quarta-feira, outubro 20, 2021

O PS e o seu orçamento

Em 2015, aquando da criação da Geringonça, o potencial efeito negativo pressentido na imagem externa do país, pela associação do PCP e BE à área de poder, viria a ser compensado pela criação de um “firewall” nas questões dos compromissos europeus, da NATO e em tudo quanto aqueles dois partidos tinham de mais desviante face ao que até então fora qualificado como o “arco da governação”.

O facto de um presidente com o perfil de Cavaco Silva, depois de todas as suas cassândricas adivinhações, ter acabado por dar posse ao governo de António Costa, acabou, ironicamente, por conferir a este maior credibilidade do que aquela que derivava da lógica política da solução encontrada. (O recente artigo de Cavaco Silva no “Expresso” é o pedaço de pão com que tenta tirar a espinha que traz encravada na garganta, desde 2015).

A fim de ser entronizado no poder, o PS teve de pagar um preço na reversão de privatizações nos transportes, bem como em algumas outras medidas de sentido idêntico. Fê-lo, contudo, com conta, peso e medida, por forma a não assustar investidores e prejudicar uma primeira impressão que queria criar.

Um terreno em que o PS foi sempre muito cauteloso foram as leis laborais, onde o “risco” Portugal poderia facilmente subir. É que os socialistas sabem que operam sempre num ambiente de potencial suspeição, quando adotem medidas que possam ser lidas, numa União Europeia muito “market-oriented”, como incompatíveis com os níveis nacionais de competitividade e, por isso, como menos sustentáveis na ação dos operadores económicos nacionais. Salvo escassas exceções, algumas apenas conjunturais ou de oportunidade, estes últimos não costumam esbanjar grande simpatia face ao Largo do Rato.

Grande parte da imprensa económica, aliás, é um espelho tão perfeito do preconceito que até se converteu num reflexo caricatural desses mesmos meios. Há também por aí um micro-partido que se esforça, à saciedade, para ser visto como leal súbdito político desses interesses.

À esquerda, o “abraço do urso” do PS aos parceiros acabou por tornar-se algo desconfortável para estes, pelas consequências eleitorais que se conhecem: os votantes tenderam a agradecer ao partido que lidera o governo e acabaram por ser “ingratos” para quem, afinal, terá forçado o PS a certas medidas.

Mas será que “forçou” mesmo? O PS é, gostem alguns ou não, um partido de esquerda e há nele muito boa gente que apreciou vê-lo seguir uma agenda de reversão das loucuras do tempo da Troika, fosse isso feito por pressão à sua esquerda ou por convicção própria. O caso das 35 horas na Função Pública é um caso típico de uma medida que visivelmente agrada às bases de votantes socialistas. No PS, há muito quem pense que, se é para executar políticas de direita, então há outros partidos no mercado. (Não vale a pena tentar conciliar o inconciliável: uns verão sempre as 35 horas como uma medida injusta e sem racionalidade económica, outros considerá-la-ão um passo no caminho certo e um gesto de justiça e de grande alcance).

O PS não o dirá nunca mas há que reconhecer que governou, embora com habilidade, nas margens da sua própria credibilidade política, no modo como esta é vista à esquerda. Na utilização imoderada do perverso mecanismo das cativações, que chega a ser insultuoso face à vontade democrática que antes aprova os orçamentos em sede parlamentar, e no incumprimento objetivo de compromissos assumidos com os parceiros, muitas vezes apenas para fazer “um bonito” na Europa, o PS foi, algumas vezes, longe demais. E está a pagar por isso.

É que os socialistas sabem que o PCP opera sempre com uma agenda “de rua”, seja para compensar a sua fragilidade nas urnas, seja para reforçar o seu poder, quando este ainda não declinara. No dia em que o PCP pressentiu que o custo de apoiar o PS na AR se tornava demasiado, essas “tropas” ficaram muito mais à solta. (Há uma interessante dialética entre o PCP e a CGTP que é uma das chaves da vida política na esquerda portuguesa, coisa que só raramente aconteceu entre o PS e a UGT). Terá chegado o momento do divórcio?

Nas horas que correm, para o PS, a questão é que muitas das medidas que os parceiros exigem para votarem este OGE, a serem aceites, poriam em causa a imagem de rigor que, desde 2015, quis preservar a todo o preço - perante o país e face à Europa. Essa é a fronteira que António Costa sabe que não pode atravessar. Não lhe invejo a tarefa! Mas desejo-lhe muito boa sorte.

5 comentários:

Manuel disse...

Excelente análise que vai de encontro aquilo que penso. Não concordo com a parte "A fim de ser entronizado no poder, o PS teve de pagar um preço na reversão de privatizações nos transportes (...)". Mas que preço é que o PS teve de pagar? Preço político?
Não é política do PS ter transportes públicos adequados às necessidades das populações, com destaque (sem desmerecer os demais) para a zona metropolitana de Lisboa?

Luís Lavoura disse...

Manuel

é política do PS ter transportes públicos adequados às necessidades das populações

Será, mas isso não significa necessariamente que os transportes coletivos sejam estatais.

O Francisco falou da privatização dos transportes. Ou seja, empresas de transportes coletivos deveriam ter sido privatizadas, e não foram.

Carlos Antunes disse...

Senhor Embaixador
Muito interessante a análise que faz do relacionamento do PS com os partidos à sua esquerda, que vai em geral de encontro aquilo que penso.
Discordo apenas no que refere quanto às leis laborais. Como o Senhor Embaixador bem sabe a UE tem apenas competências limitadas no que diz respeito a questões sociais, uma vez que a maior parte das decisões depende dos governos nacionais. Isso significa que os governos nacionais – e não a UE – são quem decidem acerca de questões como a regulamentação salarial, incluindo o salário mínimo, o papel da negociação colectiva, os despedimentos, os subsídios de desemprego, a idade da reforma, o sistema de pensões.
E como certamente reconhecerá, existem ao nível da UE, países com regimes jurídico-laborais e sociais muito mais protecionistas (sem que a UE os tenha considerado com os níveis nacionais de competitividade das suas economias) do que o português.
Além disso, sendo matérias do âmbito do Código do Trabalho e da Segurança Social, muitas das medidas propostas pelo PCP e BE não têm impacto orçamental ou têm um impacto orçamental marginal, pelo que o razoável era os partidos de esquerda (PS, PCP e BE) assumirem o compromisso de dissociá-las da aprovação do orçamento e discuti-las (CES) e aprová-las em sede própria (Parlamento).

Plúvio disse...

Permita-me, Manuel, um pequeno reparo.
Terá querido dizer que a «excelente análise» vai ao encontro do que pensa.
'Ir de encontro' é justamente o contrário.

https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/ir-de-encontro-a--ir-ao-encontro-de/11999

José Figueiredo disse...

O que parece estar a acontecer é a amostra da dificuldade de o sistema partidário português gerar governos. E a nossa esquerda parece estar com saudades de governos de direita. O que disse Carlos César parece dar conta do que se passa.
José Figueiredo

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