(Intervenção que ontem proferi na homenagem a Aristides de Sousa Mendes, na Casa das Artes, no Porto, numa iniciativa promovida pelos deputados do PS ao Parlamento Europeu)
Quero, antes do mais, manifestar o meu agradecimento à Dra. Isabel Santos, pelo amável convite que me formulou, para estar intervir nesta ocasião, representando, nesse seu simpático gesto, todos os colegas do seu partido no Parlamento Europeu.
É, para mim, um privilégio - ao mesmo tempo, pessoal e profissional - a circunstância de estar aqui hoje, neste que é um tempo feliz, um tempo de tributo nacional à figura de Aristides de Sousa Mendes, personalidade que o Panteão Nacional, a velha igreja de Santa Engrácia, acaba de consagrar.
De certa forma, esta tardia atitude de reconhecimento e de justiça para com esta personalidade, que hoje aqui nos reúne, acaba por assemelhar-se às históricas atribulações temporais da construção da igreja onde a sua memória fica para sempre guardada. Ironicamente, quase que poderíamos dizer que a justiça em torno de Sousa Mendes também seguiu um penoso caminho, similar àquele que marcou as “obras de Santa Engrácia”, como o povo antes dizia.
Há dias, dei comigo a pensar - e julgo que todos quantos estão nesta sala poderão fazer um idêntico exercício - quando teria sido a primeira vez que ouvi falar da figura de Aristides de Sousa Mendes. Ontem mesmo, decidi fazer essa pergunta a três conhecidos historiadores contemporâneos portugueses: quando é que tomaram conhecimento da existência de Aristides Sousa Mendes?
Sem exceção, todos ficaram na dúvida, mas também todos tinham uma comum certeza, a mesma que eu tinha: isso só aconteceu após o 25 de abril, já na década de 80. Note-se que estamos a falar de acontecimentos ocorridos nos anos 40. Só quatro décadas depois é que eles chegam ao domínio público em Portugal, mesmo a entidades especializadas.
E a sensação que tenho é que essa informação, pelo menos no que me toca, surgiu de fontes do exterior, creio que de origem judaica, que seriam depois retomadas entre nós.
Eu já era então funcionário diplomático - entrei para a carreira nesse belo ano que foi 1975 - quando soube que tinha havido um diplomata português que, durante a Segunda Guerra Mundial, havia desobedecido às ordens da ditadura - melhor, às ordens do ditador, que era então também ministro dos Negócios Estrangeiros do governo que chefiava. Essa pessoa, esse diplomata, havia decidido facilitar a emissão de vistos para Portugal a alguns milhares de refugiados, que apressadamente procuravam escapar à sina que a invasão nazi da França lhes dava como sinistro destino.
Terá sido por esses tempos, em que o nome de Aristides de Sousa Mendes surgiu pela primeira vez a muitos de nós, não há muito tempo aportados ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, que fomos confrontados com uma outra surpresa: afinal, Aristides de Sousa Mendes era bem conhecido dentro do ministério em que trabalhávamos. É verdade: ficou logo muito claro que, no seio das Necessidades, o nome de Aristides de Sousa Mendes estava longe de ser desconhecido.
Sousa Mendes fazia já parte, como o tempo ajudou a constatar, daquilo que era considerado uma “vergonha” para uma certa carreira. Uso a palavra com todo o peso como a ouvi, por mais de uma vez. É que ele tinha sido a cara de quem tinha ousado dizer não a uma determinação do Estado Novo. O facto dessa instrução ser ignóbil - e é pedagógico lê-la, para se saber do que falamos - não absolvia minimamente quem se opusesse ao seu cumprimento. Era a questão da disciplina - temo mesmo falar de lealdade - que separava Sousa Mendes de quantos entendiam que ordens com um selo oficial eram para cumprir sempre, não eram para discutir nunca.
E aqui entronca uma segunda dimensão, porventura já com um viés político, e até social, que marca o olhar das Necessidades sobre as ações do cônsul rebelde. É que Sousa Mendes - e este é um aspecto muito interessante e que espero que entendam na aceção que quero significar - era “um deles”, era alguém que sempre se mostrara consonante com as finalidades do regime, que até tinha um irmão que fora ministro de Salazar.
Sousa Mendes não era sequer um dissidente ideológico, alguém que se passara para o “outro lado” do mundo a preto e branco do Portugal de então, desses tempos das listas do MUD e resistência frentista contra o Estado Novo. Sousa Mendes era, muito simples e dignamente, uma pessoa de formação conservadora e o facto de o ser, a circunstância de não haver, por detrás das suas ações, uma motivação ideológica que pudesse ser vista como de oposição, torna - a meu ver - muito mais notável e genuína a sua revolta contra desumanidade que as circulares lhe queriam impor.
Nesse seu sobressalto ético, Aristides de Sousa Mendes encarna um corpo moral de valores que passa por cima de todas as ideologias. Fosse ele um homem de esquerda e dir-se-ia que cumpria uma agenda política. Ora sendo ele uma figura com anteriores e evidentes simpatias pelo Estado Novo, que então lhe queria “forçar a mão”, o seu gesto representa o que de mais nobre uma figura humana pode ter: a coragem de lutar, sem medo, pelo direito mais básico do seu semelhante, o direito à proteção e à vida.
No Ministério dos Negócios Estrangeiros, infelizmente para a honra do convento de Nossa Senhora das Necessidades, o tom oficioso predominante, por muito tempo, mesmo já bem dentro da democracia, e até titulado por figuras já aparentadas com essa democracia, era marcado por uma diabolização da imagem de Aristides de Sousa Mendes. Esse tom ia desde uma miserável e até hoje recorrente imputação de motivações financeiras, até a uma, mais benévola mas não menos menorizante, sobranceira desculpabilização, feita na base de uma perturbação mental que teria embotado, sem remissão, o equilíbrio do seu comportamento.
Como disse, tudo isto se passava já bem dentro do regime democrático, através de figuras que tenho por pessoas de bem (e eu gosto do conceito, não admitindo que ele seja apropriado por ninguém ), pessoas que eu me tinha habituado a respeitar profissional e humanamente. Essas pessoas, e não eram tão poucas quanto isso, sendo por décadas maioritárias em postos elevados da casa, continuaram, alguns mesmo até ao final da sua vida, completamente “colonizados” por esses preconceitos.
Alguns estarão a pensar: afinal não será de estranhar, atenta a estirpe social e política que sempre marcou a natureza da Carreira durante o Estado Novo, onde as escassas exceções de gente comprometida com a democracia mal sobreviviam num mar de obediência quase acrítica face ao regime. As coisas podem não ser bem assim, há “nuances” a considerar, mas admitamos, por simplificação, que esta pode ser uma justificação satisfatória.
Portanto, se por esse lado não há surpresas, por que razão o “outro lado“ nunca abriu a boca, a clamar do escândalo? Por que será que nunca ninguém, na oposição democrática portuguesa, alguma vez suscitou o facto de ter havido um funcionário público do Estado Novo que arruinou a sua profissão, a estabilidade da sua vida e dos seus familares, num gesto que, tendo configurado, no plano formal, uma desobediência burocrática, tinha atrás de si uma clara motivação ética, com consequências humanas que se vieram a revelar extraordinárias?
Caramba! Passaram décadas! Havia panfletos, denúncias, sobre demissões, atos arbitrários e outras patifarias do fascismo. Nem uma palavra sobre Sousa Mendes! E, nesse outro lado da moeda, tinha havido um homem que, com coragem e dignidade, salvara muitas vidas. Lutando abertamente contra a vontade de Salazar!
Ninguém sabia? Ora essa! Se as Necessidades tinham sabido, e bem, ao ponto de o demitirem, a ala democrata que sempre existiu lá dentro, por muito escassa que fosse, não o sabia também? Por que é que isso aconteceu? Porque ele não era - outra vez - “um dos nossos”? Porque não era um anti-fascista, porque Sousa Mendes não tinha credenciais populares ou de esquerda?
Imagino que possa ser considerado de menos bom gosto trazer aqui esta questão, nos termos em que a coloco. Mas faço-o porque acho extraordinário que os democratas portugueses, tantos anos decorridos depois da revelação dos pormenores deste caso, nunca tenham posto em causa a cumplicidade objetiva que, com o seu silêncio, acabaram por ter com o comportamento miserável da ditadura portuguesa.
Esta questão da “invisibilidade” do fenómeno Sousa Mendes, na vida política de quantos lutavam pela democracria em Portugal, podia-nos levar muito longe.
Há precisamente 27 anos, a Associação Sindical dos Diplomatas Portugueses, cuja direção eu integrava, decidiu criar um prémio para estudos académicos em matéria de política externa portuguesa. Recordo-me bem de logo ter sido aproximado por colegas - mesmo da minha geração - que entendiam que o nome de Aristides de Sousa Mendes, que tínhamos proposto para ser o nome do prémio, pudesse afinal vir a ter outros titulares, em moldes rotativos. Conhecendo bem “do que a casa gasta”, pressenti logo o que aí viria, no futuro, em matéria de patronos alternativos…
Nos anos seguintes, Jaime Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros em dois governos do PS que tive o gosto de integrar, soube assumir as atitudes que se impunham, para a recuperação da imagem e estatuto de Aristides de Sousa Mendes.
Teve como opositora a resistência de algum “establishment”, que procurou convencê-lo de que pairavam sobre Sousa Mendes persistentes nuvens de suspeição, que recomendavam grande prudência no reconhecimento da legitimidade das ações do cônsul rebelde. O movimento contra Sousa Mendes só se atenuou quando as leis inexoráveis da vida se foram impondo aos seus detratores.
Quando, em 2007, era eu então embaixador no Brasil, um programa e concurso televisivo, em torno dos “Grandes Portugueses”, trouxe o nome de Aristides de Sousa Mendes à ribalta, escrevi um artigo de regozijo no “Diário de Notícias”. Logo recebi três cartas iradas de antigos colegas de carreira, lamentando a minha solidariedade com a figura do cônsul ostracizado.
Por estes tempos, essas vozes desapareceram, mas talvez não seja por acaso - melhor, sei bem que não é por acaso - que uma nova força política, que faz do ódio e da discriminação o eixo da sua doutrina populista, surge, por estes dias, a espalhar as habituais insídias contra Sousa Mendes.
Sousa Mendes ainda incomoda um certo país, ainda incomoda um certa camada diplomática tributária da pior herança do antanho, ainda motiva um certo ranço discriminatório, a que não é alheio algum anti-semitismo - é preciso dizer isto alto, com todas as palavras.
Sou, fui, um diplomata da democracia, com quase quatro décadas ao serviço da República. Tive um grande orgulho em ter sido um servidor público. Habituei-me a trabalhar sobre regras de disciplina e de lealdade funcional, num regime democrático que nos oferece todos os necessários “checks and balances” de um país livre.
O exemplo de Aristides de Sousa Mendes foi, até ao final da minha carreira pública, uma forte inspiração, no sentido de me ter ajudado a concluir que um serviço público sem ética, desprovido de valores e de sólidos referentes morais, que não questione a legitimidade daquilo que é levado a promover, numa espécie de “realpolitik” oportunista, é algo cuja dignidade não só é muito duvidosa como é simplesmente amoral.
Como pessoa de bem, Aristides de Sousa Mendes, nessas horas angustiadas e confusas de Bordéus, terá prenunciado Régio: “Não sei por onde vou, não sei para onde vou, sei que não vou por aí”.
Não foi. Para sua honra e para nosso orgulho.
7 comentários:
Parabens, senhor embaixador! Chapeau!
Vivendo no Canadá, em Montreal, onde vivia um dos filhos do ex-consul, Philippe (os filhos dele expatriaram-se em vários continentes),mesmo antes do 25A, já tinham sido tomadas mediadas para dar a conhecer o drama da família Sousa Mendes e o seu gesto humanitário. Num dos jardins de Montreal há uma lapide a sublinhar e a celebrar esse gesto.
Historicamente seria interessante saber os nomes dos embaixadores que aderiram de imediato ao 25A. Creio que foram somente seis. Recordo-me do Luis Gaspar da Silva e Futscher Pereira.
É caso para relembrar, 25 de Abril, sempre!
A.Moura
Belo texto, mas antes de mais ,uma justa homenagem dum democrata a um Homem JUSTO. Cumprimentos e felicitaçoes,Senhor Embaixador.
Aristides de Sousa Mendes poderá fazer parte da longa lista de milhares de Portugueses que viveram em países estrangeiros e até em territórios ex-colónias dos quais nem mais se fala
apesar da muitos deles se terem destacado por suas vidas talentosas e vivências humanistas
Será por descriminação consciente ou inconsciente?!
Um belo texto, a fazer jus a quem verdadeiramente o merece (passe o pleonasmo). Parabéns.
Belo texto. Chapeau 🎩
Apoiado sem reservas, senhor Embaixador! Aristides de Sousa Mendes é um nome que não pode ser esquecido. Também foi depois do 25 de Abril que o ouvi pela primeira vez, se não estou em erro associado ao do também diplomata Raoul Wallenberg. Lembro-me bem de, quando visitei Yad Vashem, me terem mostrado a secção dedicada a Sousa Mendes. É curioso que muitos dos seus detractores não criticam especificamente essa sua desobediência mas a sua atitude em geral, que parece ter sido algo controversa, como se isso retirasse algum valor ao seu gesto.
Gostei muitíssimo de ler, como sempre.
Pergunto se o teor do seguinte texto não ajuda também a compreender o incómodo que Aristides Sousa Mendes possa ter suscitado no pós 25 Abril e hoje:
https://setemargens.com/o-segundo-apagamento-de-aristides/
Muito obrigado
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