quinta-feira, janeiro 10, 2019

Crise protocolar


Às vezes, sinto-me tentado a contar por aqui algumas histórias “proibidas”. Tenho mesmo uma lista de algumas. Parte delas são, porém, eternamente interditas à partilha. Ou porque poderiam pôr em causa pessoas que o não merecem (e não fazê-lo é uma regra que nunca infringirei) ou porque relevam da confidencialidade devida às funções oficiais que ocupei ou, muito simplesmente, porque fazê-lo trairia a confiança daqueles com quem partilhei certas ocasiões. Há ainda aquelas historietas que ficam numa espécie de “zona cinzenta”. Esta é uma delas.

A que hoje vou contar, e que só a mim compromete, foi perdendo o seu caráter sensível com a passagem do tempo. E hoje, creio, já pode ser revelada.

Estávamos no mês de janeiro de 2008. O Cônsul-Geral de Portugal no Rio havia decidido organizar um jantar de gala, com fins de beneficência, no Palácio de São Clemente, a sua bela moradia no Botafogo, que já foi embaixada de Portugal, quando a capital era no Rio de Janeiro.

Havíamos conseguido fazer deslocar propositadamente de Brasília para o evento, que envolvia uma imensidão de gente, o vice-presidente da República e a sua mulher, José Alencar, uma pessoa com quem eu teria, até à sua morte, uma boa relação de amizade. O jantar seria co-presidido por ele e por mim.

Fomos de Brasília para o Rio na manhã do dia do jantar. Para não sermos “pesados” numa casa que estava numa polvorosa organizativa, decidimos hospedarmo-nos por uma noite no hotel Pestana do Rio. Passei uma bela tarde a ler na varanda, com vista sobre a Avenida Atlântica e, já bastante em cima da hora do jantar, e apenas por um mero acaso, deitei um olhar pelo elaborado convite que havia sido desenhado para a ocasião... e entrei em choque!

O convite dizia que o jantar era de “smoking” e eu só tinha trazido um fato escuro. Era absolutamente inadequado (Álvaro Cunhal fazia-o sempre nos jantares da Ajuda, mas eu não era Cunhal) ocupar um lugar de honra com o vice-presidente do Brasil, com este vestido a preceito e comigo a envergar um traje “um furo abaixo” daquele que a ocasião exigia. Estávamos em cima da hora: já não havia tempo para alugar um “smoking”. Que fazer?

Só havia uma solução: “adoecer”. Pretextando uma grave crise digestiva, faltei ao jantar, pedindo ao Cônsul-Geral, não só que me substituísse, mas que pedisse por mim desculpa à importante figura de Estado presente. E, à hora em que a “fina flor” do Rio dava entrada na festa para a qual tinha pago uma boa quantia, porque destinada a uma instituição de caridade, estava eu, com a maior discrição, a jantar num ignoto restaurante nas imediações do Pestana, esperando que ninguém me reconhecesse.

A minha “doença” iria ter uma outra consequência negativa, também de vulto. Para o dia seguinte, eu tinha comprado um bilhete para ir ver, no Maracanã, um Fla-Flu, um jogo do Flamengo contra o Fluminense, uma histórica partida de futebol, a que sempre tinha sonhado assistir. Ora, “doente” como eu estava, tendo mesmo nessa manhã havido um simpático telefonema da mulher de José de Alencar para a minha, a inteirar-se do meu estado de saúde, estava fora de causa poder vir a assistir ao prélio na “catedral” brasileira do futebol. E lá regressei ao final da tarde a Brasília, cabisbaixo, onde, nas horas e dias seguintes, recebi vários simpáticos telefonemas de gente da comunidade portuguesa e do “social” carioca a enviar-me votos de melhoras. 

Devo dizer que, a partir deste incidente, passei a ter uma maior atenção com os cartões de convite. Mentir socialmente é uma arte que todos aprendemos na vida diplomática, mas há ocasiões em que, de facto, mesmo sem estarmos doentes, nos sentimos bem mal. Foi o caso.

7 comentários:

Luís Lavoura disse...

Pergunta inocente: qual é a diferença entre um fato escuro e um "smoking"? É que não sei mesmo qual a diferença, e gostaria que alguém me explicasse.

Francisco Seixas da Costa disse...

Está muito preguiçoso, Luis Lavoura: https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Smoking

Anónimo disse...

As lulas a dore forma indigestas não só ao embaixador, como até agora aos brasileiros. uma indigestão severíssima!!! Necessário anos de tratamento.

Anónimo disse...

Sr. Embaixador
Pior do que comparecer ao jantar de fato escuro em vez de smoking é faltar a um jantar oficial á ultima da hora , com tudo o que isso implica de reorganização da mesa , dos lugares , etc ... e ainda por cima um jantar em que sabia que ía presidir á mesa . Desculpa por desculpa , se era preciso inventar uma pequena desculpa , que tal dizer que à ùltima da hora tinha reparado que o smoking não tinha sido colocado na mala ? E um telefonema a explicar o que tinha acontecido ? Aqui o que aconteceu foi uma espécie de vaidade pessoal ... o sr. Embaixador achou que podiam pensar que não tinha smoking . Agora , inventar uma doença ? De certeza ninguém acreditou , é daquelas desculpas esfarrapadas quando não há pachorra para sair de casa .
Ficaria um pouco deslocado no meio dos outros convidados ? Ficaria . Mas aí o problema era seu , havia que assumi-lo .
E mais não digo .

NG disse...

Que maravilha

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/01/imagem-externa-do-brasil-mudou-para-pior-no-novo-governo-diz-benjamin-moser.shtml

Anónimo disse...

Podias ter pedido um smoking emprestado a um funcionário do hotel......
Fernando Neves

Anónimo disse...

FN , sempre com o seu humor british , a gosar , pondo a mão na ferida ... Mas lá que o conselho era bom , isso era . Como é que não se lembrou disso ? Se calhar o funcionário do hotel até tinha um smoking acabado de chegar da lavandaria . Recebia uma gorgeta um pouco mais choruda e resolvia-lhe o problema .

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...