com a frontalidade da minha tomada de posição. Mas o incómodo foi bem maior entre as figuras locais. No resto da nossa estada nessa "democracia" da Ásia Central fui olhado sempre de soslaio pelos nossos anfitriões. E, regressado a Viena, notei que o respetivo embaixador junto da OSCE tinha esfriado as suas relações comigo. 

No plano económico, o único que poderia suscitar da minha parte alguma contenção em sede de cinismo de "realpolitik", Portugal não tinha o menor interesse nesse distante Estado. E, como costumo dizer, a grande vantagem de um país como o nosso é que, como não tem grandes interesses, pode dar-se ao luxo de ter grandes princípios...”

6 comentários:

Erk disse...

Imaginemos um embaixador estrangeiro em Portugal em 1976 a perguntar pelos representantes partidários dos partidos de direita.

Não que apoie direita. Muito menos extrema direita.

Mas pelo que vou observando da esquerda portuguesa por estes dias, também a eles não...

Luís Lavoura disse...

E há uns meses (antes da guerra) o governo da Ucrânia proibiu a edição de todos os jornais de língua não-ucraniana a não ser que simultâneamente tivessem uma edição em ucraniano. Com uma exceção: jornais numa qualquer língua da União Europeia.

Quer dizer: num país em que 25% da população tem o russo como língua materna, é impossível fazer sair uma publicação em russo. Mas em português ou italiano, pode-se.

Isto é que é democracia liberal à moda da Ucrânia.

Miguel disse...

Mas a proibição de partidos políticos significa que a Ucrânia deixa de poder aderir à União Europeia, ou algo me está a escapar?

aguerreiro disse...

Não devia ter ficado assim tão admirado. por cá passou.se o mesmo. No parlamento saído das primeiras legislativas não constava o partido da União Nacional ou o seu sucedâneo marcelista.
Mas não faltavam deputados/as eleitos que tivessem já passado pelos bancos da Assembleia Nacional.

João Cabral disse...

Mas suspender determinados partidos em tempo de guerra é o mesmo que fazê-lo em tempo de paz? É uma medida de guerra, no quadro da lei marcial, destinada a combater o inimigo. Não tivemos nós também dois anos de excepção por causa da pandemia? Então...
E, como já foi comentado anteriormente, alguém se lembraria de perguntar pelos partidos fascistas em Portugal, que até são proibidos pela Constituição (em democracia e paz)? Oh senhor embaixador... A história explica as idiossincrasias de um povo. Quem sofreu totalitarismos não tolera lições de fora.

Luís Lavoura disse...

Em Portugal também são constitucionalmente proibidos partidos fascistas e partidos regionais.
Um visitante estrangeiro poderia, com espanto, perguntar onde estão os representantes dos partidos madeirenses e açorianos.
Note-se que, por exemplo, na Finlândia existe um partido representativo da população de etnia sueca. E em Israel há diversos partidos representativos da população de etnia árabe.

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