A Netflix está a passar a série portuguesa “Glória”, situada em 1968. A história gira em torno de um jovem engenheiro, filho de um secretário de Estado da ditadura, que é militante comunista clandestino e que consegue ser colocado na Raret, com vista a executar ações “subversivas”. E que tinha uma bela namorada. Vi hoje o primeiro episódio da série. Não me entusiasmou, pelo que não tenciono ver os restantes.
A Raret era uma estrutura secreta de emissores que, durante a Guerra Fria, emitia de um determinado local no Ribatejo para os países comunistas, difundindo mensagens oriundas dos Estados Unidos, no quadro da atividade da “Rádio Europa Livre”. Essa ”ação psicológica” funcionava em sentido oposto ao das emissões que, da Rússia e de outros países do “bloco de Leste”, eram emitidas para o “lado de cá”.
Nesse tempo da ditadura, em termos públicos, a Raret era, entre nós, um “não assunto”. A imprensa não se lhe referia e o tema era verdadeiramente tabu, só mencionado à “boca pequena”.
Vim viver para Lisboa, em 1968, para casa de um tio, nos Olivais. Num dos primeiros dias, com ele partilhei o elevador ao lado de um cavalheiro. O meu tio cumprimentou-o. Era nosso vizinho de andar.
Quando ficámos sós, o meu tio perguntou-me: “Sabes o que é a Raret?”. Eu sabia. “Este tipo é engenheiro lá. E tem uma mulher muito bonita!” O meu tio era muito atento às mulheres.
Dias depois, vim a constatar que ele tinha a toda razão. A senhora era lindíssima, muito bem “desenhada” e, além disso, extremamente simpática, como confirmava quando acaso coincidíamos no elevador. Era o contrário do marido, este sempre com um ar macambúzio, como talvez tivessem a obrigação de ser as figuras ligadas a coisas tão misteriosas como a Raret. Nunca soube o nome do casal.
Como se vê, em 1968, havia na Raret engenheiros que tinham mulheres muito bonitas. Tal como no cinema.
4 comentários:
Goste-se ou não da série, trouxe à memória actual uma estrutura e actividades que estavam esquecidas e por isso agradeço ter sido referida aqui.
As instalações da Raret estão ao abandono, delapidadas, parte do seu espólio foi vendido como sucata e outra parte enviada para os Estados Unidos. Assim se respeita o património em Portugal.
Noutros países em várias regiões do Globo as instalações teriam sido preservadas ou recuperadas e existiria um pequeno museu que traria algum dinamismo local e faria trabalho muito útil com escolas - desde o Eden Camp e o Bletchley Park aos museus de guerra Sul Coreanos.
Sempre achei paradoxal a tendência portuguesa para puxar os galhardetes como um dos países mais antigos da Europa e depois mostrar uma negligência e desrespeito inacreditáveis pelo seu património. Não é só uma questão de pobreza material.
AV, de acordo :)
Já vou no quarto ou quinto episódio e posso dizer que é uma série agradável de seguir.
Nota-se o tique do realizador (as personagens sempre a acenderem cigarros como em "A Herdade"), e os lugares comuns do costume: as únicas dimensões da guerra são angústia, a dúvida e a morte; as pessoas de esquerda preocupam-se com os outros, as de direita nem por isso; o pessoal ligado ao regime é mau e "aristocrático"; enfim, tudo nos "moldes"...
Venham mais séries assim. Na pior das hipóteses, entretêm.
E viva o Mundo Livre, claro!
O engenheiro da Raret devia ser o engenheiro Horácio Neto, que foi um dos alunos mais brilhantes do liceu Salazar, em Lourenço Marques, hoje Maputo. Ele e a mulher formavam um casal muito unido. Quando ela faleceu, ele nunca mais saiu do quarto da casa onde vivia.
Foi um luto extremo que faz lembrar o luto de Electra, na famosa peça de Eugene O'Neill. Pareceu-me interessante recordar isto, que me contou um colega de meu pai, dos CTT de Moçambique, que, depois de reformado, em Moçambique, trabalhou muitos anos na Raret, com o engenheiro Horácio Neto.
Eugénio Lisboa
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