domingo, novembro 07, 2021

Turquia


Há poucos anos, quando li na imprensa (há muito que não faço parte dos “mentideros” das Necessidades, que, por antecipacão, sabem “quem vai” e “para onde”) que uma colega e amiga tinha sido colocada na Turquia, mandei uma mensagem a felicitá-la (faço isso muito poucas vezes, razão por que o noto). E fi-lo com grande sinceridade. Não porque Ancara seja a cidade mais agradável do mundo para se viver (embora Istambul seja uma das cidades mais fascinantes que conheço), mas porque penso que, nos dias de hoje, a Turquia é um “lugar geométrico” privilegiado, onde se cruzam realidades geopolíticas muito diversas e contraditórias. E muito importantes para todos nós. A começar pelos profissionais da diplomacia.

(Costumo dizer que os postos da carreira que, para um diplomata português, valem realmente a pena são aqueles onde aquilo que escrevemos é lido com atenção em Lisboa. E Ancara é, seguramente, nestes tempos, um deles. Há capitais magníficas, cómodas e agradáveis para se viver, mas de onde um diplomata não consegue enviar muita coisa que interesse à “Secretaria de Estado” (para quem não saiba, é assim que, na linguagem da profissão, são tratados os serviços do MNE sedeados em Lisboa). E, depois, há cidades menos glamorosas, às vezes com um quotidiano mais difícil e até com riscos pessoais, onde o que dali se escreve consegue ter algum “peso” na opinião das Necessidades. Sei do que falo: já trabalhei em postos de ambos os géneros.)

Quando, há meses, o professor Luís Tomé me convidou a fazer, na Universidade Autónoma de Lisboa, um mano-a-mano com o jornalista Rui Cardoso, sobre a Turquia e a sua relação com a União Europeia, não hesitei um segundo em aceitar. E não me arrependi. Foi um debate muito útil, com participação do auditório e de umas dezenas de pessoas que nos acompanhavam por Zoom. Sem falsa modéstia, creio que abordámos, com algum rigor, o essencial daquilo que é o cenário de ação externa da Turquia nos dias que correm. Na perspetiva da relação de Ancara com a União Europeia, falou-se de também de outros atores ligados ao tema: EUA, África, países do Golfo, Rússia, Israel, Líbia, Síria e até da China e da Venezuela. 

Veio-me então à memória uma deslocação que fiz à Turquia em 2000, em representação da presidência da União Europeia. Vivia-se um tempo posterior à decisão tomada no Conselho Europeu de Helsínquia, em dezembro de 1999, que havia aceitado a Turquia como candidato a uma futura adesão, dando pela primeira vez sequência ao seu pedido, datado já de 1987. 

A classe política turca vivia dividida entre quantos ansiavam que o processo negocial encaminhasse o país para uma entrada nas instituições europeias, com impacto na rapidez de “aggiornamento” do país, e aqueles que temiam que as reformas exigidas para a adesão viessem a descaraterizar o país. Nestes últimos estavam os setores islâmicos. 

Num jantar que tive com deputados turcos, não uniformes nas suas linhas ideológicas, quando ecooei o sentimento prevalecente em Bruxelas, no sentido da Turquia dever abandonar a pena de morte (falava-se então da possibilidade iminente de ela ser aplicada ao líder curdo Albdullah Öcalan, rompendo uma moratória que o país estava a seguir nos últimos anos), detetei uma forte reação por parte da maioria dos presentes: Ancara não admitia essa “ingerência” nos seus assuntos internos. Quando, com serenidade, expliquei que essa era uma condição “sine qua non” para a adesão, levantou-se quase um clamor. A Turquia “não era um país qualquer”, passível de pressões externas. No final da refeição, que terminou num ambiente cordial mas um pouco tenso, uma assessora minha comentou: “Parecia que era a União Europeia que estava a tentar aderir à Turquia, não o contrário…”

Receção muito diferente seria o que me aguardava, no dia seguinte, numa palestra que fiz na “Middle East University”. O sentimento prevalecente, nas mais de duas centenas de estudantes com os quais debati o tema da relação entre a Turquia e a Europa, revelava uma esmagadora vontade do país se juntar à “família” europeia, pela certeza de isso poderia funcionar como uma alavanca para a modernidade da sociedade. 

Hoje, mais de duas décadas depois, sabemos quem ganhou essa “guerra”. 

Com a maior convicção, acho que são cada vez mais remotas, senão mesmo nulas, as hipóteses de algum dia a Turquia vir a ser um membro da União Europeia. O que, no entanto, não significa que devamos descurar minimamente as relações com aquele país charneira, cujo curso político continuará a ser da maior importância para a Europa e para o mundo.

6 comentários:

jj.amarante disse...

Em tempos achei que que a adesão da Turquia à União Europeia era não só desejável como mesmo possível e manifestei essa opinião aqui: https://imagenscomtexto.blogspot.com/2008/04/adeso-da-turquia-unio-europeia.html. Agora também acho que ficou impossivel por alguns decénios. A Alemanha e a França recearam o peso demográfico dos turcos, a Alemanha provavelmente preocupa-se com a (falta de) integração da numerosa comunidade turca que para lá emigrou, os franceses têm uma comunidade arménia muito importante. Talvez daqui a uns 50 anos...

Luís Lavoura disse...

a Turquia é um “lugar geométrico” privilegiado

É por isso que a Turkish Airlines é a maior transportadora aérea internacional da atualidade, tendo, segundo creio, ultrapassado as transportadoras do Golfo.

Luís Lavoura disse...

Hoje, mais de duas décadas depois, sabemos quem ganhou essa “guerra”.

O Francisco escreve como se a "guerra" tivesse sido somente (ou sequer principalmente) entre diferentes setores da "polis" turca. Na verdade, a "guerra" foi-o também entre diferentes setores da "polis" da União Europeia. E também aqui a "guerra" foi claramente ganha pelos adversários do alargamento em geral, à Turquia em particular. Em grande parte, aliás, na Turquia ganharam os adversários da adesão por eles terem ganhado já antes na União Europeia. Foi sobretudo a rejeição da Turquia por parte da União que causou a rejeição da União por parte da Turquia.

Luís Lavoura disse...

Entretanto, é interessante notar a forma deferente como a Turquia tem sido tratada pela União Europeia.
Colocada perante um grande número de migrantes vindos da Turquia, a União fez um acordo com esta, pagando-lhe para manter os migrantes no seu território.
Colocada perante um pequeno número de migrantes vindos da Bielorrússia, a União insulta esse país e propõe-se aumentar o nível de sanções a que o sujeita.
Claramente, há dois pesos e duas medidas.

Luís Lavoura disse...

Faço minhas as palavras do ministro dos Negócios Estrangeiros russo: "Yesterday, at a political science discussion, the question was asked why, when refugees were coming through Turkey, did the EU allocate funds to enable them to stay in Turkey? Why is it impossible to help the Belarusians in this way?"
Em tradução inglesa em https://www.rt.com/russia/539809-eu-pay-belarus-migrants-crisis/.

Paulo Guerra disse...

Uma enciclopédia diplomática. Muito obrigado pela divulgação de tanto saber acumulado Sr. Embaixador.

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