sexta-feira, março 30, 2018

“Deus não dorme!”


No jornalismo político português, ficou célebre um editorial subscrito por esse homem sério e de bem (assumo a redundância) que se chama Mário Mesquita, intitulado “Deus não dorme!”. Foi a constatação, perante uma derrota eleitoral de Mário Soares, de que alguns erros se pagam caro.

Foi agora divulgada a lista dos árbitros de futebol escolhidos para o Mundial de futebol. Nenhum juíz português figura entre os árbitros designados. Também aqui, pelos vistos, “deus não dorme”. Aleluia, embora o dia só seja amanhã!

A seleção portuguesa está no topo dos resultados à escala internacional. Mas o futebol português, dirigido por uma escumalha de dirigentes de clubes que envergonham o país, com as suas moscambilhas medíocres de influência sobre as classificações e “gestão de carreiras” dos homens do apito, bateu já há muito no fundo. E todo o mundo, lá fora, sabe isso! 

Se não houver um rápido saneamento desse coio de gangsters, nas claques e em sórdidos dirigentes, nos comentadores “cartilhados” a que todos (repito, todos) os media dão uma cobertura cúmplice, incitando javardamente as respetivas hostes, os golos geniais de Ronaldo de nada nos valerão. 

E uma Federação Portuguesa de Futebol que tem, entre os seus diretores, um jogador de que o mundo conhece fotografias a dar um murro na barriga de um árbitro internacional, qualifica-se a si própria. Só comparável à “justiça desportiva”, essa gargalhada que aí anda a armar ao sério, atulhada de juristas nomeados numa “balcanização” e obediência de interesses aos emblemas de estimação.

É muito bem feita esta exclusão da arbitragem portuguesa do Mundial da Rússia, embora alguma gente séria que felizmente existe no mundo do apito acabe por pagar, injustamente, pelos pecadores. Que as mãos não doam à FIFA, já que as autoridades portuguesas se mostram incapazes de pôr um ponto final a esta vergonha - dos emails lampiónicos do Paulo Gonçalves à fruta andrade do Pérola Negra e do “jornalismo” de Francisco J. Marques, passando por essa figura mal educada, saída de uma opereta saloia, e que, para mal dos nossos pecados, dirige hoje o (meu) Sporting. E outros há, claro! 

Portugal não apita na Rússia? Muito bem! Deus não dorme, felizmente!

Eduardo Saraiva (Águaboa)


Numa certa fase da sua vida, Eduardo Saraiva pareceu-se bastante com a imagem contemporânea do músico e cantor Paul Simon. 

Um dia, no Brasil, na Bahia, onde ele integrava uma comitiva a um evento sobre jornalismo, a que eu assistia como embaixador português, cheguei mais cedo ao então novo restaurante “Amado”, onde tínhamos reservado uma mesa para um grupo de participantes nesse encontro. À entrada, “deixei cair” que Paul Simon iria jantar naquela nossa mesa. Senti as pessoas do restaurante excitadas com essa perspetiva, mas, entretido com a minha caipirinha e a conversa com alguém, quase que esqueci a graça. 

Quando Eduardo Saraiva entrou, houve um movimento de empregados, em torno do grupo que ele integrava, que se prolongou por minutos, com gente a sair da sala interior e a deslocar-se à varanda exterior, onde estava a nossa mesa, só para olhar a “vedeta”. A certo ponto, comecei a dar conta que o Eduardo estava a começar a ficar irritado com a estranha atenção que sobre ele convergia. E não estava a perceber nada! Achei ser meu dever esclarecer o assunto, entre gargalhadas de todos os presentes. De todos, não! Para minha surpresa, o Eduardo pareceu não ter apreciado muito a “partida”. Embora sem “hard feelings”.

Lembrei-lhe isto há cerca de três anos, numa troca de correspondência que tivémos, quando me convidou para escrever um texto para a coletânea “Taras de Luanda”, que coordenou. Comecei por aceitar o convite mas, depois, dei-me conta de que o meu estilo de escrita era menos compatível com o projeto. E, embora a contra-gosto, desisti, o que, em mim, é raro. O Eduardo aceitou, com “fair play”, a minha atitude.

Desconhecia que o Eduardo Saraiva estivesse doente. Conheci-o nos anos 90, a trabalhar com o meu bom amigo José Lello, que também já se foi. Pareceu-me sempre ter da vida uma leitura lúdica, com um grau de saudável loucura, que me fazia apreciar o seu estilo. 

Lamento a sua desaparição, que agora soube.

A Oeste algo de novo?



Os fantasmas dão muito jeito, quando se quer assustar alguém. Mas devemos denunciar que não passam disso, de fantasmas. A decisão portuguesa de não expulsar diplomatas russos, em simultaneidade com tal atitude por parte de alguns parceiros da UE e da NATO, está a suscitar alguma polémica interna, naturalmente explorada externamente. A pergunta pode fazer-se: mudou alguma coisa a Oeste?

Entendamo-nos, no essencial. A Rússia de Putin quebrou já, há muito, o laço de confiança que, no termo da Guerra Fria, pareceu poder criar ao mundo ocidental uma janela de diálogo sustentável com o principal Estado sucessor da União Soviética. Alguns erros deste lado poderão ter contribuído para o que se passou. Mas a responsabilidade do atual estado de coisas é esmagadoramente russa, deriva da leitura questionante de equilíbrios que Moscovo havia subscrito e que agora não cumpre, do seu desprezo contumaz pelo Direito Internacional, do autoritarismo de um regime que vive mal com o dissenso e tem um histórico de relação violenta com as vozes opositoras que mais do que legitima a plausibilidade da sua culpa no ato bárbaro agora cometido e que suscita toda esta reação.

Nos locais próprios, o nosso país deixou clara a sua plena solidariedade com o Reino Unido, o seu profundo repúdio pelo uso de métodos que colocam quem os pratica à margem da convivência internacional civilizada. 

Portugal não recebe lições de ninguém no tocante à expressão prática de solidariedade em todos os casos em que interesses tidos por essenciais à paz e segurança internacionais estão em causa. Somos fiéis e reconhecidos parceiros na NATO, temos um histórico inatacável de assunção de responsabilidade em cenários de conflito, para cuja diluição demos contribuições bem acima do que nos seria exigível, continuamos a cumprir escrupulosamente as sanções impostas à Rússia, por virtude do seu comportamento na Ucrânia. 

Mas Portugal é um Estado soberano, dono das suas decisões e, muito em particular, do tempo para as tomar. Não vamos a reboque de ninguém, nem nos deixamos condicionar pela síndroma do “Maria vai com as outras”, que tanto parece excitar alguns setores caseiros - curiosamente, os mesmos que, em 2003, conduziram o país à vergonha das Lajes, atrás desses gambozinos que se chamavam “armas de destruição maciça”. 

Defendemos a preeminência da ação através dos fóruns de expressão política coletiva, como a NATO e UE, porque o multilateralismo é o espaço operativo que consideramos dever privilegiar, porque é o terreno essencial da legitimidade à escala global. Mas, como é óbvio, Portugal nunca fechou as portas à assunção de outras atitudes no futuro, porque os limites do Direito Internacional são as únicas fronteiras de ação que devem limitar uma soberania.

Olhando o modo como o governo português decidiu proceder neste caso, devo dizer que me sinto perfeitamente confortável com o sentido de medida assumido pela nossa diplomacia, posição, aliás, em tudo conforme àquela que o presidente da República parece também ter. E tenho plena confiança em que António Costa e Augusto Santos Silva saberão pilotar em nosso nome este processo, sempre com o objetivo de evitar escaladas de tensão e manter abertas as vias do diálogo, cumprindo aquela que tem sido a nossa vocação em democracia. Não, não há nada de novo a Oeste.

(Artigo publicado na edição de hoje do “Expresso”)

O garfo do Tavares


No final dos anos 70, numa visita de trabalho a Jerusalem, permiti-me comentários de analista sobre o conflito israelo-palestino. Um diplomata local retorquiu-me: “Sem aqui ter nascido, é impossível ter uma noção exata da realidade”. Poucos anos depois, numa ida turística a Berlim, ainda em tempo de Guerra Fria, mandei “bitaites” impressionistas sobre a realidade que se projetava no muro. Um berlinense ocidental, com muita memória sofrida, disse-me uma frase idêntica. Um dia, em 2003, em Seul, num almoço com Ban Ki Moon, que me parecia ainda longe de sonhar ser secretário-geral da ONU, fiz juízos de valor sobre as razões no conflito coreano. E lá surgiu de novo a tal máxima. Há dois anos, numa visita à Estónia, procurei desdramatizar, numa conversa com um académico local, a tensão com a Rússia: “Sem aqui ter nascido, é impossível ter uma noção exata da realidade”.

Não sei que “exatidão” existia na visão comprometida de todos aqueles meus interlocutores – e tive conversas similares em outros cenários de conflito. Uma coisa tenho por certa: se acaso tivesse falado com quem estava do outro lado da barreira, a narrativa seria contrastante, mas a frase seria porventura a mesma. A cultura emocional modela as razões e, por definição, embota a racionalidade. Mas, na teoria da negociação, também se aprende que as emoções são parte integrante da economia dos conflitos, que nunca se resolvem sem as ter em conta. Por esse motivo, a objetividade do observador distanciado é, as mais das vezes, uma virtude que serve de muito pouco.

Vem isto a talhe de foice, imaginem!, a propósito do Brasil. Há uns tempos, um grande amigo brasileiro, de visita a Lisboa, quis jantar comigo no restaurante Tavares. Perdi o amor à bolsa e verguei-me à memória “ecista” (no Brasil, não há “queirosianos”) do local, que também dizia muito ao meu parceiro de refeição. E até lhe apontei a mesa em que tivera lugar uma famosa conversa, embora sem consequências históricas evidentes, entre o antigo presidente Juscelino Kubitschek e o plumitivo conservador Carlos Lacerda. O nosso “papo” ia bom até ao momento em que fiz vir à baila o nome de Lula. O meu amigo tinha sentimentos muito fortes sobre aquela figura. Vi a cara dele ficar encarnada – e não era da pimenta numa qualquer iguaria, nem do calor da sala. Olhando-lhe a mão, vi-o torcer lentamente, com silenciosa fúria, um garfo, até o utensílio ficar em ângulo reto. No instante, percebi que, também ele, me queria dizer, com a sua raiva, que eu não tinha direito a ter uma opinião sobre uma realidade a que não pertencia. Pelo menos, uma opinião diferente da dele...

(Artigo publicado na edição de hoje do “Jornal de Notícias”)

quinta-feira, março 29, 2018

Cavaco em Peniche


Um antigo colaborador de Aníbal Cavaco Silva escreveu-me esta manhã, notando não ter sido eu exato, num artigo que publiquei, quanto à ausência de visitas do anterior presidente a algum do locais da repressão da ditadura. E assinalou uma visita que Cavaco Silva fez ao forte de Peniche, em 2010.

A pessoa que me escreveu merece-me, de há muito, grande consideração pessoal. E, por isso, faço aqui o meu “mea culpa”: Cavaco foi, de facto, a Peniche, acompanhado do presidente da Câmara local e de um governante socialista, avaliar os projetos de obras de reconversão do forte, como a imagem ilustra. 

Mas vou mais longe, coisa que ninguém fez até hoje, que eu tivesse notado. Vou transcrever, pela primeira vez, as palavras de Cavaco nessa visita. Elas aqui ficam, para a posteridade: 

É com alguma emoção que, como chefe de Estado do Portugal democrático, visito da Fortaleza de Peniche. Por aqui, pela prisão política que, por décadas, existou neste forte, passaram centenas de pessoas que sacrificaram a sua vida na luta contra a ditadura que, por quase meio século, se abateu tristemente sobre o nosso país. Um regime que perseguiu, prendeu e torturou, que conduziu Portugal a três trágicas guerras coloniais. Daqui, desta prisão, fugiram uma noite Álvaro Cunhal e alguns dos seus companheiros políticos, numa ação que ficou nos anais da luta da oposição ao Estado Novo. É a esses portugueses, de todas as convições políticas - anarquistas, comunistas, socialistas ou simples democratas e republicanos - que o chefe de Estado quer hoje deixar aqui uma palavra de gratidão, pelo seu honroso sacrifício, como construtores de uma liberdade que chegou nesse “dia inicial inteiro e límpido, onde emergimos da noite e do silêncio”, como Sofia de Mello Breyner cantou a data fundadora que foi o 25 de abril”.

A imprensa, preconceituosa como sempre, nada disse sobre estas palavras de Cavaco. Nenhum dos seus acompanhantes ao forte de Peniche as notou. Cavaco, ao que consta, terá mesmo ficado surpreendido ao ouvi-las sair da sua própria boca. 

Mas eu, que quero sempre a História escrita com o rigor de um José Hermano Saraiva, aqui as deixo, na sua sólida inteireza.

Embora ainda me pergunte se o primeiro dia de abril não seria, talvez, a data mais adequada para as evocar. É que ainda estamos nos “idos de março”.

quarta-feira, março 28, 2018

“Cumué?”


No regresso pascal à cidade de origem, os encontros de rua com gente da minha geração têm rituais sedimentados, por décadas. A anteceder o abraço forte e franco, surge quase sempre a frase: “Então, cá por cima?” ou, numa variante, “Então, vieste à Bila?” (com “b”, claro). Alguns, menos crentes de que a minha visita se possa fazer sem sacrifício das “delícias” da capital, acrescentam ainda: “Tem que ser, não é?”. 

Ontem, num passeio pela rua Direita, a antiga artéria principal da cidade, hoje transformada num cemitério ou quase de lojas comerciais, mas que tenho por ritual percorrer sempre que venho à cidade, fui surpreendido por outra expressão, que já não ouvia há alguns anos, mas que fez escola por muito tempo: “Como é?” (”cumué?”). É uma pergunta que não exige resposta, equivalente a um “Atão?”. 

Fez-me muito bem ouvir isto. E deu-me uma ideia. Um destes dias, em Lisboa, vou testar a expressão à chegada a uma reunião que tenha grande formalidade. Sempre quero ver qual será a cara de alguns fabianos...

O Bragança


Não era um homem muito simpático, diga-se. Vendia jornais, revistas, tabaco e meias-folhas de papel selado, nesta loja, no centro de Vila Real. Tinha uma empregada muito pequenina, faladora e agradável, que compensava, em atitude, o défice de comportamento afetivo do patrão. 

Mas estou a ser um pouco injusto: o Bragança (o “senhor Bragança”, como eu naturalmente o chamava) tratava-me bem. Durante anos, fui o “menino”. Depois, já eu matulão, deixei por um tempo de ter designação. Com a ida para a universidade, passei a “senhor Costa”. E assim fiquei, que me lembre, até entrar no governo. Uma tarde, numa visita a Vila Real, o Bragança recebeu-me com um raro sorriso rasgado: “Tenho aqui uma entrevista que o senhor doutor deu ao Notícias”. E mostrou-me duas folhas do JN, já com meses, que amavelmente guardara. O seu já então episódico cliente vinha nos jornais. E subira um furo mais na designação.

Na adolescência, comprava por lá, religiosamente, “A Bola”, então a minha bíblia desportiva trissemanal. No final dos anos 60, nas férias da universidade, o Bragança guardava-me, a cada semana, “A Vida Mundial” e um dos três exemplares do “Diário de Lisboa” do dia anterior que, ao final da manhã, chegavam à cidade, e que eu ia logo devorar para o café. Mais tarde, reservava-me o “Expresso” e “O Jornal”.

Com o Fernando “Choco” e o Albertino “dos jornais”, muito antes do Pelinhos engraxador (e comunista) na Avenida, o Bragança era um dos grandes fornecedores de imprensa à cidade. 

O local era também um lugar de tertúlia, como o eram a Farmácia Barreira, na rua Direita, e a relojoaria do Salgueiro, na rua Central. Nas conversas no Bragança lembro-me que preponderava o Dr. Elísio Neves, oftalmologista, bom amigo do meu pai, no triângulo do seu trânsito da Pompeia, o café em frente, para o consultório, sobre a pastelaria Gomes. 

Filho de um velho “chofér” de praça que recordo com o boné preto da profissão, o Bragança, que sempre estava elegante, de fato e gravata, era casado com uma senhora loira, com um ar muito arranjado, redonda de carnes, que mantinha uma loja de cabeleireiro de senhoras no piso superior, com entrada pela tabacaria. Estava longe de ser o cabeleireiro “top” da cidade, mas a localização era imbatível. O Bragança tinha fama de ser um homem rico, presumo que não pelos jornais que vendia, mas pelos edifícios de que era proprietário ou que herdara, alguns “na marginal”. 

Tenho ainda a imagem do Bragança e da mulher, ambos de costas muito direitas, de braço dado, a caminharem, a passo lento, ao final da tarde, com as lojas a fechar e as luzes a abrir, pelas ruas já quase desertas da cidade, a caminho de casa, cruzando-se comigo, a sair do bilhar do Excelsior e a dizer-lhe: “Boa noite, senhor Bragança”.

Por que é que agora me lembrei disto? Passei pela tabacaria do Bragança, ontem à tarde. Está fechada, no estado que a fotografia mostra, aliás não muito diferente de imensas outras casas no centro histórico de Vila Real. É um ambiente algo desolador, mas bem comum a muitas terras portuguesas.

Verdade seja que, nos últimos anos, já depois do próprio Bragança ter desaparecido da circulação, o interior da loja, que noutros tempos fora ordenada e era um espaço bastante decente, apresentava o aspeto de um verdadeiro caos: a imprensa amontova-se no balcão e pelo chão. Algumas revistas velhas, amarelecidas, jaziam espalhadas a esmo pela indescritível montra. 

O anúncio da morte a prazo da tabacaria começou a ser dado pelo caráter errático da sua abertura. Presumia-se que a loja estava aberta se, no exterior, surgia pendurada uma régua de madeira com molas, de onde pingavam algumas revistas já sebentas e datadas, incompráveis, naquele estado. 

Um dia, sei lá quando, a loja não abriu mais. A cidade nem se terá dado conta, outros locais de venda de jornais há muito a substituíam. Acabou “o Bragança”, a vida continuou. 

Só a mim passou pela cabeça recordá-lo. Logo eu, que o não achava muito simpático. Mas é talvez, subliminarmente, a maneira de me penitenciar pela crueldade da minha memória. É, deve ser isso.

Arnaud Beltrame


Não me sentiria bem se não deixasse aqui uma fotografia, em jeito de singela homenagem, a alguém que soube dar um exemplo limite do sentido de dever público e que foi capaz de transformar um gesto espontâneo e extremo de solidariedade num raro exemplo cívico.

terça-feira, março 27, 2018

Coimbra B


O comboio acaba de fazer uma breve paragem em Coimbra B, no caminho ferroviário entre Lisboa e o Porto. Para quem não saiba, convém esclarecer que Coimbra tem uma estação no centro da cidade, designada por Coimbra A, de onde se toma uma ligação para Coimbra B. É, daqui, acede-se “ao mundo”...

(Historicamente, era em Coimbra B que os “caloiros”, arribados à universidade da cidade, eram pela primeira vez chamados de “doutor”, pelos carregadores de bagagem, à espera de uma gorgeta pelo “elogio”, que inchava esses incautos novatos.)

Mas hoje trago Coimbra B à baila por outra razão: uma anedota que se contava no meu tempo de liceu.

Alguém de Coimbra quis, um dia, ir de comboio até Qianjin, uma cidade no norte da China. Dirigiu-se à bilheteira da estação de Coimbra A, bem no centro da cidade, e pediu um bilhete. O homem do guichet respondeu-lhe: “Para isso, só em Coimbra B. Eles é que têm as ligações internacionais”. 

Chegado a Coimbra B, a resposta não foi muito mais promissora: “Só na Pampilhosa, meu amigo. Lá é que os comboios ligam a Espanha. Ali é que o podem informar”. 

Na Pampilhosa, de facto, as coisas começaram a compor-se, ainda que não em definitivo: “Vendemos-lhe um bilhete para Paris. Depois, eles lá o encaminham para a China”.

E o homem assim continuou. De Paris foi mandado para Moscovo, dali para Pequim e um dia lá chegou a Qianjin. E por ali ficou o tempo que tinha de ficar, sabe-se lá bem a fazer o quê.

Um dia, o coimbrão decidiu regressar. Dirigiu-se então ao guichet da estação ferroviária de Qianjin. A fila de pessoas era grande (tudo o que mete pessoas, na China, como se sabe, é “em grande”). Esperou pela sua vez e, quando esta chegou, pediu um bilhete para Coimbra, que explicou ser uma cidade em Portugal. Contava-se - mas “vendo-a como ma venderam”, como soe dizer-se - que o chinês, com um ar impaciente, lhe perguntou: “Mas o meu amigo acha que aqui não temos mais nada que fazer? Seja mais preciso, homem! Quer um bilhete para Coimbra A ou para Coimbra B?”

Como disse, passei há minutos por Coimbra B. Lembrei-me do homem e da precisão dos chineses. E acreditem: por este andar, um destes dias, vão chegar “palettes” de chineses a Coimbra. A questão persiste: A ou B?

Lula


É óbvio que Lula vai ser preso. Até pode haver razões legais sólidas para isso e, se as houver, que a justiça se faça. Não tenho conhecimento suficiente do processo para me pronunciar, num sentido ou noutro. Acho contudo infame o processo mediático-político que está hoje em curso no Brasil, pretendendo pressionar a justiça, tentando criar um ambiente na opinião pública para inviabilizar qualquer hipótese de uma outra decisão que não seja a prisão de Lula.

Diplomatas & Russos


Não tenho tempo para escrever muito. Só dá para estes “5 pontos”, como o Amadeu Lopes Sabino fazia na sua saudosa coluna no “Diário de Lisboa” (quem se lembra?):

1. O governo português esteve muito bem ao não fazer parte do grupo de países que anunciou ir expulsar diplomatas russos. Portugal teve atitude idêntica a 10 países da NATO e 13 da UE. As expulsões de diplomatas que estão no exercício de funções bilaterais fazem-se nos contextos bilaterais próprios, tanto mais que não se gerou uma posição conjugada no âmbito da UE, como a que, no passado e noutro contexto, levou à fixação de sanções comuns contra a Rússia.

2. Dito isto, é evidente que o regime de Putin não merece o menor benefício da dúvida, no tocante à plausibilidade de ter mandado cometer o crime. O modo como na Rússia são liquidados ou intimidados os adversários de Putin, naquele sistema que hoje é já um “genérico” de democracia, legitima fundadas suspeitas.

3. Acho patético como alguma esquerda lusitana (parte da qual nem sequer foi, no passado, pró-soviética) assume hoje a Rússia - autoritária, desrespeitadora do Direito Internacional, com escasso apreço pelas minorias e pelos Direitos Humanos - como o seu “campeão” na ordem internacional, apenas movida por um anti-americanismo primário. Tudo à Rússia é perdoado, Putin tem sempre “razão” - na Síria, na Geórgia, na Ucrânia.

4. Ora a Rússia, as vezes, tem de facto razão, como o teve na inaceitável provocação ocidental que levou à desestabilização da Ucrânia, como o tem quando reage às provocações insensatas da NATO nas suas fronteiras.

5. Pena é que essa razão seja titulada por uma figura política que faz da arrogância (também há por cá quem goste do estilo) e da jactância jingoísta a sua imagem de marca. Pode não se gostar de Trump sem ter de se gostar (mais) de Putin.

(Já adivinho os adeptos dos pontos 1 e 4 a não gostarem dos pontos 2, 3 e 5 - e vice-versa. Este é um triste mundo a-preto-e-branco, o das redes sociais, onde o iraniano Maniqueu é rei e senhor)

segunda-feira, março 26, 2018

Evocações


Não guardo papéis e, muito menos, comunicações oficiais. Tenho pena, no entanto, de não ter ficado com fotocópia de um determinado “telegrama” que enviei de Londres, ao tempo em que era “encarregado de negócios”, na ausência do embaixador. Mas ele estará nos arquivos da embaixada e do MNE.

O tema era Gibraltar e o eterno problema que o rochedo constitui para as relações do Reino Unido com a Espanha, que reivindica a posse do território. O governo de Londres instituiu, desde o final dos anos 60, um dispositivo legal que condiciona qualquer evolução do estatuto de Gibraltar à decisão maioritária dos gibraltinos. Como estes, à evidência, preferem manter-se sob a tutela britânica a fundirem-se com a Espanha, o impasse está garantido.

Num dia dos anos 90, o “chief minister” de Gilbraltar, o trabalhista Joe Bossano, foi notícia em Londres, por umas quaisquer declarações, fortemente anti-espanholas. Como a presidência portuguesa das instituições comunitárias de 1992 iria ter esse tema na sua agenda, decidi referir o incidente numa comunicação a Lisboa.

Nesse tempo, os “telegramas” seguiam por fax. Escrevendo nós o texto em computador, dentro de um modelo pré-arranjado, sabíamos exatamente o formato em que Lisboa iria ler os nossos textos e em que página exata ficaria cada linha que escrevêssemos. O meu telegrama tinha uma primeira página de texto e, depois, apenas umas escassas linhas na segunda página. Eu medira tudo ao milímetro e já verão porquê.

Na página principal, descrevi a questão que o “chief minister” de Gibraltar tinha suscitado. Depois, aproveitei para traçar um perfil do político gibraltino. Nas última parte dessa primeira página, devo ter escrito qualquer coisa como isto: “Joe Bossano é um populista, quase demagogo, de verbo fácil, de quem localmente é arriscado discordar. Detém um desmesurado poder sobre o serviço público de Gibraltar, com fama e proveito de ser praticamente o “dono” da região. Tem, além disso, uma palavra muitas vezes cáustica para os adversários, agressiva para a comunicação social que não lhe agrada e, quando lhe apraz, o seu discurso volta-se com facilidade contra o país de que a região depende, bem como contra os políticos da sua capital. Com este perfil, V. Exa. não estranhará, com certeza, que esta mercurial figura, autoritária, arrogante e de uma proverbial rudeza, nos convoque imediatamente à memória um outro líder político bem conhecido, de uma ilha dirigida, anos e anos, sob forte arbítrio pessoal, num estilo desafiador dos próprios equilíbrios democráticos”.

A primeira página terminava aqui. Um amigo, no Ministério, em Lisboa, disse-me, que sentiu um frémito pela espinha, no dia seguinte, ao ler este texto, e pensou para consigo: “Este tipo endoideceu! Fazer estas insinuações, com o governo PSD no poder, é suicida!” 

E lá foi, já em pânico, ler a segunda e última página do “telegrama”. Tinha poucas linhas e dizia qualquer coisa como isto: “Refiro-me naturalmente ao antigo líder de Malta, Don Mintoff, cujo estilo autoritário e o modo atribiliário de governo se constituiu num fator de tensão permanente, na gestão local e na agressividade constante perante Londres, que deu origem a crises recorrentes nas relações com os governos britânicos”. E fechava o texto com a minha assinatura. E o meu amigo logo reduziu a taquicardia que o tinha assaltado...

Dizem-me que o meu telegrama foi lido, com algum gozo, em vários setores do MNE. E não querem ver que, entre algumas pessoas, naturalmente com óbvia má fé, houve mesmo quem pensasse que, no que eu havia escrito na primeira página, podia haver alguma insinuação sobre a figura de um lider regional português?! Há imaginações delirantes!

domingo, março 25, 2018

Manuel Reis


Cruzei-me com Manuel Reis duas ou três vezes na vida, a última das quais, creio, há mais de uma década. Mas, embora conhecendo-o pessoalmente muito mal, acho da maior justiça destacar o papel decisivo que teve na modernidade de Lisboa. Sem Manuel Reis, uma certa Lisboa acabaria por acontecer na mesma, mas não era a mesma coisa.

Máxima


“Um jornal de véspera só serve para embrulhar peixe” 

(máxima do jornalismo, antes de surgir a ASAE)

“Expresso”


Vou, daqui a pouco, ler o “Expresso”, que ontem foi posto à venda, mas que só hoje adquiri. 

Leio o jornal desde o número 1, em 1973. Em alguns sábados da vida, andei dezenas de quilómetros para comprar o “Expresso”.

Que se passou? O que é que matou a urgência da leitura do “Expresso”? Por que será que tenho a (ainda) inconfessada sensação de que, se perdesse um número do jornal, isso não teria a menor importância? Fui eu quem mudou ou foi o jornal?

Em baixa

Ao ver o Alemanha-Espanha, ainda que “a feijões”, dou comigo a rever “em baixa” as expetativas, que já não eram muito elevadas, sobre as nossas hipóteses no próximo mundial de futebol na Rússia.

Catalunha

Não tenho a menor simpatia pela causa da independência catalã. Mas indo por este caminho, a Espanha vai acabar por criar um bando de mártires e, a prazo, vai pagar um preço caro. Um ato de amnistia daria força moral a Madrid, mas com o rei que não tem tudo tenderá a correr mal.

Prior Velho


Prior Velho não é, embora possa parecer, um sacerdote idoso. Trata-se de um arrabalde depois do Figo Maduro, próximo de Camarate, onde uma ideia peregrina, na noite do dia do Pai, com os restaurantes lisboetas a abarrotar, levou um grupo de que eu fazia parte a ir tentar jantar a um daqueles sítios “onde um amigo me disse que se comia magnificamente”. 

Um instantâneo olhar “impressionista” exterior sobre o local da possível amesendação foi suficiente para percebermos que era um restaurante “inível” (isto é, onde não se podia ir), pelo que regressámos à capital, ainda que correndo o risco de prolongar a fome coletiva.

(“For the record”, diga-se que acabámos numa improvável visita à Churrasqueira do Campo Grande, onde se comeu assim-assim, com um serviço caótico, do género empregado-para-dez-mesas, um modelo agora muito em voga e que satisfaz o bolso no patronato).

Lembrei-me desta frustrada incursão ao Prior Velho ao ver ontem nas televisões as imagens de um restaurante daquela localidade que acabava de ser invadido por um gangue de motards, que ali foi agredir um distinto grupo rival, numa cena de “far-west“ onde também entra um gangster da extrema-direita lusa, não fosse por ali o terreno de eleição (no duplo sentido) do vereador racista de Loures. 

Ficou-me, contudo, uma questão: com tanta e tão distinta frequência, seria afinal o restaurante que foi cenário da pancadaria um local do Prior Velho onde teríamos comido bem naquela noite, ou arriscávamo-nos a “comer” pela medida grande? 

Pelo sim pelo não, e talvez injustamente, não tenho o Prior Velho nas minhas prioridades de visitas gastronómicas próximas.

Portugal e colónias



Estou a ler um livro magnífico, uma obra que, em poucos dias, me ajudou a “juntar” algumas peças políticas que mantinha soltas, há vários anos. É um volume extenso, de mais de 800 páginas, mas é um “fresco” indispensável, e muito bem escrito, para entender um dos períodos mais importantes da história política portuguesa no século XX.

Recomendo vivamente, mesmo com entusiasmo, “Contra o Vento - Portugal, o Império e a Maré Anticolonial (1945-1960)”, de Valentim Alexandre, um investigador que produziu já vasta e interessante obra sobre o sistema colonial português. Trata-se de uma edição do “Círculo de Leitores” e, estando longe de o ter terminado, dei por muito bem empregue o que paguei pelo livro.

sábado, março 24, 2018

Fraturas expostas


Tenho 5.000 amigos no Facebook, o limite máximo, não podendo entrar mais nenhum enquanto outros não saírem. Há sempre uma solução fácil para provocar a "abertura de vagas”: abordar, em tom radical, um tema fraturante ou divisivo. Há logo alguns que se zangam e saem porta fora. 

Sócrates e o Acordo Ortográfico são sempre, como temas, um "must". Trazer Salazar à baila dá também imenso jeito. Touradas e República/monarquia é dinheiro em caixa. Falar do Sporting, Benfica ou Porto, em tom sectário, traz muitos 'likes" (e "deslikes") garantidos. Há uns meses era a Catalunha, tema em que metade do país queria abrir trincheiras nas Ramblas, com a outra metade a querer, como titulou Rossif, "Mourir à Madrid". Por estes dias, a Catalunha é tão "sexy" como falar da chuva. Varoufakis já foi tema “fraturante”, quando eu gozava com aquelas camisas “à lavradeira”, a moto “à maneira”, a degustação com a “piquena” e vinho francês, com a Acrópole em fundo turístico. 

Só hoje, com o tema Camilo Mortágua, já tomaram a decisão de se “desarriscar" (como se dizia ao tempo da minha escola primária) lá no Facebook alguns "amigos", da minha valiosa quota conservadora, espécie de que por ali temo a extinção. Já fiz entrar quatro que estavam no "banco", tendo cuidado em que tivessem origem ideológica similar, senão a página fica sem graça e baixa o nível de insultos e de polémica para um "share" preocupante (tenho aprendido imenso sobre isto nas minhas funções na RTP). Não é fácil, a gestão disto, podem crer!

Ah! E nunca acreditem que algo se passa por acaso. Ou será que houve algum inocente que pensou que as ironias anti-esquerda no post sobre o neorealismo estavam desligadas, por contraponto, do tom do post Mortágua? ("Mas ele estará mesmo a falar a sério?"). Como dizia a outra senhora, nos títulos dos seus romances: "Sei lá!". É que "Não há coincidências"...

Gaudin

Um dia de 2010, quando era embaixador em França, fui alertado para o facto de uma empresa portuguesa de construção civil, sedeada em Braga e...