quarta-feira, janeiro 23, 2019

Casa Liège


Em 1929, há precisamente 90 anos, o meu pai, recém-ingressado como jovem funcionário na Caixa Geral de Depósitos, frequentava com regularidade esta “casa de pasto”, a “Casa Liège”, situada no alto do elevador da Bica. Era uma tasca de galegos, que à época dominavam a restauração lisboeta. Na sua memória atenta, talvez atiçada pela solidão e pela saudade da sua Viana do Castelo, de onde saíra para trabalhar na capital, nesses seus então 19 anos, permaneceu para sempre a imagem de um empregado galego, de seu nome Ramón, que para dentro, para a cozinha, pedia “um péxe!”. Fixei isto, desde sempre.

Já por aqui contei uma história que ele testemunhou, passada na “Liège”, que envolveu gente da vida política, intensa e tensa, que se viveu nesses dias sombrios da Ditadura Militar. Um “duelo” físico, entre Dutra Faria, à época um propagandista do nacional-sindicalista Rolão Preto, e o republicano vila-realense Carvalho Araújo, viria a marcar, na memória do meu pai, a sua história pessoal com a “Casa Liège”, que fora criada em 1926, e que está hoje nas mãos da hospitaleira família Vieira.

Tenho pena de já não poder contar entre nós com o meu amigo José Sarmento de Matos, o olissipógrafo que ontem foi objeto de uma mais do que merecida homenagem no Museu da Cidade, para ele poder opinar sobre se a “Liège” não será, de facto, nos dias de hoje, um dos mais antigos restaurantes de Lisboa.

Nos anos 80, reverenciador da sua memória, levei o meu pai, numa “romagem”, a almoçar à “Liège”. Descreveu-me então a coreografia da luta a que ali tinha assistido, nesse final dos anos 20 do século passado. Já não me lembro o que comemos, mas o objetivo da nossa visita não era, definitivamente, de natureza gastronómica. O momento fez-nos bem a ambos!

Hoje, animado pelo sol, deu-me para passar por lá, para umas pataniscas (altas mas saborosas, talvez com um pouco de óleo a mais, como expliquei à cozinheira, que se teria evitado enxugando com papel absorvente), um vinho da casa bem razoável e uma conta, depois da sobremesa, a rasar uns bem aceitáveis dez euros. A casa, felizmente, não está descaraterizada e, ao que observei, vive entre a clientela tradicional e o turismo, inevitável e desejável, do lugar. Que se conserve assim! 

Só posso desejar à Casa Liège cem anos mais de história e que, se possível, não venha a ser apanhada pela especulação imobiliária. Não sei, contudo, se não será pedir muito...

3 comentários:

Cardeal disse...

A humildade não fica mal a ninguém e então quando se é um poço de saber é um grande exemplo para todos.Um grande obrigado pele companhia que me tem feito e continue até sempre com este saber é boa disposição.

Ana D disse...

Tantas histórias teria para contar desse recanto lisboeta no tão alfacinha bairro da Bica. Bairro onde cresci. Vivi até aos meus 16 anos no prédio ao lado, e o café pertence a uns familiares meus. Ai tão feliz que fui nesse bairro, tão típico, tão lisboeta. É um restaurante que sabe receber à portuguesa. Bem haja

Anónimo disse...

Ir a sítios que nos marcaram ao longo da vida faz parte dos meus hábitos. Ah, como eu gosto de relembrar um passado longínquo no próprio local! Um defeito? uma questão de sensibilidade?... Por isso, muito apreciei o facto de ter levado lá o seu pai ao velho restaurante do galego.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...