terça-feira, setembro 08, 2020

Os “números” do Avante



Sob palavra de honra, por alguns instantes, quando, no sábado, olhei para este título do “Expresso”, não pensei na Festa da Atalaia. Por uma deformação política geracional, imagino que residual, fiquei com a súbita ideia de que o PCP havia decidido, por uma qualquer misteriosa razão, “esconder” números publicados do seu jornal histórico.

O fascínio pelo “Avante!”, mesmo para quem não era comunista, era uma realidade para muita gente, no tempo da ditadura. Aquele jornal de papel muito fino, que escondíamos de olhares curiosos, fazia parte da mitologia da vida de quem detestava o regime e que, mesmo não concordando em muita coisa com o PCP, reconhecia a importância da sua luta política e a inultrapassável dedicação dos seus militantes.
Tenho uma historieta ligada ao jornal “Avante!”, com o seu quê de caricato, ocorrida logo após o 25 de abril.

Estávamos em 6 de Maio de 1974. Num jornal diário, surgiu a notícia de que o PCP iria abrir a sua primeira sede, numa certa noite, na rua António de Serpa (aquela que iria ficar eternamente crismada, na memória política portuguesa, como "a António Serpa", simplificando o nome do poeta), a sede central que viria a ser substituída pela Soeiro Pereira Gomes.

Na notícia, dizia-se que o partido, por essa ocasião, iria pôr à venda exemplares de documentos clandestinos editados durante a ditadura, em especial exemplares do “Avante!” e do órgão doutrinário “O Militante”. 

Eu era, à época, um colecionador dedicado de publicações desse género, não apenas do PCP mas de toda a parafernália de formações políticas anti-ditadura que então existia, dispondo de uma apreciável coleção, a qual, naturalmente, ficaria muito enriquecida com o que o PCP viesse a disponibilizar.

Assim, ao princípio dessa noite, apresentei-me no segundo andar esquerdo do nº 26 da avenida António de Serpa, em Lisboa. 

Atenderam-me com simpatia, dizendo-me que teria de aguardar por alguém, o responsável que ia pôr o material à venda. Os minutos foram, entretanto, passando. As salas, quase vazias de móveis, começaram a encher-se de pessoas, que se iam reconhecendo entre si. 

Eu tentava imaginar os encontros anteriores dessa gente, figurava as suas atividades no mundo clandestino dos comunistas, presumia alguns nas batalhas eleitorais em que se haviam envolvido, do MUD e de Norton de Matos a Humberto Delgado, de Ruy Luis Gomes à CDE. Mas, por muito que procurasse, nessas caras, figuras que tivesse encontrado no II Congresso Republicano de Aveiro, na célebre sessão do Palácio Fronteira ou por ocasião da Plataforma de S. Pedro de Muel, eu não conhecia ninguém. E continuava por ali sozinho. 

A certo momento, dei-me conta do ridículo da situação. Com efeito, ali estava eu, por um motivo mais do que fútil, numa festa que não era minha e que, para aquelas pessoas, era uma verdadeira ocasião histórica. É que aquela era a data em que um partido que entrara na clandestinidade 48 anos antes, cujos militantes haviam sofrido como nenhuns outros a violenta repressão da ditadura, abria, na legalidade, a sua primeira sede. E eu era, nesse evento, um verdadeiro intruso. 

Começava a ter a sensação, porventura exagerada, de que essa minha solidão já deveria estar a ser olhada, com estranheza, por alguns. É que eu não procurava estabelecer contactos, com receio que alguém me perguntasse qual era a minha relação com o partido, que não era nenhuma. Discretamente, fui-me aproximando da porta de saída.

Foi então que dei, de frente, com uma cara conhecida, um antigo quadro do movimento associativo de Medicina, que eu cruzara em várias "guerras" universitárias, que todos dávamos então como ligado ao PCP. Olhou para mim, com algum espanto, sabedor que aquela não era a minha "praia" política, seguramente perplexo com a minha presença no seio dessa festa do seu “Partido" - como, à época, a maioria de nós designava o PCP. 

Imagino a risível figura que eu devo ter feito, quando lhe revelei: "Vinha aqui comprar "Avantes!" antigos, que li que iam ser postos à venda...". E saí, escada abaixo.

5 comentários:

João Cabral disse...

Fez-me lembrar certa vez em que havia uma festa, aberta ao público, numa secção do PCP com iguarias do Leste. Prestes a ir, fui prontamente avisado por uma amiga, comunista ferrenha, de que com a indumentária escura de laivos militares que carregava, não lá entraria. E pronto, nem pus o pé na entrada. Coisas de cliques.

alvaro silva disse...

Estas "adorações do santíssimo" eram surreais vistas com os olhos de hoje, a reverência dos crentes era obra. Foi nessa altura que o Avante renegou a "ditadura do proletariado" e se "aburguesou" como diria o MRPP. Hoje 45 anos passadoe e muitaágua corrida debaixo das pontes se conclui que estão cada vez mais agnósticos e ricos.

aamgvieira disse...

Os complexos de esquerda são o anátema da pequena burguesia pós mfa, não se percebe o misto de idolatria e "ódio" por um sistema nascido da mesma raiz do nazismo.....aberrações que nunca compreendi.....

Anónimo disse...

As gerações que nasceram para a política com o 25 de Abril têm alguma relutância em enterrar o PCP ( já extinto na Europoa), ao qual continuam a dedicar uma certa reverência histórica. Quanto mais o PCP definha, desorientado, mais carinho essas pessoas lhe dedicam. E talvez se justifique agora algum espírito de colecionador, porque as coisas do PCP vão passar a ser relíquias.

Anónimo disse...

Num país em que um professor universitário especializado no estudo da Direita leva porrada em público por fazer o seu trabalho, colecionar números do Avante não tem qualquer problema.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...