quarta-feira, março 09, 2022

Na Ucrânia, em outros tempos


Há pouco, descobri, neste blogue, um texto com 10 anos, sobre uma viagem, em 1980, à Crimeia, que era então ucraniana. 

Dois anos depois da publicação do meu texto, a Crimeia foi ocupada pela Rússia. 

Recupero aqui uma historieta contada nesse texto:

”A Ucrânia é um grande e belo país, com uma relação sempre muito complexa com Moscovo, polarizado política e humanamente entre uma tentação pró-russa e uma dinâmica favorável a uma maior aproximação com o ocidente, maxime com a União Europeia. Por lá se cruzam culturas políticas algo contraditórias, que oscilam entre as dinâmicas autoritárias a leste e os ventos da liberdade que sopram do oeste. 

Fui à Ucrânia, pela primeira vez, há muitos anos, ao tempo em que era parte da União Soviética. Viajando numa baratucha excursão norueguesa, passei uma semana nas praias do mar Negro, com a curiosidade acrescida de poder sentir, com os meus próprios olhos, o ambiente do palácio de Livadia, onde, em 1945, muito do destino que o mundo de hoje ainda anda a viver foi desenhado pelas conversas entre Stalin, Churchill e Roosevelt. 

Sem autorização para sair da cidade mais do que alguns poucos quilómetros, quase sem ter acesso a lojas e com escassos pontos turísticos acessíveis, pouco havia para fazer nessa estranha vilegiatura, numa cidade que já fora deslumbrante e que então sofria de uma decadência sem graça.

Uma tarde, passeando em Ialta, à beira-mar, com ar de uma oriental Riviera datada, demo-nos conta, de repente, de que imensas mulheres que connosco se cruzavam usavam sapatos vermelhos, todos do mesmo tipo. Eram dezenas, sem exagero, umas a seguir às outras. 

Quase por acaso, fomos dar a um grande armazém, o qual, como era de regra na URSS, muito pouco tinha à venda (ainda me arrisco a ser contraditado neste blogue por algum nostágico, que por lá tenha andado de férias pagas pelo "Komsomol"). 

Entrámos, escapando a uma fila de mulheres que, de forma paciente, se formava escada acima, não se percebia muito bem para quê. 

O mistério desfez-se, minutos depois: eram os sapatos vermelhos que "estavam a sair", expressão que, poucos anos mais tarde, muito ouviria em Luanda, nos momentos mais folgados do "socialismo esquemático" (expressão local que significava um tipo de socialismo cujo quotidiano só se podia suportar graças a "esquemas"). Nesse dia, como novidade, só havia à venda esses sapatos vermelhos... 

Estou certo que as belas ucranianas de hoje já não usam sapatos desses, quanto mais não seja porque muitas foram aculturadas a detestar o vermelho.”

3 comentários:

José disse...

Aqui está um bom exemplo dos problemas que afetam a "condição feminina".

Já aos maridos, provavelmente, o único luxo a que podiam aspirar era trocar um macacão sujo por um lavado.

Flor disse...

😁 :)

Lúcio Ferro disse...

Ah, the woman in red, saudades de uma ucraniana, que conheci no antigo Cais do Sodré, à época ela era gerente do Copenhagen, a casa de passe mais romântica de então, muito melhor do que o Liverpool, o Estocvolmo ou o Texas. Muito melhor do que o black tie ou o elefante branco, final dos 90, havia diversidade, o maior perigo era a droga e apaixonei-me por ela, chamava-se Victoria, dormimos juntos e, claro o nosso amor terminou à chapada. Que foi feito, não sei e também pouco interessa.

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