O número no telemóvel, para que tinha olhado, depois de o sentir vibrar no bolso, não era conhecido. Mas, claro, atendeu.
O jantar, no restaurante, mal tinha começado, e começara bastante tarde. O Duarte já tinha trazido as tradicionais empadas para a mesa. O Pedro pediu desculpa aos convivas, levantou-se da mesa, trocou um olhar rápido com a mulher, desceu as escadas e foi atender lá fora. Com a precipitação, até tinha atravessado a sala sem pôr a máscara! Corria um vento húmido, naquela rua de Alvalade.
A conversa foi rápida. “O primeiro-ministro vai telefonar-lhe, daqui a minutos”. A voz era bem conhecida, com poder.
A notícia não era inesperada: desde há dias que lhe tinha chegado, depois de uma discreta sondagem, a indicação de que o primeiro-ministro o poderia vir convidar para um lugar ministerial, ligado à sua especialidade. A circunstância da imprensa nunca ter falado no seu nome seria mesmo bom sinal. Nem o Marques Mendes! “Leite de Noronha: a grande surpresa”, era, com certeza, o que sairia. Mantivera-se mil por cento discreto. E respondeu, com voz que, sem querer, lhe saiu um tanto embargada: “Ele pode ligar quando quiser”. Arrependeu-se de não ter sido mais firme e afirmativo na breve conversa. Afinal, ia ser futuro colega da pessoa que lhe estava a ligar.
Pedro Leite de Noronha regressou à mesa. Pelo caminho, tinha desligado do silêncio o aparelho e colocou o som no máximo. Ensaiou mentalmente o que ia dizer, quando a chamada chegasse: “Muito obrigado pelo seu convite. Terei o maior gosto em integrar o governo e, pode crer, farei o meu melhor”. Ou qualquer outra coisa assim. Sentou-se, recostou-se, olhou para a mulher e fez-lhe, com a cabeça, um leve sinal. A Susana percebeu. Sorriu apenas q.b..
A conversa ia correndo. Era sobre o cerco russo de Mariupol. Os dois outros casais rivalizavam em insultos ao Putin. Ele fez alguns comentários genéricos. Sorriu intimamente: já se sentia a falar com tom de Esrado. Já estava noutra e quase desligou da conversa.
Será que lhe iam impingir alguém do partido como secretário de Estado? Ele tinha o nome de Augusto, uma pessoa com quem trabalhara muitos anos, alguém que gostava de vir a ter a seu lado. Ambos eram independentes. O Augusto - que se chamava Augusto Maria de Saa - fazia muita questão de escrever o apelido com dois “as”: “Saa”. Era uma tradição de família, ligada a um tal Mário Saa, parece que dado às artes. Às tantas, os socialistas eram capazes de preferir que ele assinasse “Sá”, como era costume. Logo se veria! O Augusto seria talvez “um bocadinho PPD de mais”, como ele próprio confessava, mas o primeiro-ministro não parecia ser uma pessoa sectária. Deveria falar-lhe já no nome? Não, tinha de conversar prineiro com o Augusto, que estava a milhas da ideia de ser chamado para governante. Mas que ia adorar!
Pensando bem, era insensato, logo nessa primeira conversa com o primeiro-ministro, tocar no assunto de um “ajudante” (lembrou-se da designação do Cavaco…). Talvez fosse de abordar no dia seguinte, com outra pessoa. Mas com quem? Ou seria cedo? Logo se veria. Caramba! Dava conta de que, apesar de ter passado já a meia centena de anos de vida, era mesmo um novato na política. Ia aprender, rápido, tinha a certeza. Confiança em si mesmo era o que não lhe faltava. A profissão, com sucesso, dera-lhe largo traquejo. E nome, como agora bem constatava.
O jantar foi longo, mais de duas horas. Passava já da meia-noite. Para o Pedro, o tempo foi-se tornando tudo cada vez mais pesado. O telefone não tocava. Na altura da partilha da conta, fez um esgar de desagrado à Susana. Que percebeu que algo estava a correr menos bem.
Já de pé, o Gaspar, que estava a ler o “Público” on line, exclamou: “Já há governo. Diz aqui que o Costa fez esta noite os últimos convites e já deu a lista a Belém. Parece que o Marcelo até fez uma graça e disse que ‘a primavera trouxe um governo novo!’. O tipo é imparável!”
O grupo despediu-se. Entraram os dois para o carro. “Então?”, disse a Susana, com cara fechada. “Disseram para eu esperar uma chamada do Costa, mas nada!”, respondeu o Pedro, com um suspiro, com uma cara cuja palidez a noite não deixava ver.
“Tinhas bateria no telemóvel?”. O Pedro sacou, à pressa, o iPhone 13 Pro do bolso. Estava sem carga. E ele sem cargo.
4 comentários:
Augusto Maria de Saa - fazia muita questão de escrever o apelido com dois “as”: “Saa”. Era uma tradição de família
Além de ser uma tradição de família escrever o nome por forma a armar ao fino, também é a mesmíssima coisa pôr como segundo nome "Maria" a filhos.
o Marcelo até fez uma graça e disse que ‘a primavera trouxe um governo novo!’. O tipo é imparável!”
Marcelo está lamentavelmente senil. É uma coisa trágica vê-lo. Ricardo Araújo Pereira exibe agora, em cada programa, mais uma tirada lamentável da senilidade dele.
Teria sido mais giro o Augusto Maria de Saa ser descendente do grande Bernardo de Sá, herói das Guerras Liberais e mais tarde ministro abnegado, que evita nova guerra civil na Belenzada. Fica a ideia.
Adorei ler o seu relato e li-o de fio a pavio. Aquele senhor, com todo respeito, pecou logo no princípio. Depois do telefonema e de volta á mesa, devia ter informado a esposa, discretamente, do que se estava a passar. Estou certa e segura que logo depois do segredo ao ouvido da esposa esta mesma ter-lhe-ia chamado á atenção sobre a bateria do telefone. Está nos livros "Mulher prevenida vale por três" ;)
Enviar um comentário