quinta-feira, novembro 18, 2021

Bom gosto e bom senso


Não tive o gosto de conhecer pessoalmente Maria Eugénia e Francisco Garcia. Mas, ontem, no Museu Nacional de Arte Contemporânea, no Chiado, ao olhar a exposição da coleção de arte deste casal de lisboetas, ambos já desaparecidos, senti-me como se tivesse acabado de lhes ser apresentado. Ao percorrer aquelas dezenas de obras, que faziam parte do cenário interior da sua residência (as fotografias dos aposentos também nos ajudam a “entrar” nela), apercebemo-nos do gosto, do bom gosto, que esteve por detrás das escolhas feitas, ao longo de algumas dezenas de anos. Pode mesmo imaginar-se o imenso prazer que ambos devem ter tido nesse processo. Percebe-se que houve a intenção de ir constituindo como que um fresco da arte contemporânea portuguesa a que os proprietários da coleção, tributários de uma cultura apurada e com meios para dela irem usufruindo, iam sendo sensíveis. E isso foi conseguido em pleno, na modesta perspetiva de quem, como eu, longe desse apuramento de gosto, se sentiu também “em casa”, face à esmagadora maioria das escolhas feitas. Digo isto com total sinceridade, como testemunho da rara satisfação que senti ao constatar essa identificação. Trazer esta exposição de muito bom gosto para o museu foi um ato de extraordinário bom senso. Obrigado e parabéns, João Pedro Garcia.

quarta-feira, novembro 17, 2021

Lula 2.0


O presidente francês, Emmanuel Macron, recebeu hoje Lula no ”perron” do Eliseu, com guarda de honra, distinção que tem um forte significado protocolar.

A França nunca faz gestos destes por acaso e, muito menos, por qualquer distração. E Brasília, que tem uma excelente diplomacia, sabe isto muito bem.

Para utilizar uma expressão conhecida: “À bon entendeur…”

terça-feira, novembro 16, 2021

Punir o boato


Nos anos 90, uma revista política britânica de circulação muito limitada, "Scallywag", publicou um rumor, que era falso, sobre um "affaire" do então primeiro-ministro conservador britânico, John Major.

Durante alguns dias, ninguém mais tocou no assunto. Major não desencadeou qualquer ação judicial contra a revista.

Passadas breves semanas, a revista "New Statesman", uma publicação bastante lida, muito próxima dos trabalhistas, retomou o tema, num tom clássico de quem quer ecoar a coisa, mas distanciando-se dela: ”Então não querem lá ver que andam por aí a dizer isto…”

Era comentado o conteúdo do artigo do "Scallywag", embora não credibilizando necessariamente o boato.

Porém, porque o "New Statesman", ao falar no assunto, amplificou a divulgação da mentira, Major (e a senhora envolvida no boato) processaram a revista. E depois, naturalmente, também o "Scallywag" foi a julgamento. Para a História: Major ganhou os dois processos.

O comportamento inicial de John Major mostra que seguiu uma regra básica da comunicação: quando as mentiras têm uma difusão restrita ou escassa credibilidade, reagir contra elas, em termos públicos, acaba por ser contraproducente.

Lembrei-me desta história a propósito de uma “notícia” espalhada na internet por uma boateira profissional espanhola de extrema-direita, detentora de um historial incontável de mentiras, como bem sabe quem acompanha minimamente a política do país aqui ao lado.

A visada, a deputada Mariana Mortágua, não reagiu quando por aí começaram a ser “retweetados” esses delírios. Mas pôs logo em tribunal o seu colega parlamentar de extrema-direita, correligionário luso da maluquinha espanhola, quando este deu amplificação ao assunto.

E fez muito bem!

segunda-feira, novembro 15, 2021

Bolas!

Eu sei que alguns ficam psicologicamente muito afetados por isto. Não é o meu caso. Claro que a mim também não me agradou ver a nossa seleção a ser derrotada pela Sérvia, jogando mal, com um naipe de jogadores com os quais, à partida, seria possível fazer bem melhor. Mas, com os diabos!, não estamos a falar de algo transcendental para o país! Estamos a falar de futebol. Perdemos, temos de tirar lições da derrota, talvez mudar de selecionador. Tudo bem! Mas não façamos disto um Alcácer Quibir! É um jogo com onze jogadores e uma bola. Nada mais! Não é a vida, não é o país! Caramba.

Hotel Jugoslavia


Há uns dias em que me dá para ver filmes com pancadaria “da velha”, espiões saídos do frio e vestidos de preto ou de couro, sempre com cara-de-mau, corridas infernais pelas ruas, carros a “esbardalharem-se”, bandidos “abatidos” por tiros de metralhadoras ou pistolas com silenciador. Histórias que acabam, quase sempre, em cenas de cama de belos hotéis de luxo. Ia escrever “com pequename à maneira”, mas tive medo de ter um processo por sexismo…

Ontem à tarde, num zapping, apareceu-me um filme com Kevin Costner, cheio desses ingredientes. Fiquei a vê-lo, claro! O essencial da ação era em Paris, com os cenários do costume (a “versão” americana de Paris: muito Montmartre, Trocadéro, Torre Eiffel qb, ruas marginais do Sena, Meurice e George V. Faltou o Marais e Saint Germain, sei lá bem porquê!), muito bem filmados, numa trama de confortável implausibilidade. O “fazer de conta” bem feito é uma das belas artes.

O filme tinha começado numa cena desenhada com violência no Hotel Jugoslavia (escrito sem assento), em Belgrado. O hotel, que o Booking me diz ter agora três estrelas, está com ar de ser já bem pouco glamoroso. Mas o nome Jugoslávia, infelizmente, rima sempre bem com violência.

Nem sempre foi assim, lá por Belgrado. Nos anos 70, o Hotel Jugoslavia era um “must” daquela capital balcânica. Ficava “do outro lado” da cidade, recordo-me bem. Por ali se alojavam muitos dos diplomatas que então negociavam no âmbito da CSCE, a Conferência para a Segurança e Cooperação na Europa, nos últimos tempos da Guerra Fria, uma iniciativa que procurava atenuar as tensões Leste-Oeste. (Mal eu sabia que, vinte e tal anos depois, iria chefiar, em Viena, durante a presidência portuguesa, a embaixada da Organização secessora daquele exercício).

Estive lá por Belgrado duas vezes. Não que eu ali fosse negociar nada. Muito simplesmente, como jovem diplomata, era encarregado de transportar a “mala diplomática acompanhada”, que levava e trazia graves “segredos de Estado”. Diferenciava-se assim da “mala” comum, que ia pelo correio normal.

“Ir de mala”, nesse circuito da Europa ou no dos Estados Unidos, era, na vida dos jovens diplomatas de então, uma tarefa simpática, que nos oferecia um circuito cosmopolita de uma semana. Havia uma escala do pessoal para essas viagens e, sempre que alguém faltava, logo surgiam, discretamente, uns colegas “papa-malas”, que acediam à informação privilegiada das vagas, “abichando” a oportunidade para avançarem. Coisas desses tempos…

Um dia, aí entre 1976 e 1979, saído de Lisboa, eu tinha passado, em dias sucessivos, por Londres e por Bruxelas. A bem dizer, este último era o destino principal da "mala diplomática acompanhada", por aí se situar a sede da NATO (ia-se e voltava-se sempre por Bruxelas). Da capital belga, parti para Viena, onde a esmagadora maioria da correspondência que eu levava iria ser encaminhada para postos dos então países comunistas, de onde as nossas Embaixadas enviavam depois à capital austríaca os seus diplomatas, para a respectiva recolha e canalização dos seus relatórios para Lisboa. Pouca coisa seguia na mala para Belgrado, a ajuizar pelo tamanho do pequeno pacote que me sobrava, cujo conteúdo, naturalmente, eu desconhecia (nós nunca abríamos a mala, não nos competia saber o que transportávamos). E, de Belgrado, iriam seguir, mais tarde, pela nossa atenta mão, correspondência e documentação “secreta”, destinada a Bruxelas e Lisboa.

A cidade de Belgrado, num inverno sob neve, era, numa dessas vezes, uma urbe cinzenta e algo desconfortável. De autocarro, fui parar, já muito ao final da tarde, ao imenso Hotel Jugoslavia. Passava da hora de fecho da nossa Missão temporária junto da CSCE, pelo que decidi ficar com a mala diplomática à minha guarda (período das refeições incluído, porque não era permitido perdê-la de vista). Entregá-la-ia no dia seguinte, logo de manhã.

Tomava eu um banho reconfortante no hotel, preparando-me para ir jantar com o pessoal da Missão (Ana Barata, Ana Marinho, Maria do Pilar, Rui Brito e Cunha, Jorge Ritto), quando me chegou um telefonema da secretária do Embaixador, dizendo-me que ele me ordenava que fosse, ainda naquele dia, ao escritório da Missão, para entregar a mala. Reagi, dizendo que era já muito tarde. 

Qual quê!? O embaixador insistia e quis mesmo que eu fosse de táxi, porque não podia dispensar o seu motorista. Furioso, lá tive de encasacar-me para o gelo da cidade, algo intrigado com a urgência da entrega daquela documentação. Mas, quem sabe?, podia tratar-se de instruções para uma diligência urgente ou contactos não adiáveis.

Chegado à Missão, fui levado à presença do embaixador, cujo nome agora não importa, que exclamou: "Ora temos então aqui a nossa mala! Já não era sem tempo!", numa clara "indireta" à minha resistência, complementada pela displicência com que me saudou.

Preparava-me, deliberadamente sorumbático, para sair do gabinete e regressar ao hotel, quando reparei que o embaixador se mostrava empenhado a ser ele próprio a quebrar os selos diplomáticos (de chumbo) do pacote. Por curiosidade, fui-me deixando ficar na cena.

Foi então que assisti à aparição de um embrulho, saído de dentro do pacote que, com toda a segurança e cuidado, eu transportara por várias capitais europeias. Vi os olhos do embaixador encherem-se de alegria: "Até que enfim! Estava a ver que o nosso colega de Havana nunca mais se despachava!". E lá abriu ele, com a avidez do vício, a sua caixa de "Cohibas", pelos visto a única "correspondência" relevante que, para escapar aos riscos da espionagem comunista, nesses derradeiros anos da Guerra Fria, eu levara em mão, durante dias, até Belgrado...

domingo, novembro 14, 2021

Bem os procurei!

 


A conversar…

 


… sobre Merkel e a Europa. Aqui.

Isto é à vontade do freguês?


A estação ferroviária de Santa Apolónia mudou radicalmente de côr. Mas então como é? Não há regras urbanas sobre as tipologias de cores deste tipo de edifícios? Um dia, alguém decidiu pintar de azul claro. Agora, a (outro?) alguém deu na mona pôr esta nova côr? Isto é assim? É “à vontade do freguês”? Quem pintou de azul tinha-se enganado? É que estamos a falar de (muito) dinheiro público! (Ah! E não é para aqui chamada a questão sobre se fica melhor assim ou assado.)

sábado, novembro 13, 2021

Diamantes


Foi em 1983. Ligaram da portaria da nossa embaixada em Luanda, onde eu era então o “número três”. Um cidadão português, que eu conhecera num encontro ocasional, semanas antes, pedia para me ver, “com a maior urgência”.

Chegou, afogueado, ao meu gabinete. A cara serena e sorridente que eu havia conhecido estava transtornada, com um fácies de visível perturbação. Mandei-o sentar, sossegar, para me explicar o que o trazia ali. O homem suava em bica, mas levei isso à conta do calor que o fim da época do cacimbo trouxera à cidade.

“Senhor doutor, tem de me ajudar! Está a ser cometida uma grave injustiça! Prenderam, hoje de manhã, “Fulano de Tal” (um nome estranho para mim). Acusam-no de ter traficado diamantes. Imagine! Um homem como ele, uma jóia de pessoa, transmontano como nós, não sei se o conhece?, pode lá estar envolvido em semelhante trapalhada!”

Eu lembrava-me de que o meu interlocutor era transmontano, mas tinha para mim que ser de Trás-os-Montes (que me desculpem os meus conterrâneos) estava longe de poder ser um atestado automático de inocência. (Não, não vale a pena trazerem à colação, em comentários, nomes de figuras conhecidas de transmontanos envolvidos em sarilhadas).

O assunto, contudo, não era comigo. E disse-lho logo. A responsabilidade pela proteção dos cidadãos nacionais compete às estruturas consulares. Em Luanda, havia um Consulado-Geral. Ora eu trabalhava na embaixada (só quando não existe uma estrutura consular autónoma é que as embaixadas dispõem de uma Secção Consular. Curiosamente, eu tinha acabado de ser responsável por uma, durante três anos, em. Oslo). O máximo que eu podia fazer era levá-lo ao Consulado-Geral, dois andares abaixo. E lá fomos.

“Espero que o senhor doutor não se desinteresse pelo assunto”, foi-me dizendo pela escada abaixo, sempre crispado e tenso. Eu, que mal o conhecia, fiz-me de desentendido. Não podia imiscuir-me no que minimamente me não competia. Levei-o ao gabinete do vice-cônsul, com quem o deixei à conversa. E regressei ao meu trabalho.

No dia seguinte (ou dias depois), a “bomba” rebentou. Uma extensa rede de tráfico de diamantes fora descoberta em Angola. Haveria cidadãos portugueses envolvidos. O “Fulano de Tal”, amigo do meu interlocutor, de acordo com o que se sabia, seria um dos acusados. Na altura, senti pena pelo meu visitante de uns dias antes: afinal, o seu amigo, o “nosso conterrâneo”, ia acabar por ter uns tempos difíceis.

Passaram mais uns tempos. Surgiu então a notícia de que o homem que me visitara fora também detido: também ele estaria profundamente envolvido na rede de tráfico de diamantes.

Fiz então um “flash back”: afinal, toda aquela perturbação que eu testemunhara não seria apenas de preocupação pelo destino do amigo, era talvez já o forte receio de ele próprio poder ser atingido pelo processo.

“To make a long story short”: o meu visitante foi condenado, bastante tempo mais tarde, a uma pesada pena, de bem mais de dez anos de prisão. O meu colega embaixador Fernando Andresen Guimarães, então cônsul-geral em Luanda, e o vice-cônsul Hermenegildo Gonçalves lembrar-se-ão muito bem de toda esta triste história, que conhecem bem melhor do que eu.

Por que é que me lembrei disto? Talvez pelo facto de, nos últimos dias, todos termos ouvido falar muito de tráfico de diamantes.

sexta-feira, novembro 12, 2021

João Gomes Cravinho


Compreendo que seja bastante desagradável, para os cultores do tremendismo catrastrofista na vida pública, ter de defrontar uma pessoa séria e de credibilidade à prova de bala, à frente de um ministério com funções de Estado. Eu sei: isso dificulta a crítica fácil, cria problemas à maledicência costumeira. Ainda por cima, tratando-se de uma pessoa reconhecida e indiscutivelmente competente, capaz de manejar os dossiês, sem mostrar o menor receio em afrontar o imobilismo corporativo. João Gomes Cravinho é alguém que tem uma carreira - académica, europeia, pública - que não foi feita à sombra de ninguém, por aparelhamento, por amiguismo, por qualquer favor. Quem tiver alguma prova do contrário, tem toda a liberdade de o dizer - aqui, nas linhas seguintes. É alguém que não precisa do Estado português para nada! Se há algum “favor” envolvido no caso de João Gomes Cravinho esse é aquele que ele nos presta, ao país, que tem o benefício de poder usufruir do seu serviço. Mas eu sei: nada incomoda mais alguma gente do que isso mesmo.

quinta-feira, novembro 11, 2021

Que arte!

No caso dos Comandos, é impressionante como, rapidamente, se conseguiu tirar o foco da questão da ladroagem de diamantes e ouro para a converter num caso entre instituições políticas. Em Portugal, o essencial é sempre um inesperado acessório.

O voto pelas paredes


Já há novidades sobre a iniciativa legislativa para limpar a propaganda pelas ruas das últimas eleições autárquicas? Não, não é por nada! É que é preciso começar a arranjar espaço para a propaganda das legislativas que aí vêm…

De Klerk


Morreu o antigo líder da África do Sul Frederik De Klerk. Foi a última figura simbólica do regime do apartheid. Soube entender que a situação política que lhe cabia gerir era historicamente insustentável. Contra muitos do seu campo, acusado mesmo de os trair, abriu as portas a uma mudança radical. Quis a sorte que tivesse encontrado, do outro lado, uma figura excecional, chamada Nelson Mandela. A África do Sul dos dias de hoje não parece à altura da estatura desses dois homens.

Sampaio


Uma homenagem de amigos e admiradores de Jorge Sampaio, em que tive o gosto de colaborar.

quarta-feira, novembro 10, 2021

“A Arte da Guerra”


Em “A Arte da Guerra” desta semana, no podcast do “Jornal Económico”, falo com António Freitas de Sousa sobre os dias de Joe Biden, as novas tensões divisionistas na Bósnia-Herzegovina e a guerra que abala a Etiópia.

Pode ver aqui.

Um último abraço, Rui Oliveira e Costa

 


terça-feira, novembro 09, 2021

A tropa fandanga

Desde há décadas que as forças armadas portuguesas têm estado envolvidas em operações de paz, um pouco por todo o mundo. A ação dos nossos militares, alguns dos quais pagaram com a vida ou o sofrimento o risco dessas missões, tem vindo a representar um contributo inestimável para a imagem externa de Portugal, por todo o lado deixando assinaláveis marcas de competência e rigor profissional, que é unanimemente reconhecido. 

Se acaso se vierem a confirmar as acusações que envolvem militares portugueses no tráfico de bens preciosos, oriundos das zonas onde estavam mobilizados em operações de paz, isso configurará uma quebra ética que vai muito para além da mera criminalidade. Significa o abandalhamento da farda que essa gente teve um dia a honra de envergar, em nome do nosso país.

É importante, por isso, que este caso seja rapidamente esclarecido e julgado com todo o rigor, cuidando em evitar quaisquer falhas processuais, por forma a que, daqui a uns anos, o assunto não acabe envolvido numa nuvem pantanosa de queixas, recursos e falta de decisões transitadas em julgado. É não só a justiça que assim o exige, como igualmente o reclama o nosso prestígio externo.

segunda-feira, novembro 08, 2021

Nicaráguas


Sou de um tempo em que o mundo se mobilizava contra a ditadura de Somoza, na Nicarágua, louvando a luta de Ortega e dos seus amigos em favor da democracia no país.

Agora, vivemos num tempo em que há que apoiar a luta de quantos lutam contra Ortega e denunciam o modo repressivo e autoritário como ele domina a Nicarágua.

Duas lutas igualmente justas.

domingo, novembro 07, 2021

Turquia


Há poucos anos, quando li na imprensa (há muito que não faço parte dos “mentideros” das Necessidades, que, por antecipacão, sabem “quem vai” e “para onde”) que uma colega e amiga tinha sido colocada na Turquia, mandei uma mensagem a felicitá-la (faço isso muito poucas vezes, razão por que o noto). E fi-lo com grande sinceridade. Não porque Ancara seja a cidade mais agradável do mundo para se viver (embora Istambul seja uma das cidades mais fascinantes que conheço), mas porque penso que, nos dias de hoje, a Turquia é um “lugar geométrico” privilegiado, onde se cruzam realidades geopolíticas muito diversas e contraditórias. E muito importantes para todos nós. A começar pelos profissionais da diplomacia.

(Costumo dizer que os postos da carreira que, para um diplomata português, valem realmente a pena são aqueles onde aquilo que escrevemos é lido com atenção em Lisboa. E Ancara é, seguramente, nestes tempos, um deles. Há capitais magníficas, cómodas e agradáveis para se viver, mas de onde um diplomata não consegue enviar muita coisa que interesse à “Secretaria de Estado” (para quem não saiba, é assim que, na linguagem da profissão, são tratados os serviços do MNE sedeados em Lisboa). E, depois, há cidades menos glamorosas, às vezes com um quotidiano mais difícil e até com riscos pessoais, onde o que dali se escreve consegue ter algum “peso” na opinião das Necessidades. Sei do que falo: já trabalhei em postos de ambos os géneros.)

Quando, há meses, o professor Luís Tomé me convidou a fazer, na Universidade Autónoma de Lisboa, um mano-a-mano com o jornalista Rui Cardoso, sobre a Turquia e a sua relação com a União Europeia, não hesitei um segundo em aceitar. E não me arrependi. Foi um debate muito útil, com participação do auditório e de umas dezenas de pessoas que nos acompanhavam por Zoom. Sem falsa modéstia, creio que abordámos, com algum rigor, o essencial daquilo que é o cenário de ação externa da Turquia nos dias que correm. Na perspetiva da relação de Ancara com a União Europeia, falou-se de também de outros atores ligados ao tema: EUA, África, países do Golfo, Rússia, Israel, Líbia, Síria e até da China e da Venezuela. 

Veio-me então à memória uma deslocação que fiz à Turquia em 2000, em representação da presidência da União Europeia. Vivia-se um tempo posterior à decisão tomada no Conselho Europeu de Helsínquia, em dezembro de 1999, que havia aceitado a Turquia como candidato a uma futura adesão, dando pela primeira vez sequência ao seu pedido, datado já de 1987. 

A classe política turca vivia dividida entre quantos ansiavam que o processo negocial encaminhasse o país para uma entrada nas instituições europeias, com impacto na rapidez de “aggiornamento” do país, e aqueles que temiam que as reformas exigidas para a adesão viessem a descaraterizar o país. Nestes últimos estavam os setores islâmicos. 

Num jantar que tive com deputados turcos, não uniformes nas suas linhas ideológicas, quando ecooei o sentimento prevalecente em Bruxelas, no sentido da Turquia dever abandonar a pena de morte (falava-se então da possibilidade iminente de ela ser aplicada ao líder curdo Albdullah Öcalan, rompendo uma moratória que o país estava a seguir nos últimos anos), detetei uma forte reação por parte da maioria dos presentes: Ancara não admitia essa “ingerência” nos seus assuntos internos. Quando, com serenidade, expliquei que essa era uma condição “sine qua non” para a adesão, levantou-se quase um clamor. A Turquia “não era um país qualquer”, passível de pressões externas. No final da refeição, que terminou num ambiente cordial mas um pouco tenso, uma assessora minha comentou: “Parecia que era a União Europeia que estava a tentar aderir à Turquia, não o contrário…”

Receção muito diferente seria o que me aguardava, no dia seguinte, numa palestra que fiz na “Middle East University”. O sentimento prevalecente, nas mais de duas centenas de estudantes com os quais debati o tema da relação entre a Turquia e a Europa, revelava uma esmagadora vontade do país se juntar à “família” europeia, pela certeza de isso poderia funcionar como uma alavanca para a modernidade da sociedade. 

Hoje, mais de duas décadas depois, sabemos quem ganhou essa “guerra”. 

Com a maior convicção, acho que são cada vez mais remotas, senão mesmo nulas, as hipóteses de algum dia a Turquia vir a ser um membro da União Europeia. O que, no entanto, não significa que devamos descurar minimamente as relações com aquele país charneira, cujo curso político continuará a ser da maior importância para a Europa e para o mundo.

sábado, novembro 06, 2021

Raret


A Netflix está a passar a série portuguesa “Glória”, situada em 1968. A história gira em torno de um jovem engenheiro, filho de um secretário de Estado da ditadura, que é militante comunista clandestino e que consegue ser colocado na Raret, com vista a executar ações “subversivas”. E que tinha uma bela namorada. Vi hoje o primeiro episódio da série. Não me entusiasmou, pelo que não tenciono ver os restantes.

A Raret era uma estrutura secreta de emissores que, durante a Guerra Fria, emitia de um determinado local no Ribatejo para os países comunistas, difundindo mensagens oriundas dos Estados Unidos, no quadro da atividade da “Rádio Europa Livre”. Essa ”ação psicológica” funcionava em sentido oposto ao das emissões que, da Rússia e de outros países do “bloco de Leste”, eram emitidas para o “lado de cá”. 

Nesse tempo da ditadura, em termos públicos, a Raret era, entre nós, um “não assunto”. A imprensa não se lhe referia e o tema era verdadeiramente tabu, só mencionado à “boca pequena”.

Vim viver para Lisboa, em 1968, para casa de um tio, nos Olivais. Num dos primeiros dias, com ele partilhei o elevador ao lado de um cavalheiro. O meu tio cumprimentou-o. Era nosso vizinho de andar. 

Quando ficámos sós, o meu tio perguntou-me: “Sabes o que é a Raret?”. Eu sabia. “Este tipo é engenheiro lá. E tem uma mulher muito bonita!” O meu tio era muito atento às mulheres. 

Dias depois, vim a constatar que ele tinha a toda razão. A senhora era lindíssima, muito bem “desenhada” e, além disso, extremamente simpática, como confirmava quando acaso coincidíamos no elevador. Era o contrário do marido, este sempre com um ar macambúzio, como talvez tivessem a obrigação de ser as figuras ligadas a coisas tão misteriosas como a Raret. Nunca soube o nome do casal.

Como se vê, em 1968, havia na Raret engenheiros que tinham mulheres muito bonitas. Tal como no cinema.

sexta-feira, novembro 05, 2021

Pronto! Uma nova aventura

 



Ouviram bem?

Na sua mensagem ao país, o presidente deixou três notas:

- que o país não desejava uma crise política;

- que a maioria dos portugueses não queria a rejeição deste orçamento;

- que a aprovação deste orçamento era particularmente importante, num tempo de recuperação da pandemia e na expetativa dos fundos comunitários.

Ao dizer o que disse, o presidente denunciou a irresponsabilidade dos partidos políticos, ao terem atuado como atuaram, à revelia do sentimento e interesse públicos.

Ficou a impressão de que o recado era, em especial, para o PCP, e um pouco para o Bloco, que, no passado, cada um a seu modo, tinham viabilizado orçamentos, nos dois governos socialistas.

Porém, gostava de sublinhar um ponto, que pode ter escapado a alguns: Marcelo Rebelo de Sousa também lembrou que, em tempos idos, face a governos minoritários do PS, sendo ele líder do PSD, que tal como hoje acontece era então o principal partido da oposição, havia tomado a decisão de viabilizar orçamentos, que, no entanto, lhe mereciam objeções, fazendo-o apenas por razões de Estado e de interesse do país.

Esta referência não foi, a meu ver, nada inocente: o recado sobre a irresponsabilidade política recaiu também sobre o PSD.

quinta-feira, novembro 04, 2021

Então havia de correr bem?! Era só o que faltava!


É bem revelador da estranha forma de estar no mundo que é ser português o babado prazer que está a dar a alguma comunicação social o ter “descoberto” que o Web Summit 2021 poderá ter ficado aquém do retorno esperado.

“A Arte da Guerra”


A situação no Sudão depois do recente golpe de Estado, a política interna e externa do Japão após as últimas eleições legislativas e os equilíbrios que condicionam a cimeira do clima em Glasgow são os temas que abordo no “A Arte da Guerra” desta semana, o podcast do “Jornal Económico”, conduzido por António Freitas de Sousa. 

Pode ver clicando aqui:

quarta-feira, novembro 03, 2021

FT


Nas últimas horas, tenho estado a ler, verdadeiramente deliciado, o ”The Powerful and the Damned”, os “private diaries” de Lionel Barber, que dirigiu o Financial Times por 15 anos. 

Pedante, arrogante e sobranceiro, como só alguns ingleses conseguem ser, Barber escreve lindamente, olhando o mundo ”de cima da burra”, como se diz na minha terra, com apontamentos magníficos de conversas e encontros.

Rio


Tal como muita gente, desde há décadas, nas palavras cruzadas, escrevo ”Aar”, sempre que surge a questão ”rio da Suíça” com três letras. 

Ontem, alguém no Twitter colocou uma fotografia desse rio, embora pouco glamorosa. Ela aqui fica. Finalmente!

É minha impressão ou “chefe etíope”, que aprendemos ser “Ras”, tem vindo a decair em popularidade, no mundo do cruzadismo?

(Quem achou, ao ler o título deste post, que eu estava a imiscuir-me na vida interna de uma certa agremiação política, desengane-se! Eu não navego por essas águas…)

Fora do mercado



Em cerimónia no passado domingo, em Mateus, os prémios Dom Dinis, relativos a 2020 e 2021, foram atribuídos, respetivamente, a Jorge Silva Melo e a José Viale Moutinho. Jorge Silva Melo (que aproveito para felicitar) viu-se impossibilitado de estar presente na ocasião. 

Um dos discursos da noite (não recordo qual foi) prestou um natural tributo às editoras responsáveis pelas obras, embora sem as mencionar.

Nesse instante, ocorreu-me (imagino que outros terão tido, intimamente, o mesmo reflexo) que a casa que editou o “A Mesa está Posta”, de Jorge Silva Melo, os excelentes ”Livros Cotovia” (onde foram publicados outros livros de Silva Melo), já está, infelizmente há bastantes meses, “fora do mercado” - para aproveitar uma expressão que, no tempo da outra senhora, se usava dizer para alguns livros que havia sido ”recolhidos” por essa mesma senhora.

terça-feira, novembro 02, 2021

Morfeu


Quem condena Joe Biden e Boris Johnson por terem adormecido durante discursos na COP 26 é gente que não anda neste mundo das reuniões internacionais. Eu já dormi de pé! E cheguei a adormecer em discursos de políticos portugueses que acompanhava oficialmente. Já prescreveu, já posso contar.

A Turquia e a União Europeia

 


Mateus


Tem já mais de meio século a Fundação da Casa de Mateus. No domingo, estive por lá, uma vez mais, convidado para a entrega do seu prémio Dom Dinis, que anualmente distingue uma personalidade autora de uma obra, um nome do universo cultural nacional. No seu conjunto, é já uma lista impressionante de figuras, como o presidente da República bem lembrou.

Mateus, para a cidade de Vila Real, constitui uma marca muito forte. É bom que, com a independência que Fundação sempre soube preservar, a aliança com a urbe e o seu município se faça cada vez mais sentir. Todos ganham. Melhor, como vila-realense, digo: todos ganhamos. 

E foi muito bom que Marcelo Rebelo de Sousa ali tivesse anunciado que Fernando de Albuquerque, centro e alma da Casa de Mateus, vai ser proximamente agraciado com a grã-cruz do Infante. É de meridiana justiça. E a nossa República, pessoa de bem, tem a justiça nos seus genes.

segunda-feira, novembro 01, 2021

Que fazer?

Um dia, que pode não estar muito distante, constatar-se-á que há medidas que a luta contra o aquecimento global tornará imperativas mas para as quais não haverá apoio democrático maioritário - porque muitas pessoas estão mais preocupadas com o fim do mês do que com o fim do mundo.

domingo, outubro 31, 2021

Outono em Vila Pouca


Cabrito, castanhas, javali, cogumelos. O menu, sazonal, andava por estas coisas. Claro que a posta de vitela também estava ali ao lado e até se provou uma alheira, para picar, antes da chegada das coisas mais substanciais. Para dar lastro líquido, escolhi um reserva de Arcossó, terra da minha bisavó. Tudo estava mais do que excelente, mas, se me permitem um destaque, a sopa (um “velouté”) de castanhas e míscaros era de comer e chorar por mais. Ainda olhei o bolo de castanha, mas não quis fazer mais uma asneira, embora, como diz um amigo, só se vive uma vez e esta é a última, ao que consta.

Que bem que se continua a comer na casa da família Machado, no restaurante Costa do Sol, no hotel Aguiar da Pena, em Vila Pouca de Aguiar!

quinta-feira, outubro 28, 2021

Mesa Dois


O “Procópio”, na sua Mesa Dois (na imagem), continuou a ser uma casa inspirada, na noite da crise política. 

Perguntava alguém: “Então agora que o Costa tinha derrubado o ‘muro’, o PCP puxa-lhe o tapete?”. 

Respondia outro: “É natural. Afinal, não foi por vontade dos comunistas que o Muro de Berlim caiu…”

O dilema

 Um país entre a foice e o Marcelo! 

Vá lá! Acertaram!


 

quarta-feira, outubro 27, 2021

Vai ser bem melhor!

É claro que o PCP e o Bloco fizeram muitíssimo bem ao terem rejeitado um orçamento que não aceitava as suas propostas!

É mais do que óbvio que, com um governo PSD/CDS, todas essas ideias irão ser recebidas com grande carinho.

segunda-feira, outubro 25, 2021

domingo, outubro 24, 2021

“Observare”


A vida faz-se de ciclos. E os ciclos fecham-se. 

Há um ano, o professor Luís Tomé, que dirige o centro de investigação “Observare”, na Universidade Autónoma de Lisboa, foi desafiado, pelo então jornalista da TVI Pedro Pinto, a organizar um programa de análise e debate sobre relações internacionais na TVI 24, que passaria a ter o nome daquele centro. 

Luís Tomé e Pedro Pinto convidaram o professor Carlos Gaspar e eu próprio, ambos colaboradores daquele centro de investigação, a integrar, em permanência, o programa.

O “Observare” da TVI 24 durou precisamente um ano. Pedro Pinto saiu, entretanto, da estação e Filipe Caetano e Pedro Bello Moraes assumiram a coordenação do programa. Ao longo deste ano, outros investigadores da UAL foram chamados a participar, nas nossas faltas ou para aprofundar temáticas em que eram especialistas.

A TVI24 vai passar a ser, dentro de um mês, a nova CNN Portugal. O “Observare” não fará parte da sua grelha, pelo que o nosso programa fica por aqui.

Um forte agradecimento ao Luís Tomé, que me formulou o convite para integrar o núcleo de colaboradores residentes, mas igualmente aos jornalistas da TVI que nos acompanharam, pelo seu profissionalismo e pela simpatia da sua companhia. Foi uma experiência muito interessante e estimulante, creio que para todos nós. 

Mas desejo, muito em especial, deixar a minha gratidão a quantos acompanharam o programa, alguns dos quais nos foram fazendo chegar reações e sugestões, ao longo destes 12 meses. Foi para eles que trabalhámos.

O ciclo do “Observare” na TVI encerrou agora. A vida continua.

sábado, outubro 23, 2021

Aristides de Sousa Mendes


(Intervenção que ontem proferi na homenagem a Aristides de Sousa Mendes, na Casa das Artes, no Porto, numa iniciativa promovida pelos deputados do PS ao Parlamento Europeu)

Quero, antes do mais, manifestar o meu agradecimento à Dra. Isabel Santos, pelo amável convite que me formulou, para estar intervir nesta ocasião, representando, nesse seu simpático gesto, todos os colegas do seu partido no Parlamento Europeu. 

É, para mim, um privilégio - ao mesmo tempo, pessoal e profissional - a circunstância de estar aqui hoje, neste que é um tempo feliz, um tempo de tributo nacional à figura de Aristides de Sousa Mendes, personalidade que o Panteão Nacional, a velha igreja de Santa Engrácia, acaba de consagrar. 

De certa forma, esta tardia atitude de reconhecimento e de justiça para com esta personalidade, que hoje aqui nos reúne, acaba por assemelhar-se às históricas atribulações temporais da construção da igreja onde a sua memória fica para sempre guardada. Ironicamente, quase que poderíamos dizer que a justiça em torno de Sousa Mendes também seguiu um penoso caminho, similar àquele que marcou as “obras de Santa Engrácia”, como o povo antes dizia.

Há dias, dei comigo a pensar - e julgo que todos quantos estão nesta sala poderão fazer um idêntico exercício - quando teria sido a primeira vez que ouvi falar da figura de Aristides de Sousa Mendes. Ontem mesmo, decidi fazer essa pergunta a três conhecidos historiadores contemporâneos portugueses: quando é que tomaram conhecimento da existência de Aristides Sousa Mendes? 

Sem exceção, todos ficaram na dúvida, mas também todos tinham uma comum certeza, a mesma que eu tinha: isso só aconteceu após o 25 de abril, já na década de 80. Note-se que estamos a falar de acontecimentos ocorridos nos anos 40. Só quatro décadas depois é que eles chegam ao domínio público em Portugal, mesmo a entidades especializadas.

E a sensação que tenho é que essa informação, pelo menos no que me toca, surgiu de fontes do exterior, creio que de origem judaica, que seriam depois retomadas entre nós. 

Eu já era então funcionário diplomático - entrei para a carreira nesse belo ano que foi 1975 - quando soube que tinha havido um diplomata português que, durante a Segunda Guerra Mundial, havia desobedecido às ordens da ditadura - melhor, às ordens do ditador, que era então também ministro dos Negócios Estrangeiros do governo que chefiava. Essa pessoa, esse diplomata, havia decidido facilitar a emissão de vistos para Portugal a alguns milhares de refugiados, que apressadamente procuravam escapar à sina que a invasão nazi da França lhes dava como sinistro destino.

Terá sido por esses tempos, em que o nome de Aristides de Sousa Mendes surgiu pela primeira vez a muitos de nós, não há muito tempo aportados ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, que fomos confrontados com uma outra surpresa: afinal, Aristides de Sousa Mendes era bem conhecido dentro do ministério em que trabalhávamos. É verdade: ficou logo muito claro que, no seio das Necessidades, o nome de Aristides de Sousa Mendes estava longe de ser desconhecido. 

Sousa Mendes fazia já parte, como o tempo ajudou a constatar, daquilo que era considerado uma “vergonha” para uma certa carreira. Uso a palavra com todo o peso como a ouvi, por mais de uma vez. É que ele tinha sido a cara de quem tinha ousado dizer não a uma determinação do Estado Novo. O facto dessa instrução ser ignóbil - e é pedagógico lê-la, para se saber do que falamos - não absolvia minimamente quem se opusesse ao seu cumprimento. Era a questão da disciplina - temo mesmo falar de lealdade - que separava Sousa Mendes de quantos entendiam que ordens com um selo oficial eram para cumprir sempre, não eram para discutir nunca.

E aqui entronca uma segunda dimensão, porventura já com um viés político, e até social, que marca o olhar das Necessidades sobre as ações do cônsul rebelde. É que Sousa Mendes - e este é um aspecto muito interessante e que espero que entendam na aceção que quero significar - era “um deles”, era alguém que sempre se mostrara consonante com as finalidades do regime, que até tinha um irmão que fora ministro de Salazar. 

Sousa Mendes não era sequer um dissidente ideológico, alguém que se passara para o “outro lado” do mundo a preto e branco do Portugal de então, desses tempos das listas do MUD e resistência frentista contra o Estado Novo. Sousa Mendes era, muito simples e dignamente, uma pessoa de formação conservadora e o facto de o ser, a circunstância de não haver, por detrás das suas ações, uma motivação ideológica que pudesse ser vista como de oposição, torna - a meu ver - muito mais notável e genuína a sua revolta contra desumanidade que as circulares lhe queriam impor.

Nesse seu sobressalto ético, Aristides de Sousa Mendes encarna um corpo moral de valores que passa por cima de todas as ideologias. Fosse ele um homem de esquerda e dir-se-ia que cumpria uma agenda política. Ora sendo ele uma figura com anteriores e evidentes simpatias pelo Estado Novo, que então lhe queria “forçar a mão”, o seu gesto representa o que de mais nobre uma figura humana pode ter: a coragem de lutar, sem medo, pelo direito mais básico do seu semelhante, o direito à proteção e à vida.

No Ministério dos Negócios Estrangeiros, infelizmente para a honra do convento de Nossa Senhora das Necessidades, o tom oficioso predominante, por muito tempo, mesmo já bem dentro da democracia, e até titulado por figuras já aparentadas com essa democracia, era marcado por uma diabolização da imagem de Aristides de Sousa Mendes. Esse tom ia desde uma miserável e até hoje recorrente imputação de motivações financeiras, até a uma, mais benévola mas não menos menorizante, sobranceira desculpabilização, feita na base de uma perturbação mental que teria embotado, sem remissão, o equilíbrio do seu comportamento.

Como disse, tudo isto se passava já bem dentro do regime democrático, através de figuras que tenho por pessoas de bem (e eu gosto do conceito, não admitindo que ele seja apropriado por ninguém ), pessoas que eu me tinha habituado a respeitar profissional e humanamente. Essas pessoas, e não eram tão poucas quanto isso, sendo por décadas maioritárias em postos elevados da casa, continuaram, alguns mesmo até ao final da sua vida, completamente “colonizados” por esses preconceitos.

Alguns estarão a pensar: afinal não será de estranhar, atenta a estirpe social e política que sempre marcou a natureza da Carreira durante o Estado Novo, onde as escassas exceções de gente comprometida com a democracia mal sobreviviam num mar de obediência quase acrítica face ao regime. As coisas podem não ser bem assim, há “nuances” a considerar, mas admitamos, por simplificação, que esta pode ser uma justificação satisfatória.

Portanto, se por esse lado não há surpresas, por que razão o “outro lado“ nunca abriu a boca, a clamar do escândalo? Por que será que nunca ninguém, na oposição democrática portuguesa, alguma vez suscitou o facto de ter havido um funcionário público do Estado Novo que arruinou a sua profissão, a estabilidade da sua vida e dos seus familares, num gesto que, tendo configurado, no plano formal, uma desobediência burocrática, tinha atrás de si uma clara motivação ética, com consequências humanas que se vieram a revelar extraordinárias? 

Caramba! Passaram décadas! Havia panfletos, denúncias, sobre demissões, atos arbitrários e outras patifarias do fascismo. Nem uma palavra sobre Sousa Mendes! E, nesse outro lado da moeda, tinha havido um homem que, com coragem e dignidade, salvara muitas vidas. Lutando abertamente contra a vontade de Salazar!

Ninguém sabia? Ora essa! Se as Necessidades tinham sabido, e bem, ao ponto de o demitirem, a ala democrata que sempre existiu lá dentro, por muito escassa que fosse, não o sabia também? Por que é que isso aconteceu? Porque ele não era - outra vez - “um dos nossos”? Porque não era um anti-fascista, porque Sousa Mendes não tinha credenciais populares ou de esquerda? 

Imagino que possa ser considerado de menos bom gosto trazer aqui esta questão, nos termos em que a coloco. Mas faço-o porque acho extraordinário que os democratas portugueses, tantos anos decorridos depois da revelação dos pormenores deste caso, nunca tenham posto em causa a cumplicidade objetiva que, com o seu silêncio, acabaram por ter com o comportamento miserável da ditadura portuguesa.

Esta questão da “invisibilidade” do fenómeno Sousa Mendes, na vida política de quantos lutavam pela democracria em Portugal, podia-nos levar muito longe.

Há precisamente 27 anos, a Associação Sindical dos Diplomatas Portugueses, cuja direção eu integrava, decidiu criar um prémio para estudos académicos em matéria de política externa portuguesa. Recordo-me bem de logo ter sido aproximado por colegas - mesmo da minha geração - que entendiam que o nome de Aristides de Sousa Mendes, que tínhamos proposto para ser o nome do prémio, pudesse afinal vir a ter outros titulares, em moldes rotativos. Conhecendo bem “do que a casa gasta”, pressenti logo o que aí viria, no futuro, em matéria de patronos alternativos…

Nos anos seguintes, Jaime Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros em dois governos do PS que tive o gosto de integrar, soube assumir as atitudes que se impunham, para a recuperação da imagem e estatuto de Aristides de Sousa Mendes. 

Teve como opositora a resistência de algum “establishment”, que procurou convencê-lo de que pairavam sobre Sousa Mendes persistentes nuvens de suspeição, que recomendavam grande prudência no reconhecimento da legitimidade das ações do cônsul rebelde. O movimento contra Sousa Mendes só se atenuou quando as leis inexoráveis da vida se foram impondo aos seus detratores. 

Quando, em 2007, era eu então embaixador no Brasil, um programa e concurso televisivo, em torno dos “Grandes Portugueses”, trouxe o nome de Aristides de Sousa Mendes à ribalta, escrevi um artigo de regozijo no “Diário de Notícias”. Logo recebi três cartas iradas de antigos colegas de carreira, lamentando a minha solidariedade com a figura do cônsul ostracizado.

Por estes tempos, essas vozes desapareceram, mas talvez não seja por acaso - melhor, sei bem que não é por acaso - que uma nova força política, que faz do ódio e da discriminação o eixo da sua doutrina populista, surge, por estes dias, a espalhar as habituais insídias contra Sousa Mendes.

Sousa Mendes ainda incomoda um certo país, ainda incomoda um certa camada diplomática tributária da pior herança do antanho, ainda motiva um certo ranço discriminatório, a que não é alheio algum anti-semitismo - é preciso dizer isto alto, com todas as palavras.

Sou, fui, um diplomata da democracia, com quase quatro décadas ao serviço da República. Tive um grande orgulho em ter sido um servidor público. Habituei-me a trabalhar sobre regras de disciplina e de lealdade funcional, num regime democrático que nos oferece todos os necessários “checks and balances” de um país livre.

O exemplo de Aristides de Sousa Mendes foi, até ao final da minha carreira pública, uma forte inspiração, no sentido de me ter ajudado a concluir que um serviço público sem ética, desprovido de valores e de sólidos referentes morais, que não questione a legitimidade daquilo que é levado a promover, numa espécie de “realpolitik” oportunista, é algo cuja dignidade não só é muito duvidosa como é simplesmente amoral. 

Como pessoa de bem, Aristides de Sousa Mendes, nessas horas angustiadas e confusas de Bordéus, terá prenunciado Régio: “Não sei por onde vou, não sei para onde vou, sei que não vou por aí”. 

Não foi. Para sua honra e para nosso orgulho.

quinta-feira, outubro 21, 2021

Dona inflação

Está aí a chegar. Devagar, como quem não se quer fazer sentir de forma súbita. É uma senhora que todos nós conhecemos, de quem muitas vezes nos queixamos, mas que, por muito surpreendente que possa parecer, faz falta aos ciclos da nossa vida. Chama-se dona Inflação.

“A Arte da Guerra”


Esta semana, a minha conversa com António Freitas de Sousa, no “A Arte da Guerra”, o podcast da plataforma audiovisual do “Jornal Económico”, começa por abordar a posição alemã no processo de diálogo europeu com Ancara, bem como as ambições regionais da Turquia, com especial nota para a sua pouco abordada mas muito forte agenda africana. Depois, falamos do crescendo de tensões entre o Reino Unido e Bruxelas, pelo flagrante incumprimento britânico do protocolo que subscreveu sobre a Irlanda do Norte, não obstante recentes gestos de apaziguamento da Comissão Europeia. Na terceira parte do programa, tratamos da exemplaridade do processo democrático em Cabo Verde, demonstrado nas últimas eleições presidenciais. É feito um paralelo com os casos, também muito diferentes entre si, de São Tomé e Príncipe e da Guiné-Bissau.

Pode ver clicando aqui

quarta-feira, outubro 20, 2021

As democracias de que a América gosta


Joe Biden tinha anunciado, ainda antes da sua eleição, a intenção de fazer uma Cimeira das Democracias, logo no primeiro ano do seu mandato. 

Assim, nos dias 9 e 10 de dezembro, um grande exercício telemático terá lugar, sob convite do presidente americano, envolvendo 77 países. 

Dois deles não são membros da ONU: o Kosovo, já com independência declarada mas só reconhecida por alguns, e Taiwan, uma democracia também sem o estatuto de membro da ONU e que os EUA sempre consideraram, formalmente, ser um território da “única” China).

As Nações Unidas têm, nos dias de hoje, 193 países. Descontados o Kosovo e Taiwan, fica a saber-se que Washington acha que há 118 países que não cumprem os “mínimos” para serem considerados democráticos (tirando o Butão, Andorra, Mónaco, Lichtenstein e São Marino, que, pelos vistos, não se “veem” da América, embora todas as ilhotas do Pacífico e Caraíbas por ali estejam).

Tem alguma graça olhar constatar que, nessa matriz de generosa escolha, se irão encontrar grandes expoentes democráticos como são Rodrigo Duterte, das Filipinas, ou Jair Bolsonaro, do Brasil. 
Atenta a lógica dessas e de outras presenças, é legítimo estranhar algumas ausências: Marrocos, Bósnia-Herzegovina, Jordânia. Outras, embora esperadas, como a Turquia e a Hungria, não deixam de ser de notar. 

Nenhum país no norte de África figura na lista dos convidados, tal como acontece com qualquer monarquia do Golfo. E Moçambique, a par da Guiné-Bissau e a Guiné Equatorial, é um Estados membros da CPLP que não foi escolhidos.

Joe Biden só por demagógica precipitação se deixou enredar neste estranho e inútil exercício seletivo. 
A pergunta é, eu sei!, uma impossibilidade absurda, mas merece ser feita: se a América ainda estivesse no tempo de Trump, com o seu sistema eleitoral “in shambles” e um Capitólio sob ataque de uns maluquinhos estimulados pelo chefe do Estado, será que seria convidada para a cimeira?

O PS e o seu orçamento

Em 2015, aquando da criação da Geringonça, o potencial efeito negativo pressentido na imagem externa do país, pela associação do PCP e BE à área de poder, viria a ser compensado pela criação de um “firewall” nas questões dos compromissos europeus, da NATO e em tudo quanto aqueles dois partidos tinham de mais desviante face ao que até então fora qualificado como o “arco da governação”.

O facto de um presidente com o perfil de Cavaco Silva, depois de todas as suas cassândricas adivinhações, ter acabado por dar posse ao governo de António Costa, acabou, ironicamente, por conferir a este maior credibilidade do que aquela que derivava da lógica política da solução encontrada. (O recente artigo de Cavaco Silva no “Expresso” é o pedaço de pão com que tenta tirar a espinha que traz encravada na garganta, desde 2015).

A fim de ser entronizado no poder, o PS teve de pagar um preço na reversão de privatizações nos transportes, bem como em algumas outras medidas de sentido idêntico. Fê-lo, contudo, com conta, peso e medida, por forma a não assustar investidores e prejudicar uma primeira impressão que queria criar.

Um terreno em que o PS foi sempre muito cauteloso foram as leis laborais, onde o “risco” Portugal poderia facilmente subir. É que os socialistas sabem que operam sempre num ambiente de potencial suspeição, quando adotem medidas que possam ser lidas, numa União Europeia muito “market-oriented”, como incompatíveis com os níveis nacionais de competitividade e, por isso, como menos sustentáveis na ação dos operadores económicos nacionais. Salvo escassas exceções, algumas apenas conjunturais ou de oportunidade, estes últimos não costumam esbanjar grande simpatia face ao Largo do Rato.

Grande parte da imprensa económica, aliás, é um espelho tão perfeito do preconceito que até se converteu num reflexo caricatural desses mesmos meios. Há também por aí um micro-partido que se esforça, à saciedade, para ser visto como leal súbdito político desses interesses.

À esquerda, o “abraço do urso” do PS aos parceiros acabou por tornar-se algo desconfortável para estes, pelas consequências eleitorais que se conhecem: os votantes tenderam a agradecer ao partido que lidera o governo e acabaram por ser “ingratos” para quem, afinal, terá forçado o PS a certas medidas.

Mas será que “forçou” mesmo? O PS é, gostem alguns ou não, um partido de esquerda e há nele muito boa gente que apreciou vê-lo seguir uma agenda de reversão das loucuras do tempo da Troika, fosse isso feito por pressão à sua esquerda ou por convicção própria. O caso das 35 horas na Função Pública é um caso típico de uma medida que visivelmente agrada às bases de votantes socialistas. No PS, há muito quem pense que, se é para executar políticas de direita, então há outros partidos no mercado. (Não vale a pena tentar conciliar o inconciliável: uns verão sempre as 35 horas como uma medida injusta e sem racionalidade económica, outros considerá-la-ão um passo no caminho certo e um gesto de justiça e de grande alcance).

O PS não o dirá nunca mas há que reconhecer que governou, embora com habilidade, nas margens da sua própria credibilidade política, no modo como esta é vista à esquerda. Na utilização imoderada do perverso mecanismo das cativações, que chega a ser insultuoso face à vontade democrática que antes aprova os orçamentos em sede parlamentar, e no incumprimento objetivo de compromissos assumidos com os parceiros, muitas vezes apenas para fazer “um bonito” na Europa, o PS foi, algumas vezes, longe demais. E está a pagar por isso.

É que os socialistas sabem que o PCP opera sempre com uma agenda “de rua”, seja para compensar a sua fragilidade nas urnas, seja para reforçar o seu poder, quando este ainda não declinara. No dia em que o PCP pressentiu que o custo de apoiar o PS na AR se tornava demasiado, essas “tropas” ficaram muito mais à solta. (Há uma interessante dialética entre o PCP e a CGTP que é uma das chaves da vida política na esquerda portuguesa, coisa que só raramente aconteceu entre o PS e a UGT). Terá chegado o momento do divórcio?

Nas horas que correm, para o PS, a questão é que muitas das medidas que os parceiros exigem para votarem este OGE, a serem aceites, poriam em causa a imagem de rigor que, desde 2015, quis preservar a todo o preço - perante o país e face à Europa. Essa é a fronteira que António Costa sabe que não pode atravessar. Não lhe invejo a tarefa! Mas desejo-lhe muito boa sorte.

domingo, outubro 17, 2021

“Hush-hush”


Não, não é um fantasma. É o reflexo no espelho de uma senhora que, desde que saímos de Campanhã, fala incessantemente com uma amiga a quem passa segredos que “peço que não contes a ninguém”. A amiga pode não contar, mas eu estou farto de os saber e também farto de a ouvir. Durará a chamada até Coimbra B?

Um recado a Moedas

O excelente jornal ”Mensagem de Lisboa” ouviu algumas pessoas, a quem pediu uma - e só uma - sugestão para o novo presidente do município de Lisboa, Carlos Moedas. Aqui fica a minha:




Mesas seguras


Tenho a mania de experimentar novos restaurantes. Mas há dias em que me sinto mais conservador e decido ir a locais seguros, sem surpresas, onde sei que não vou ter novidades mas tenho uma garantia segura de qualidade.

Foi o caso de ontem e hoje, nas menos de 24 horas que passei no Porto, onde, esta manhã, vim fazer uma “função” numa universidade.

Ontem, chegado a Campanhã, passei pela “Cozinha do Manel”, onde o Zé António tinha guardada para mim uma mesa, numa noite (felizmente) bem cheia de clientes. É a minha “cantina” preferida no Porto, ao lado de um hotel onde habitualmente me alojo, um ambiente solto, amável, de cozinha portuguesa tradicional. 

Hoje, antes de regressar a Lisboa, apanhando o Alfa Pendular em Campanhã, fui almoçar ao Líder, um pouso igualmente muito seguro perto da praça Velasquez, nas Antas, regido pela simpatia do Manuel Moura. Um restaurante de famílias aos fins de semana, de negócios nos dias úteis. 

As boas mesas nunca passam de moda.



Não nos desiludam!

Já há abaixo-assinados contra a decisão sobre o novo aeroporto? E providências cautelares? Então e as objeções ambientais, de invejas locais...