sábado, junho 01, 2019

Barthes


Estávamos em início de 1973, na caserna da Escola Prática de Infantaria. Eu tinha por hábito, depois do encerrar formal das luzes, ficar a ler uns minutos mais, com uma pequena lâmpada elétrica pendurada na cabeceira do beliche, de uma forma que não incomodava ninguém. Numa noite, tinha comigo o "Mythologies", um dos primeiros livros de Roland Barthes, composto por peças publicadas na imprensa francesa, com olhares de uma surpreende imaginação e profundidade sobre temas simples do quotidiano, denunciando mitos da nova cultura de massas.

O texto que estava a ler era o "La nouvelle Citroën", uma análise magistral, escrita ainda nos anos 50, sobre o impacto de uma nova viatura no imaginário francês. Transcrevo apenas esta frase desse texto, para se entender de que se tratava (e, a quem não conhece, recomendo vivamente que leia o livro, claro): “Creio que o automóvel é hoje o equivalente bastante exato das grandes catedrais góticas: quero com isto dizer, uma grande criação de época, consumida na sua imagem, quando não no seu uso, por um povo inteiro que dela se apropria como um objeto particularmente mágico”.

Subitamente, pela noite, um tenente entrou na caserna e abriu as luzes, numa visita rara de inspeção. Como o meu beliche era logo à entrada, e surpreendido com a minha solitária leitura, o oficial estendeu logo a mão para o livro que eu tinha na mão e perguntou: "Ó nosso cadete! Que diabo é que você está a ler, a esta hora?". Esperava, talvez, literatura política, mais ou menos clandestina.

Passei-lhe o livro para as mãos, ainda aberto na página da leitura. "Ah! E em francês!", saiu-lhe, entre o inquiridor e o inquisidor, já esperançoso numa descoberta. "Vamos lá ver então o que é que você estava para aqui a ver, às escondidas". Um segundo depois, tudo mudou. Com um sorriso simpático, sai-lhe: "Citroën?! Você gosta de carros?". Devo ter dito que sim, o que nem sequer era nem nunca foi verdade. "Ora, sim senhor, aqui está uma boa leitura: livros sobre carros! Mas olhe uma coisa, homem: isto de carros franceses não é coisa que se veja. Eu gosto é dos italianos, são mais nervosos. Tenho um Alfa, sabe?". Eu não sabia, nem queria saber.

Ontem à noite, na Feira do Livro, lá estavam as “Mitologias”, na sua versão portuguesa. Apeteceu-me fotografar o livro.

1 comentário:

Anónimo disse...

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