quarta-feira, março 04, 2020

Uma confiança essencial


“Bolas! Até na justiça! Isto vai bonito, vai!” Não foi necessário olhar para a televisão daquele café de estrada, na Beira interior, na tarde de segunda-feira, para perceber que o tema dos comentários era a notícia da demissão de um magistrado de um tribunal superior, num escândalo a que só o cronovirus ajuda a disfarçar a amplitude. “Aquilo é como na política, pá! São todos iguais!”, ouvi logo ao meu lado, no balcão. As vozes que emanavam daquelas samarras ressoavam uma desencantada unanimidade. “É como os árbitros! Cada um é pior que o outro!”, sentenciava um terceiro.

Mais do que em qualquer época recente de que me consigo lembrar, parece instalada, no sentimento comum, uma distância, quando não uma acrimónia, muito pouco saudável entre os cidadãos e as estruturas institucionais do Estado e dos corpos socialmente relevantes.

Se não acreditam no que escrevi, façam o teste: ao ouvirem comentários negativos sobre figuras políticas, sobre os partidos ou o parlamento, sobre grandes empresas ou outras entidades coletivas, experimentem tentar um discurso abertamente contraditório. Logo verão a reação! Logo “verão”, não, logo veriam, porque tenho o pressentimento de que a maioria das pessoas que me lê já não estará disponível, com sinceridade, para ensaiar esse discurso. Constato que muito rara é hoje a personalidade pública ou instituição que preserva um prestígio que, face a qualquer súbita acusação ou desconfiança, suscite um automático e maioritário benefício de defesa.

A estabilidade das democracias pressupõe a existência de um grau mínimo de confiança entre a generalidade dos cidadãos e as instituições representativas do poder dos Estados, para além de, pelo menos, alguma neutralidade no tocante à aceitabilidade de outras forças relevantes no respetivo tecido social.

A minha percepção, que concedo possa ser impressionista, é de que, com todos os seus defeitos, eventuais manipulações e desvios corporativos, a máquina da justiça se mantinha, até há bem pouco tempo, imune a suspeitas genéricas de corrupção ou tráfico de influências – salvo casos pontuais bem identificados. O que, nos últimos meses, tem vindo a passar-se num dos nossos tribunais superiores é, assim, muito grave. Todos esperamos que se trate de episódios bem isolados, a que possa ser posto cobro, com rapidez e transparência. É que se os cidadãos se sentirem tentados a duvidar da ética dos órgãos da sua justiça estaremos perante a perda de uma confiança essencial que sustenta o sistema democrático.

14 comentários:

Anónimo disse...

"A máquina da justiça se mantinha imune a suspeitas". O senhor Embaixador seguramente não vive em Portugal.

Francisco Seixas da Costa disse...

Quem quer distorcer o que os outros escrevem não quer ler até ao fim: “ imune a suspeitas genéricas de corrupção ou tráfico de influências”.

Luís Lavoura disse...

A estabilidade das democracias pressupõe a existência de um grau mínimo de confiança entre a generalidade dos cidadãos e as instituições representativas do poder dos Estados

O efeito da crise financeira foi fortissimamente deletério. As pessoas viram (e continuam a ver) as instituições dos Estados a darem dinheiro a rodos aos bancos, e não gostaram. As pessoas vêem atualmente os bancos como exploradores, e as instituições do Estado mancomunadas com os exploradores.

Anónimo disse...

Consequentemente, só há uma coisa a fazer: apontar todas as baterias ao Ventura e assegurar que ele se torna o íman que atrai todos os descontentes, só para, depois, podermos passar o tempo a discutir o sucesso do Ventura, o perigo do Ventura e ninguém se debruçar sobre os problemas do país porque... está tudo ocupado a falar do Ventura.

Anónimo disse...

Concordo, há uma crise de confiança generalizada, e ela vai ser explorada pelos extremismos e pelos populismos, de direita e de esquerda. É inevitável. Culpa do sistema e do centro que governa o país, que merecem sofrer.

Anónimo disse...

Onde foi buscar essa impressao sobre o sistema de justica? Ja sei... viveu muitos anos fora de Portugal! Bem-vindo de regresso a casa!

Anónimo disse...

Ainda hoje, na Antena 1, no programa orientado pelo excelente jornalista António Jorge, precisamente sobre este tema, ouvi, já no fim daquele espaço radiofónico, um oficial de justiça, j+a reformado, a contar um exemplo, de uma magistrada do Ministério Público que tinha sido apanhada a roubar creio que num supermercado, bem como na posse de uma qualquer droga (leve) proibida e a vendê-la e que após ter sido alvo de um processo disciplinar e ter tido, se me recordo, uma pena suspensa no tribunal, continua, serenamente, em funções naquele tribunal (em Porto Santo, ao que parece).
Há uma tendência corporativa entre algumas profissões ou carreiras do Estado de se procurar proteger que é infractor. Não é sempre, sejamos justos, mas acontece com alguma regularidade. No MNE, também sucede o mesmo. Ainda não há muito tempo, um Embaixador foi alvo de um processo disciplinar, por uso indevido e abusivo de dinheiros públicos. Foi obrigado a repor esse dinheiro (e que não era pouco) e foi-lhe proposta uma pena de suspensão de funções por um período de 2 anos, para o que tinha de sair do Posto relevante e que se encontrava. Mas, a pena acabou por ser suspensa pelo Ministro e o diplomata (Embaixador) continuou, serenamente, no exercício do alto cargo que ocupava. Este caso foi aliás objecto de mais do que um artigo em diversos órgãos de comunicação social, pelo que expô-lo aqui não tem nada de ma. É do conhecimento público.
E lá está. Dois casos semelhantes, a da magistrada do MP e do Embaixador.
De novo, não confundamos a nuvem por Juno. Os Magistrados são na sua generalidade gente de bem, assim como os diplomatas, mas estes casos deixam marcas. Sobretudo no campo judicial, pois os casos do MNE suscitam menor atenção dos "media", vá lá saber-se porquê!

Portugalredecouvertes disse...


é verdade que faz doer o coração!!!
mas será que quando não se fala, é porque não existe?!
também talvez não tenhamos a certeza disso,
ou então andarão os meios de investigação e de comunicação ocupados com outros assuntos?!

Luís Lavoura disse...

O Francisco leia o blogue Portugal Contemporâneo, por exemplo este post de hoje

http://portugalcontemporaneo.blogspot.com/2020/03/o-labirinto-iii.html

e diga: podemos ter confiança na justiça portuguesa?

Eu digo: não podemos! A justiça portuguesa não merece qualquer confiança.

Anónimo disse...

O que me parece ser realmente grave senhor embaixador é a conivência expressa entre a classe dos juizes (e certamente em muitas outras). Então ninguém sabia, ninguém percebeu...? é, de facto assustador!

Corsil Mayombe disse...

Chico,é a DEMOcracia implementada pelos abrilistas...!

Anónimo disse...

Pelo menos 50% dos litigantes que usaram o sistema de justiça e perderam os processos não têm confiança no sistema... Essa da falta de confiança é antiga e exacerbada de propósito pelos nossos advogados de barra que são advogados essencialmente de criminosos, a quem interessa descredibilizar a justiça. É evidente que estes tiros no pé não ajudam nada e dão alento a quem quer escapar. Veja-se o caso do nosso ex-PM...

Anónimo disse...

"Mais do que em qualquer época recente de que me consigo lembrar, parece instalada, no sentimento comum, uma distância, quando não uma acrimónia, muito pouco saudável entre os cidadãos e as estruturas institucionais do Estado e dos corpos socialmente relevantes." - total ausência de crédito das estruturas institucionais, com casos atrás de casos em todos os quadrantes.

Anónimo disse...

"Mais do que em qualquer época recente de que me consigo lembrar, parece instalada, no sentimento comum, uma distância, quando não uma acrimónia, muito pouco saudável entre os cidadãos e as estruturas institucionais do Estado e dos corpos socialmente relevantes." - total ausência de crédito das estruturas institucionais, com casos atrás de casos em todos os quadrantes.

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