quarta-feira, janeiro 16, 2019

Incomuns nos Comuns



Nestes dias de debates sobre o Brexit, a Câmara dos Comuns britânica tem estado muito em evidência. 

Do lado esquerdo de quem entra, fica o partido no poder e o seu governo, do lado direito sentam-se os deputados dos partidos a que a fórmula (ainda) em vigor chama "Her Majesty's Most Loyal Opposition". Mas não todos: a Câmara dos Comuns não tem lugares suficientes para acomodar os seus 650 membros, pelo que, nas sessões mais concorridas, alguns usam os degraus das escadas e uma multidão de outros tem de ficar de pé. Alguns, por tradição respeitada, têm o seu lugar assegurado, a maioria senta-se onde pode, sempre colocando-se do seu "lado".

Duas dicas para se entender melhor a complexa coreografia verbal da câmara: quando alguém se refere a um "honorable gentleman" (com exceção do “speaker”, o presidente, não se pode referir o nome das pessoas, mas pode usar-se o nome da "constituency" eleitoral que elas representam) quer significar um membro da bancada que se lhe opõe. Pelo contrário, se o orador falar em "honorable friend" está a indicar um membro da sua própria bancada. Se acaso se ouvir a palavra "right" (como em "right honorable friend/gentleman"), isso significa que se trata de alguém que faz parte do "Privy Council" da raínha, um orgão de aconselhamento em que ingressam, de forma vitalícia, por seleção, alguns membros do parlamento mais qualificados.

Churchill, quando primeiro-ministro, usava uma fórmula irónica para descrever a câmara: à sua frente sentavam-se os "adversários", atrás de si (na bancada do seu partido) estavam os "inimigos". Theresa May deve estar a sentir isso bem, por esses dias...

Deixo-os com uma história de que fui testemunha, passada nessa sala, junto ao "dispatch box", aquele centro de mesa com caixas de madeira e livros, de onde falam o governo e o "shadow cabinet” (o ”governo sombra”), que é o "frontbench" (banco da frente) da oposição - por contraste com o "backbench", constituído por todos os deputados, de ambas as alas, que se sentam nas filas traseiras.

Em 1993, durante a sua visita de Estado ao Reino Unido, o então presidente Mário Soares fez uma visita informal à Câmara dos Comuns, numa hora em que esta não estava em sessão, passeando-se com a comitiva por toda a sala. 

A certo passo, notei que o acompanhante oficial que o Palácio de Buckingham tinha designado para estar com o presidente português ao longo de toda a visita, um aristrocrata, membro da Câmara dos Lordes, demonstrava um inusitado e quase turístico interesse pelos pormenores do mobiliário e pelo conjunto de símbolos que ocupam a mesa central, em frente aos quais governo e oposição se degladiam. 

Talvez porque eu notasse visivelmente essa sua atitude, a certa altura, aproximou-se de mim e disse-me: "Sabe, sinto-me um pouco emocionado!". No instante, não percebi bem a razão dessa emoção. "É que, como membro da Câmara dos Lordes, estou formalmente impedido de visitar a Câmara dos Comuns e, em toda a minha vida, esta é a primeira vez que consigo entrar aqui." 

Estas também são as peculiaridades do sistema político britânico.

11 comentários:

Sorrir de novo disse...

Enriquecedora partilha, geradora de sede de pesquisas. Obrigado e boa noite.
Acrescento que, talvez, nos Lordes, por serem pares, se sintam anónimos na presença.

Anónimo disse...

Uma outra peculiaridade é que estes tipos não precisam de computadores, nem de logins, nem de telefones ou outras coisas tão necessárias aos nossos deputados. Talvez FSC, com a sua experiência, nos pudesse explicar como é que esta gente, sentada com uns papéis sobre o joelho, consegue tanto (ou mais) do que os nossos modernaços representantes...

AP disse...

digladiam

Anónimo disse...

Muito interessante post.

Despacho:
Assim percebe-se aquela Nação, na qual os Lords podem ainda mandar muito mas não podem nem entrar na sala dos comuns, quando esta não está a funcionar.

Muito deferido.

Anónimo disse...

Caro comentador das 16 de janeiro de 2019 às 22:46, parece-me que tem uma visão algo distorcida e idealizada do parlamento inglês. Não confunda os rituais com o trabalho. A maioria dos parlamentares está lá somente para dizer sim ou não, votar e fazer um bocado de barulho, comandados pelos chefes dos seus partidos. O verdadeiro trabalho do parlamento faz-se nos gabinetes, com dezenas de assessores, e aí não falta tecnologia. Não estamos exatamente na Idade Média, não é? ;)

Luís Lavoura disse...

"peculiaridades" ou arcaísmos ridículos?

Anónimo disse...

Interessante. Didático. Obg.
"... (com exceção do “speaker”, o presidente, não se pode referir o nome das pessoas, mas pode usar-se o nome da "constituency" eleitoral que elas representam)...". Algo que por cá, infelizmente, nunca poderá ocorrer. Questões que assinalam culturas diferentes....

Os "MP"s, os Parlamentares -de todos os partidos- no RU sabem muito bem qual é o cenário actual, de instabilidade, na União Europeia. Conhecem o terreno pisam.

Finalizarem qualquer tipo de acordo com esta, a actual UE -ela mesmo em vias de registar uma significativa alteração na sua correlação de forças interna, inclusivé na (ainda) poderosa Comissão- não é estratégico.
Piscando olho para o lado, e para a frente, os Parlamentares de Sua Majestada queimam tempo, chutam a lata rua fora e esperam o resultado das eleições no Parlamento Europeu.
Esperam para ver quem será o novo negociador. Quantos Países representará e com que filosofia negocial ?....
Em suma, ,afinal qual União Europeia?.

Juncker e Barnier sabem que já são história. O futuro ?. “I know not what tomorrow will bring.”

Anónimo disse...

Curioso "17 de janeiro de 2019 às 09:51". Aparentemente, só em Portugal se faz todo o trabalho no próprio hemiciclo, certo? Aliás, o PAN nem tem direito a um gabinete que dá trabalho a várias pessoas (tendo, apenas, um deputado), pois não? Assessores, gabinetes, nada disso existem na AR porque tudo é feito ali! (mesmo quando os deputados estão... noutro qualquer sítio).

Uma pergunta: é daquelas pessoas que faz dos outros parvos?

Anónimo disse...

Yanis Varoufakis considera a data limite, a implacável clepsidra, um obstáculo a qualidade de um futuro acordo no Brexit:

"... To synthesize competing views into one coherent position, Britain needs more than a voting scheme: it needs a People’s Debate that the ticking clock makes impossible, even if re-set...".

Acrescentaria que a própria Comisssão -em véspera de saída- deveria evitar atitudes precipitadas e ser mais negocial, claramente mais diplomática.

Na verdade 20 anos de evolução e alterações nos Tratados, não se reformulam num ano ou dois sobretudo com a pressão de uma data limite.

Interessa o todos uma justa relação entre o RU e uma qualquer UE.

https://www.zerohedge.com/news/2019-01-17/varoufakis-run-down-brexit-clock

Anónimo disse...

"Aparentemente, só em Portugal se faz todo o trabalho no próprio hemiciclo, certo?"

Onde é que me viu dizer isso?

ass: o de "17 de janeiro de 2019 às 09:51"

L M D disse...

Ouvi dizer que Churchill, recusou durante alguns anos um titulo de nobreza por esse mesmo motivo. Até que ponto será verdade ignoro.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...