Aproximava-se a hora do jantar. O dia tinha sido complicado, todos estávamos atrasados. Naquele imenso hotel, naquela cidade de um país onde eu era então embaixador, só dava tempo para mudar de fato, antes do jantar.
Subi rapidamente ao quarto, com a mala. Abri a porta com o cartão eletrónico e logo as luzes surgiram. Era uma suite, que vi ser grande (às vezes, os embaixadores são tratados como merecem...). A porta fechou-se, lentamente, atrás de mim. Caminhei até chegar ao quarto, junto à cama. Depositei nela a mala. E também o casaco e o cartão da porta. Tirei logo a camisa suada da longa viagem. Pensei: ainda dá tempo para um rápido banho. Abri a mala, para tirar as coisas.
Foi então que todas as lâmpadas, subitamente, se apagaram. Era já noite, as cortinas deviam estar corridas (às escuras, eu não fazia a menor ideia onde seria a janela), nem uma réstea de luminosidade pairava em todo aquele espaço, que eu não havia tido tempo de observar em pormenor. O erro era só meu: devia ter colocado o cartão no lugar de ativação das luzes, junto à entrada, lá para trás, mas, dava-me agora conta, não o tinha feito. E onde diabo estaria o raio do cartão? Provavelmente sobre a cama. Caramba, naquele hotel, o "time lag" programado das luzes era bem curto, menos de 30 segundos!
Estava assim na escuridão total. Imprudentemente, sem refletir bem, comecei a mover-me. Tentava encontrar a porta por onde tinha entrado. Lá longe. Bati contra o que percebi ser um candeeiro. Andei um pouco mais e tropecei numa mesa. Várias coisas caíram ao chão, entre as quais um telefone, que passou a lançar um silvo. Tateando, avancei e algo anguloso espetou-se-me na cintura (um móvel, pela certa) e, à frente das minhas mãos, uma televisão de plasma tremeu e correu sérios riscos. Continuei a tentar. Foi então que tropecei e caí sobre uma outra mesa (devia ser isso, presumi) e, desamparado, fui aterrar sobre algo que me pareceu ser uma cadeira. Devia ter derrubado, entretanto, tudo o que estava sobre nova mesa. Mais tarde, vim a constatar que era fruta, a garrafa de água e a ritual carta de boas-vindas do "manager".
Em que diabo da zona da suite (tinha percebido vagamente, à entrada, ter vários espaços distintos) estaria eu? A cama, ponto inicial de referência, com base na qual eu talvez pudesse reconstituir o percurso feito desde a entrada, já ficara para trás (ou para a frente, sei lá!). Estava totalmente baralhado quanto à geografia do espaço.
Não costumo "empanicar", mas dei por mim a constatar que estava a ficar sem soluções. E, agora, com um problema, acrescido e chato. É que, a certo passo (no sentido literal), pisei algo que estalou. Era vidro, talvez algum copo que eu derrubara. Tinha de ter mais cuidado, para não voltar a cair e ferir-me, ainda por cima estando eu de tronco nu. Parei para pensar (c'os diabos! Já tinha passado por situações bem mais difíceis, isto era apenas um "fait divers", embora embaraçante).
Lembrei-me então da regra para sair de um labirinto: caminhar sempre num só sentido, para a esquerda ou para a direita. Foi o que tentei fazer. E continuei a tatear, com grande atenção. Sentia-me ridículo, para não me sentir desesperado. Agarrei algo: era um quadro. Consegui "escapar-lhe", sem danos colaterais. Sem uso da vista, o resto dos sentidos ficam mais apurados.
Ouvi o que pareceu ser um longínquo ruído de canos e, nessa direção, senti uma porta. Baixei-me e vi que tinha mármore no chão: pronto, era a casa de banho. Passei ao longo do espaço da sua porta e continuei. Animado pela descoberta, acalmei e animei-me. Por algum tempo mais, mas que não deve ter sido tanto como isso, continuei a porfiar na busca do caminho de saída de um espaço de cuja configuração geral, repito, não guardara a menor ideia, aquando da minha entrada - já uma eternidade atrás.
Fiquei, entretanto, a reconhecer a existência de mais um quadro numa parede. Foi então que a porta de entrada, finalmente!, surgiu na minha mão. Já me ria comigo mesmo, da trapalhada em que me tinha metido. Mas, agora, estava aliviado pelo termo da odisseia.
Abri a porta do corredor e, encandeado pela luz, dei de caras com um membro da delegação portuguesa, que passava em frente. Era um homem que se juntara connosco no hotel, creio que de uma empresa, uma pessoa com quem me tinha cruzado, mas com a qual não trocara uma palavra. Ia já bem aperaltado, para o repasto. Imagino como deve ter olhado para mim, em tronco nu, projetando um ar algo desaustinado e estremunhado, com uma aparência estranha, alguém que dava ares de emergir de uma aventura, solitária e inédita, num quarto escuro. Mas ele não podia saber. Sorri-lhe, imagino que com um sorriso amarelo, tentando transmitir um tom de naturalidade, sem coragem de lhe relatar o que me estava a acontecer. Os embaixadores, por definição da função, querem-se gente calma e "rassurante", dominadores da situação, em especial nos países onde estão acreditados. O que era o meu caso. Ele desapareceu ao fundo do corredor, deitando ainda um olhar de soslaio, ao voltar da esquina.
E ali estava eu: de tronco nu, segurando a porta. O meu problema não tinha acabado. Mas tinha evoluído. Dispunha agora da luz do corredor a iluminar-me o acesso ao início da suite. Mas havia um problema: não podia largar a porta para ir à procura da chave, que estaria algures sobre a cama (ou será que ficara no bolso do casaco?). Em qualquer caso, era bem longe, lá para dentro.
E se eu fosse à portaria, pedir outra chave? Em tronco nu?! Doze andares abaixo?! Seria um belo espetáculo, para toda a nossa delegação, ministros incluídos, de certo todos juntos, à conversa, já de fato e gravata, para a função que se seguia! Lembrei-me que poderia ter pedido ao desconhecido da delegação para avisar a receção, mas não tinha tido o sangue-frio para agarrar a ideia a tempo. E ali estava eu, feito parvo, meio despido, agarrado à porta do quarto, com as pessoas (um primeiro ministro...) à minha espera no hall do hotel.
Foi então que ela apareceu, linda, "dressed to kill", caminhando pelo corredor, aproximando-se da porta do meu quarto, em direção ao elevador. Já não era muito nova, mas era muito bem "desenhada" e caminhava num estudado "catwalk". Olhou para mim com um ligeiro sorriso. Curiosidade? Pena? Conhecendo-me, acho que devo ter "feito peito", para amortecer a imagem da barriga... Coloquei-lhe uma questão e ela disse: “I’m sorry, I don’t speak Portuguese”. Era americana.
- Could I ask you a favour?
Não sei o que a beldade possa ter pensado, mas constatei que me lançou um sorriso prometedor (no sentido prático da resolução do meu problema, entenda-se, porque as belas não são, necessariamente, destituídas de bom coração). "In a nutshell", expliquei-lhe a situação. Qual era então o favor que eu pedia? Eram duas coisas simples: que me emprestasse o seu cartão-chave, para eu poder "dar à luz", e que me segurasse a porta, enquanto eu descobria o meu próprio cartão. Claro que podia convidá-la a entrar, mas, seguramente, se o tivesse feito ela pensaria que eu lhe estava a "fazer a folha".
- “Don't worry! I'll keep it open for you!”, disse ela, prática e colaborante. E ficou na ombreira, com um pé dentro do quarto, segurando a porta e cedendo-me o seu cartão.
A luz fez-se e, em escassos segundos, recuperei a minha chave, que estava sobre a cama. Com um sorriso do tamanho do mundo, vim rapidamente ter à porta, com a minha salvadora. Sempre em tronco nu, entreguei-lhe, entre desvanecidos agradecimentos, o seu precioso cartão. Ela também continuava a sorrir.
Foi então, naquele preciso instante, que passaram no corredor dois outros membros da nossa delegação. Fizeram-me um olhar malandro, ao verem a beldade "sair" do meu quarto, comigo "ainda" em tronco nu. Tinhamos todos chegado àquele hotel há menos de meia hora. "O embaixador não perdeu tempo!", devem ter pensado. Quando, um quarto de hora mais tarde, me cruzei com eles à entrada para o jantar, olharam para mim com um sorriso cúmplice. Fiz de conta, mas o meu olhar não desmentiu nada. O prestígio é um bem escasso...
Hoje à noite, também sozinho, ao regressar ao quarto, depois da sessão de inauguração de um hotel alentejano, lembrei-me desta história. Mas, desta vez, nem eu me esqueci de colocar o cartão para garantir as luzes acesas, nem passou nenhuma beldade pelo corredor.
9 comentários:
Delicioso! Parabéns pelo texto!
Que agonia!!!
É como mergulhar no mar imenso e revolto, vir à superfície, e ver uma miúda apanhar das ondas uns calções de banho igualzinhos aos nossos. E ir mostrar o achado aos pais. Dias...
O Senhor Embaixador, não teria a chamada lanterna no seu telefone? Olhe que dá muito geito!.
Esta é de Escuteiro!! Mas, também acho que a atrapalhação fora de tal desordem que não havia raciocício que chegasse.
Ao Anónimo das 17.54. Em 2008 os telemóveis eram diferentes. E, mesmo que houvesse, eu sabia lá onde o aparelho estava...
Às vezes, os embaixadores são tratados como merecem...
mudam se os tempos, mudam se as vontades...
Texto delicioso. Excelente para uma boa risada.
É o que dá a malta elegê-los para Bruxelas e etc..., anda tudo em tronco nu, cartões do hotel perdidos, tudo na escuridão, mas quando aparece alguém a safar, reparam bem que o elemento é bem desenhado! É só ronha, manha, estes políticos...,ou diplomatas , ou seja lá o que for.
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