domingo, setembro 27, 2020

Eu e o infinito


Eu não teria mais de quatro anos. Na saleta da “casa das tias”, irmãs da minha avó que viviam nas Pedras Salgadas, alguém analisava, em pormenor, fotografias antigas, com a ajuda de uma lupa.

O meu tio Fernando tinha-me mostrado, minutos antes, no terraço, como era possível incendiar um jornal com a lupa, posta ao sol. Eu estava fascinado com o instrumento, mas ninguém me deixava usá-lo, com medo de que eu o partisse.

“Posso ir com a lupa à cozinha? É só para ver uma coisa”, pedi eu, imagino que sem grande esperança. E tinha razão: ninguém permitia que eu tocasse na lupa.

A minha mãe, que sempre recordava esta história, dizia que me viram então desaparecer lá para dentro e, instantes depois, surgir com uma lata de fermento Royal na mão. “Quero ver esta lata com a lupa, para saber quantas latas lá estão”.

Passado um instante de perplexidade coletiva, todos compreenderam. O que eu pretendia era descobrir o mistério do rótulo, onde surge representada uma outra lata que, por sua vez, traz a imagem de outra, e por aí adiante.

“Ah! Queres descobrir o infinito?”, disse o meu pai. “Aqui na lata ele acaba cedo, mas se se colocar um espelho em frente ao outro, pode-se ir muito mais longe”.

O que ele foi dizer! Nunca tinha ouvido falar do infinito, mas logo esqueci a lupa, não descansando enquanto não se montou ali uma operação com dois espelhos paralelos. Para eu ver o infinito. E vi, claro.

Do que nos lembramos quando, num restaurante, como hoje me aconteceu, a conta chega numa lata de fermento Royal!

10 comentários:

jj.amarante disse...

Que história tão interessante! Até me levantei para verificar se existia alguma dessas latas Royal na minha despensa mas não havia, ultimamente temos feito poucos bolos em casa...

jj.amarante disse...

E não resisti a referir este post no meu blogue: https://imagenscomtexto.blogspot.com/2020/09/a-descoberta-do-infinito.html

Manuel disse...

esperemos que não tenha sido uma conta infinita.

Portugalredecouvertes disse...

Quem terá começado primeiro, o fermento Royal ou a Vache qui rit?!
http://www.ecoles.cfwb.be/ismchatelet/fralica/style/pages/abyme/gal.htm

Dulce Oliveira disse...

Que delícia de história
Tive exactamente a mesma dúvida, só que lá em casa não havia lupa

António Moreira disse...

Uma pergunta indiscreta: por acaso as tias não moravam à entrada do parque numa bonita moradia com um jardim colorido? É que sou natural das Pedras e na minha juventude as meninas do parque eram conhecidas em toda a terrinha.

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro António Moreira. Não, as minhas tias moravam na “versão” anterior da primeira casa do lado esquerdo, no caminho que segue para São Martinho. Eram já de uma certa idade nos anos 50. Retratei-as aqui: https://ou-quatro-coisas.blogspot.com/2017/04/saudades-nossas.html

António Moreira disse...

Ok Francisco. Lembro-me vagamente dessa casa a caminho do cemitério até porque o meu avô tinha uma pequena propriedade por ali que foi depois vendida ao padre Domingos para sli construir uma garagem para estacionar o carro quando ia rezar missa na capela no largo. Não sei se a capela ainda existe pois já não vou as Pedras há muito.

Corsil Mayombe disse...

Na infância todos passam pela fase do "little Sherlock Holmes".

Flor disse...

https://beachpackagingdesign.com/boxvox/7-quotes-about-royal-baking-powder

Poder é isto...

Na 4ª feira, em "A Arte da Guerra", o podcast semanal que desde há quatro anos faço no Jornal Económico com o jornalista António F...