quarta-feira, dezembro 23, 2015

Boas Festas

A todos quantos se dão ao trabalho de seguir o que vai sendo publicado neste blogue, aqui deixo os votos muito sinceros de um Bom Natal e de um ano de 2016 melhor do que aquele que não ousariam esperar.

Europa - um feliz ano novo?

Foi Harold Macmillan, o antigo primeiro-ministro britânico, quem, um dia, ao ser perguntado sobre o que mais temia em política, deu uma resposta que ficou célebre; “events, dear boy, events!” A regra básica para quem se aventura pelos caminhos da vida pública é estar preparado para ter de fazer frente aos acontecimentos, ao inesperado, àquilo que pode colocar em causa todas as previsões e calendários.

A União Europeia não escapa a esta sina. De um dia para o outro, surgem à sua frente novas situações a que urge responder, que desqualificam as prioridades da véspera. Foi assim com a crise financeira, a instabilidade da dívida soberana, a pré-rutura da Grécia, a tragédia dos imigrantes do Sul, a tensão com a Rússia. É assim hoje com os refugiados, com os atentados terroristas, com as exigências britânicas para a revisão da matriz da integração.

A UE vive sob duas pressões contraditórias. A única forma de dar coerência ao seu corpo de políticas é operar em um cada vez maior número de áreas, algumas das quais – como a moeda, a política orçamental ou as relações externas – tocam já aquilo que fazia parte do cerne tradicional da soberania dos Estados. Porém, isto ocorre quando a diversidade dos Estados membros é maior, quando as agendas nacionais de preocupações são muito diferentes, às vezes contraditórias, e em que a bondade das soluções de natureza europeia começa a ser questionada, com as pulsões para “devolução” de poderes, de regresso à esfera nacional, a terem cada vez mais adeptos.

A disponibilidade de muitos Estados para mais partilha de soberania é hoje diminuta, porque as suas opiniões públicas só aceitariam “mais Europa” se estivessem (e não estão) satisfeitas com a Europa que têm, mas também pelo facto de terem por certo que a influência na gestão dessa partilha depende da força, também desigual, que cada um tem em Bruxelas. O tempo em que a importância dos desafios exigiria mais unidade na expressão da vontade comum é precisamente aquele em que as divergências são mais acentuadas.

Há outra realidade muito esquecida. Os dirigentes nacionais raramente dispõem de um mandato para comprometerem a vontade dos seus países para além do imediatismo das crises. Aceitam os tratados, mas são relutantes a novas obrigações ou, para as aceitarem, necessitam que o “estado de crise” ou “de necessidade” se instale previamente nas suas opiniões públicas. As medidas tomadas na sequência da crise financeira de 2008 foram disso um bom exemplo: todos concordam que, se acaso tivesse surgido mais cedo, o pacote resolutivo poderia ter ficado bem mais “barato”. Mas poucos reconhecem que esse calendário de intervenção sucessiva acabou por ser o único compaginável com a maturação da consciência, nos respetivos países, da gravidade das questões.

É neste pano de fundo – o de uma Europa que não pode dispensar a observância das idiossincrasias dos modelos democráticos dos Estado, com ciclos políticos não coincidentes – que o ano europeu de 2016 se vai projetar. Todos pressentimos que a agenda europeia é pesada, ficando a faltar os “events” de que falava Macmillan…

Desde logo, transita para o ano a delicada questão dos refugiados. O tema testou as margens da tolerância europeia, revelou entendimentos muito diferentes sobre os padrões de solidariedade e, para o bem e para o mal, trouxe ao de cima divergências profundas sobre o modo como os vários Estados encaram as suas responsabilidades. Uma linha divisória entre uma Europa de centro e leste europeu, com os reflexos humanitários embotados por uma frieza que poucos adivinhavam, e uma Europa occidental, mais aberta ao esforço solidário, mais generosa e disponível para soluções coletivas, ficou patente nas tensas reuniões de Bruxelas.


E se a questão dos refugiados, que vinha já a somar-se à tragédia da imigração clandestina oriunda do Norte de África – ou já esquecemos os milhares de mortos nas costas italianas, que tanto nos horrorizaram há menos de um ano? – criou interrogações sobre o funcionamento do acordo de Schengen, os atos terroristas de Paris, não obstante a sua autoria ter mais de interna do que de externa, abriram caminho a mais dúvidas sobre as regras que regem a livre circulação europeia. Em 2016, esta questão estará em cima da mesa, lado a lado com o tema ultra-sensível da “europeização” do controlo das fronteiras externas. Gostaria de estar errado, mas temo que possa estar a abrir-se, por aí, uma “caixa de Pandora” com um efeito dominó sobre outras áreas da vida da União.

É neste contexto que se insere parte da agenda reivindicativa britânica com que a Europa está confrontada. A liderança conservadora do Reino Unido há muito que faz da diabolização de Bruxelas uma arma reivindicativa, nunca tendo optado por uma pedagogia face à sua opinião pública sobre a vastidão das vantagens que retira da União. Londres não esteve no “protocolo social”, isentou-se de Schengen, não aderiu ao euro e não prescinde de receber o seu “rebate” financeiro anual. Não obstante todas estas “exceções”, o Reino Unido é um dos principais beneficiários do Mercado interno, usufruindo a City Londrina de vantagens que lhe advêm da sua rentável singularidade.

David Cameron prometeu aos britânicos um referendo sobre a permanência da União. Para o ganhar, precisa que a UE faça concessões. Dramatizou a parada e colocou na mesa uma espécie de chantagem. Desse pacote faz parte a retirada de direitos sociais aos imigrantes intracomunitários, uma inaceitável ideia a que importa resistir.

Que mais nos trará 2016? A Grécia voltará a um novo ciclo de crise? A Parceria Transatlântica terá pernas para andar? A tensão ucraniana reacender-se-á? Como evoluirá a “nova” relação com a Turquia? A tendência secessionista da Catalunha, numa Espanha em crise pós-eleitoral, acentuar-se-á? A liderança alemã será contestada por uma alternativa anti-austeritária? E a banca europeia, como reagirá às novas exigências? Mais importante do que tudo: Draghi conseguirá continuar a sustentar o euro?  

(Artigo escrito a convite da "Visão")       

terça-feira, dezembro 22, 2015

A Claude e a Natércia


Madame Claude, que agora morreu aos 92 anos, oficiou uma das mais famosas "casa de meninas" de Paris, com a entrada que a imagem mostra, na rua de Marignan, entre a Montaigne e os Campos Elísios. Por lá passaram nomes ilustres, que isto das necessidades toca a todos.

Para alguns das novas gerações, o conceito é, no mínimo, bizarro e até pode surgir como "disgusting". Imagino também que o feminismo reaja sem contemplações a este tipo de evocações, onde sempre detetará alguma inevitável nostalgia. O politicamente correto esforça-se por colocar estes modelos no passado, embora todos saibam como as coisas se passam hoje e, com toda a certeza, se continuarão a passar no futuro. E, já que têm que se passar, ao menos que se passem com classe. É que, tal como a diplomacia, há profissões que não deixam de estar na moda. 

Para quem por cá viveu esses outros tempos, em que os costumes impunham outro tipo de regras, as "casas de tias" faziam parte da paisagem, quer urbana quer rural. Mais ou menos luxuosos, esses antros simpáticos de vício foram uma pré-primária do sexo para muita gente. Quantos lisboetas frequentaram o 100 da rua do Mundo ou o 5 da rua da Barroca? E que portuenses conheceram o 515 da rua da Alegria ou o 59 da rua Mártires da Liberdade? Algumas das nossas "madames" tinham nomes consagrados, o seu estatuto raramente era posto em causa, porque "se davam ao respeito", ora bem! E, por essa altura, a ninguém passava pela cabeça falar de "casas de alterne".

Mas afinal quem era a Natércia referida no título? Era uma senhora da rua dos Ferreiros, em Vila Real, para cuja casa, na minha infância, e da minha varanda das traseiras, eu via convergir pelotões de soldados do RI13, num movimento que os meus pais se atrapalhavam com sorrisos para justificar e que eu sempre teimava em tentar entender. 

Um dia, a ambulância dos bombeiros (era a "maca nova", dos bombeiros "de baixo", cor de areia, lembro-me bem) sirenou, rua abaixo, até à porta da Natércia. Alguém disse: "foi um soldado que morreu lá, de congestão". Porque a congestão era um conceito que eu associava ao banho depois da refeição, lá fui eu perguntar ao meu pai se o quintal das traseiras da casa da tal Natércia ia até ao rio Corgo e se o rapaz teria morrido de congestão ao tomar banho. Terá sido a única vez que vi o meu pai dar uma gargalhada ao falar de uma morte. Andei uns tempos mais até perceber tudo. Ah! Mas à Natércia nunca fui, juro!... 

Joe Cocker (1945-2014)


Pronto, lá se foi o Joe Cocker!

Que sorte que ele tem! É que o lembraremos para sempre pelo "Cry me a river", pelo "You are so beautiful", pelo "Unchain my heart" ou pelo "With a little help from my friends".

Em tempo: a mania de alguns de colocar na net notícias requentadas levou-me a "matar" Joe Cocker muito tempo depois da sua morte. Felizmente, "with a little help from my friends", o assunto ficou esclarecido. É a vida, ou melhor, neste caso, é a morte.

O partido

Ele aí está, sempre a olhar o futuro com os olhos deixados no passado. Na primeira curva, que se chama Banif mas que podia ter outro nome, "o partido" puxa o tapete e vota contra. Tinha outra solução para o caso? Tinha: provavelmente seria nacionalizar, colocar tudo no domínio público, como a "criatividade" do BE pede também para o Novo Banco. Seria pedir demasiado, a quem vive num museu de si mesmo, que se conformasse com a realidade. Regressa a história do escorpião. Nunca esperei coisa diferente, como por aqui disse.

Horácio Roque


Morreu há mais de cinco anos. Agora, desapareceu o Banif, um banco que foi obra sua e a que dedicou uma grande parte da sua existência.

Horácio Roque foi um "self-made man" que lutou muito pela vida, que lhe não foi sempre fácil, mas nela prosperou, criou riqueza e deu emprego e futuro a muita gente.

Tendo-o conhecido e, em certa fase, acompanhado o seu esforço e dedicação pelo Banif, quero, nesta ocasião, expressar uma palavra de respeito pela sua memória.

segunda-feira, dezembro 21, 2015

Casemos a culpa!

O caso Banif, com as gravosas consequências que acabou por ter para o erário público, tem de levar a uma explicitação muito concreta das responsabilidades - das instituições e das pessoas envolvidas. No plano técnico, político e quiçá judicial. Importa que a comissão parlamentar, que o PS teve a iniciativa de propor, seja utilizada para um "name and shame" muito claro.  

Não desconheço que o tratamento público das questões que envolvem instituições financeiras tem uma delicadeza muito particular, porque qualquer palavra fora do tempo pode ter consequências de alarme injustificado nos mercados, pode induzir quebras de confiança, com efeitos reputacionais e financeiros indesejáveis. Para isso, para a avaliação atempada dos problemas, é que se contava com uma supervisão eficaz. Ora o Banco de Portugal voltou, uma vez mais, a falhar e, também uma vez mais, são os contribuintes quem acaba por pagar a fatura. O Banco de Portugal não atuou por instruções do governo ou por opção, por incompetência?

Depois do BPN, do BPP, do BES e agora do Banif, os portugueses têm direito a saber que novas surpresas os esperam, ao virar da esquina. Podemos ter a certeza de que os nossos impostos não vão ser chamados a pagar problemas de mais nenhuma instituição bancária? Há garantias sobre o estado do Montepio? Não há a mínima dúvida sobre o estado da Caixa Geral de Depósitos? E podemos estar seguros de que com o BPI e o BCP não vamos ter problemas?

Gostei da atitude do governo perante a questão. Soube assumir o problema com frontalidade e o primeiro-ministro e o ministro das Finanças não se refugiaram atrás do governador do Banco de Portugal, como se passou com o caso BES. António Costa e a sua equipa tiveram ainda o sentido de Estado de partilhar com todos os partidos com representação parlamentar a dimensão do caso, cabendo-lhe agora explicar que a solução encontrada, por muito gravosa que possa ter sido, era a única possível. Mas isto não exclui a necessidade de ter de ficar muito claro por que razão as coisas chegaram a este ponto. E, repito, aproveitar para conhecer o estado real do mercado bancário em Portugal. 

A culpa não pode morrer, outra vez, solteira.

Museu da Língua Portuguesa


Está a arder o Museu da Língua Portuguesa, em S. Paulo, no Brasil. Assisti à sua inauguração, em 20 de março de 2006.  

Fico triste por assim se perder este importante marco do orgulho brasileiro na língua portuguesa, aquela que foi uma bela recuperação da antiga Estação da Luz, em que colaboraram a Fundação Calouste Gulbenkian e a Vivo (então com maioria do capital da PT).

Um zingarelho num besidróglio?


Como se viu, a Paf fez puf! A coligação desfez-se e o CDS vai agora ter de fazer pela vida. Por algum tempo, os "democratas-cristãos" a que por cá temos direito terão de subir uma vez mais a corda, agora já não a partir "do táxi" onde em tempos viajaram à larga, mas da confortável quota parlamentar de que usufruem, inchada artificialmente pela tática falhada de outubro. Sem lugares do aparelho de Estado para distribuir, andam agora à procura de si mesmos no mapa político do país, o que sonoramente é revelado pelo desespero histriónico do seu líder - que utiliza a tática dos índios, levantando pó para fingir que são muitos, sem se dar conta de que já os toparam. 

Passos Coelho deixou claro que, não tendo o sacrifício de lugares em S. Bento valido a pena, cada um passa a caminhar por si próprio pela estrada política. Assim o exige aliás a máquina do seu partido, pressionada por bases orfãs de "pote", onde algumas contas na subliderança continuam por ajustar. A forçada continuidade do líder pode dificultar, contudo, um "aggionarmento" pela via social-democrata, que agora seria teoricamente possível, tal como Rui Rio há dias intuiu. O PSD afastou-se dessa orientação muito fortemente nos últimos quatro anos, mas isso poderia agora ser revertido, neste tempo em que o PS surge "puxado" à esquerda e em que se afasta visivelmente de um centro cuja existência faz parte da sua tática negar. Mas, para mal dos pecados do PSD, Passos Coelho surge ainda, aos olhos dos portugueses, como a cara da "troika" e das suas malfeitorias. E, no partido, a curto prazo, nenhum dos seus escudeiros parece ter o menor espaço para o contestar. Se o governo do PS se mantiver, só um desaire eleitoral pode provocar em "pronunciamiento" na São Caetano à Lapa.

A grande curiosidade está agora em saber o que vai o CDS apresentar como agenda própria, que possa ser lida como distinta do PSD mas, ao mesmo tempo, compatível com o que ambos andaram a dizer nos últimos anos. Em "mentideros" lisboetas, corre que uma clara atitude radical de direita poderia ser a nova aposta de Paulo Portas. Alguma Europa vai por aí, os vários temores saem à rua e no "Correio da Manhã" cada vez mais e esse espaço político está vazio, há muito, entre nós. Resta saber se o lider "centrista" terá a contenção ético-política para evitar que um discurso nacionalista, quiçá protecionista, resvale para um populismo securitário ou de outra natureza - que nem quero lembrar, para não dar ideias.

Tudo é possível, se olharmos a história do CDS, desde os tempos em que era uma separata eurocética  do "Independente" até aos dias de hoje - ou melhor, de ontem, porque hoje nem o CDS nem nós sabemos por onde o partido anda ideologicamente. Interessante, nesse contexto, será verificar se o vírus liberal, que afeta muitos dos quadros a quem o CDS garantiu lugares nos últimos quatro anos, acabará por inviabilizar essa deriva, no eventual caminho para a autarcia isolacionista. Verdade seja que o "compassionate conservatism", o discurso para as "velhinhas & reformados", foi-se para sempre com o momento "irrevogável" e a subsequente subida de Paulo Portas a delegado local da "troika". Mas, como titulou, para glória das estantes, uma prolífica autora apoiante da PaF, "sei lá!"

Um dia, retificadas pelo voto as proporções relativas, imagino que PSD e CDS poderão ser de novo tentados a "juntar os trapinhos". Será então uma nova "geringonça" política, como a que Portas acusa agora o PS de ter criado? Ou será, mais ao seu jeito, um zingarelho num besidróglio, movido pelo "ar do tempo". Tudo é possível, desde que dê para o regresso ao poder, não é?

domingo, dezembro 20, 2015

Macedónia

A Macedónia é o nome de uma província do norte da Grécia. A Macedónia era também o nome de uma das Repúblicas da ex-Jugoslávia. Quanto este último país se cindiu em vários Estados, a República da Macedónia tentou ser "crismada" por esse nome junto da comunidade internacional, que havia aceitado como bons os nomes de todas as restantes Repúblicas ex-jugoslavas. A Grécia, contudo, por temer que a nova República mantivesse o que se sabia serem históricas ambições sobre a sua homónima província do norte, não permitiu que o novo país se chamasse República da Macedónia. Por isso, esse país que tem Skopje por capital apenas conseguiu registar-se sob o nome de "Antiga República Jugoslava da Macedónia" ou, em inglês, "Fyrom". Até hoje, Skopje e Atenas mantêm as respetivas teimosias, embora as conversas entre ambos, com vista a "uma solução mutuamente aceitável" (como dizemos na diplomacia), ainda prossigam.

Um dia de 2002, em Viena, dei um almoço de trabalho na residência, durante a presidência portuguesa da OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa), que implicava a presença à mesa dos embaixadores de Skopje e de Atenas. Não obstante o conflito que dividia os dois países por virtude desta questão toponímica, recordo-me que havia alguma cordialidade entre eles, como é regra da profissão. (Como o meu amigo e colega grego vive hoje em Lisboa, vou, num destes dias, recordar-lhe a cena).

Na minha apresentação do convidado principal do repasto, que já me não recordo quem era, fiz uma referência aos presentes à mesa. Quando apresentei o "embaixador de Fyrom", o meu colega interrompeu-me e, agastado, disse:

- O meu país não se chama "Fyrom"! Chama-se "República da Macedónia"!

Eu não podia transigir um milímetro nesta matéria, sob pena de convocar a ira dos gregos, escudados naquilo que prevalecia na comunidade internacional.

- Peço desculpa se utilizei um acrónimo de que não gostas. Então, eu digo o nome completo, pelo qual o teu país é designado no seio da OSCE: Antiga República Jugoslava da Macedónia. Imagino que também possas não apreciar, mas tens de entender que eu não posso proceder de modo diferente.

O meu colega ficou com um "carão" e o almoço lá prosseguiu. Creio que sem mais incidentes.

À saída, o embaixador francês, deixou-se ficar para trás e disse-me:

- Que chatice aquilo da Macedónia! É uma "guerra" sem sentido. Ainda fiquei preocupado que a sobremesa pudesse trazer mais problemas.

- A sobremesa?!

- Sim, é que pensei que tivesses tido a ideia de servir uma "macedónia de frutas"...

Desde há muito que os franceses criaram uma salada de frutas, muito variada, a que dão o nome de "macedónia de frutas", para relembrar a salgalhada étnica daquele país. Imagino que não seja uma sobremesa muito apreciada em Skopje...  

O dr. Ladislau e a bela russa da bomba de gasolina


A jovem, que há pouco, na noite fria e chuvosa de Amarante, atestava o depósito do meu carro, falava um português irrepreensível. Os seus olhos, contudo, não enganavam.

- De que país é? 

- Sou da Rússia, disse com um belo sorriso.

Não estranhei. Mas, atentando para o rasgado dos olhos, inquiri:

- De que região da Rússia? 

Talvez para não entrarem em demasiadas explicações, estou preparado, desde há muito, para ouvir, dos imigrados russos em Portugal com quem me cruzo, a resposta "de Moscovo" ou "da região de Moscovo". Ela não foi por aí mas, sempre a sorrir, ainda tentou afastar a minha curiosidade:

- Sou de uma ilha ...

- Em que zona? 

Deve ter estranhado um pouco, mas foi ainda vaga:

- É uma ilha a norte do Japão.

De repente, a minha memória deu um "salto" de mais de meio século. De uma conversa numa tarde, no Centro de Estudos Geográficos do Liceu Nacional de Vila Real, aí por 1964. 

O Centro tinha sido criado por iniciativa do Dr. Ladislau, um professor de Geografia oriundo de Braga, que com isso dera alento a um grupo de interessados pelo tema, sob o imparável impulso do Sérgio Moutinho, que já se foi há muito. Dele faziam parte o José Barreto, o Elísio Neves, o Carlos Leite, o Ribeiro e mais dois ou três. Reuniamo-nos e discutíamos, publicávamos um boletim impresso na Minerva Transmontana, o "Meridiano". Graças a esse extraordinário professor, um homem que via muito mal mas que sabia como ninguém motivar o nosso interesse e a nossa curiosidade, conseguíamos então romper a modorra da vida chata de um liceu de província.

- É de Sacalina? 

A jovem quase que parou o que estava a fazer e, olhando para mim, agora com os olhos rasgados muito abertos de espanto:

- Estou em Portugal há 12 anos. É a primeira pessoa que me disse o nome da minha ilha.

O frio da noite e a pressa dos passageiros não me deu tempo para lhe perguntar se, como dizia Tchekov, "em Sacalina não há clima, só há mau tempo", razão porque foi, durante muitos anos, um sinistro lugar de degredo. E vinha ainda muito menos a propósito dizer-lhe que foi graças a uma conversa com o Dr. Ladislau, que um dia me falou dos conflitos da Rússia com o Japão, em tempos a propósito de Sacalina e até hoje sobre as Curilhas, que eu ouvi falar pela primeira vez da ilha onde ela nascera, que era mesmo capaz de apontar o seu lugar no mapa e que agora, meio século mais tarde, estava ali a fazer uma "figuraça", na bomba de gasolina da Prio em Amarante, sob a chuva miúda do inverno do Marão, à saída para Padronelo. 

Se têm dúvidas, passem por lá, falem com a bela "sacalinense", a quem há pouco me esqueci de perguntar o nome.

(Ah! e se forem durante o dia, aproveitem e comprem, ali bem perto, o excelente pão de Padronelo, dos melhores do norte. E, na "Tinoca", o "quinteto" maravilha de doces, mesmo a calhar para o Natal: as lérias, os papos d'anjo, os São Gonçalos, os foguetes e as brisas do Tâmega.)

sábado, dezembro 19, 2015

Mesa desmarcada


Já recebi vários remoques telefónicos e presenciais: "então este ano não organizaste o jantar da Mesa Dois?!". É verdade, por uma vez, deu-me uma de cansaço e decidi não meter mãos à obra (porque é obra!) e reservar um espaço (com estacionamento possível, onde se coma bem e barato, onde se possa fumar, com lugar para cerca de 80 pessoas), escolher o menu e os vinhos, contactar as cerca de oito dezenas de pessoas que, desde 2004, com falhas pontuais e ausências definitivas pela lei da vida, fui reunindo, uns dias antes do Natal. Depois, até à hora do repasto, era sempre preciso "check, re-check and check again", porque há os (e as) que acham que aquilo é uma espécie de "cash & carry", onde, se nos dá na mona ou na preguiça, se pode deixar de ir à última hora. 

A "Dois", a "Mesa Dois" desse excelente e inigualável bar que é o Procópio, nos últimos anos, já não é o que era. O Nuno Brederode Santos, seu imorredouro patrono, deixou de aparecer por lá. Essa ausência certa conduziu à rarefação dos "habitués", antes certos de aí poder ouvir a ironia divertida dos seus comentários, a animar uma tertúlia que fez história. 

Já nem sequer às 4ªs feiras, dia da convocatória residual regular (a 6ª feira é mais optativa), a mesa surge composta: apenas uns escassos e nem sempre garantidos parceiros por lá surgem, para confirmar a regra das crescentes ausências. Nem eu próprio consigo estar à altura dos mínimos, confesso. Além de que há amigos cujo estado de saúde impede ou dificulta aparecer, bem como outros que entretanto se foram. A última baixa definitiva foi o José Fonseca e Costa.

É verdade que a "Dois", por definição, tem vocação para ser uma trincheira política. O 25 de abril deu-lhe os alvores do seu destino, o cavaquismo forneceu-lhe por uma década um grande mote, ao passo que os "pafiosos" da "troika" não conseguiram nunca alegrar-nos o espírito crítico para além de um nível de adjetivação banal. Agora, uma vez mais com amigos chegados ao poder, a "Dois" perde algum estímulo crítico. Há sempre que esperar pelas crises para poder vir ao de cima o nosso melhor...  

Até lá, repito esta elegia nostálgica do (poeta) António Dias:

Elegia para a Mesa Dois do Procópio

"Não mais, amigos, já não existe
À roda da Dois a alegre companhia..."
Assim clamava, emocionado, o ancião.
Era quarta à noite. Do velho triste
Uma lágrima a alva barba humedecia,
Fazia tremer-lhe a voz a emoção.

"Lá nasceram poemas e amores,
Se reformou a Pátria, surgiram filosofias;
Esgrimiram-se epigramas, brilharam teses,
E litros de whiskey, de gin e de licores
Fluíam entre névoas de fumo. Alegrias
Quase sempre; tristeza às vezes, 

Mas sempre o cintilar da amizade.
Calou-se melancólico e um suspiro
Agitou-lhe o peito venerando. Amargurado,
O senhor Luís rasgou, com gravidade,
O velho letreiro, qual histórico papiro,
Onde se lia a palavra "Reservado".

Ao balcão, a Alice esconde a comoção.
É a crise, claro, o euro, o mercado
Tem muita força o que tem que ser.
Um bando adolescente e trapalhão 
Já desgasta o veludo avermelhado.
A mesa Dois acaba de se render.

Jamais o Procópio escapará à dor,
Terá a sua natureza amputada.
Mas é assim: o tempo tudo arrasa.
Afasta-se, solene, o provecto orador.
O cajado nodoso ajuda-o na jornada
Em direcção ao Restelo, onde é a sua casa.

O palhaço triste

Ando a falar demasiado do MRPP, dizem-me alguns amigos, embora outros, pela certa, achem que nunca será demais referir esse marco marxista-leninista da vida política portuguesa que lhes alimentou os sonhos. Mas é verdade: tenho destacado por aqui o "emeérre", nos últimos tempos, com alguma frequência. Nunca por lá tendo andado, sinto uma ternura geracional por essas organizações que coloriram os dias e as paredes do Portugal revolucionário. A diverte-me analisar o percurso e o modo como gerem esse seu passado todos quantos abandonaram esse "farol da luta da classe operária". Deu-me, além disso, imenso gozo ler sobre as polémicas que recentemente atravessaram os resíduos daquele partido, cuja linha política tem hoje tanto de caricato como de bizarro.

Por anos, como é sabido, Arnaldo Matos foi a cara do MRPP. Depois, por tempos, pareceu desaparecido em inação. Aos poucos, contudo, deu-se o seu regresso à vida social de Lisboa. Engravatado a aperaltado preceito, com ar e barriga de bom burguês, mantendo apenas aquele bigode para o qual foi expressamente criada a palavra façanhudo, vi-o surgir na assistência de alguns colóquios e conferências em que participei, tendo sempre ao lado de Garcia Pereira, "líder" que lhe sucedera nas funções. Nunca lhe então ouvi uma única palavra e, constato agora, só me posso felicitar por isso. 

A razão porque hoje cito Arnaldo Matos é muito menos simpática. É que, por declarações recentes que fez, se atesta já o irreversível deperecimento intelectual da figura, único modo de ser possível desculpar as anormalidades - e meço as palavras - que disse, referindo-se aos atentados de Paris e aos respetivos autores. Se não vejam:

- "É o imperialismo a causa real, verdadeira e única do ataque a Paris. Agora os franceses já sabem que a guerra de rapina movida pelo imperialismo francês em África e no Oriente Médio tem como consequência inevitável a generalização da guerra à própria França, à capital desse mesmo imperialismo moribundo". 

- "Não só não foi um massacre, como foi um acto legítimo de guerra; não foi cometido por islamitas, mas por jiadistas, isto é, combatentes dos povos explorados e oprimidos pelo imperialismo, nomeadamente francês; e acima de tudo – coisa que estes revisionistas de pacotilha intentam ocultar – foi praticado por franceses, nascidos em França, vivendo em São Dinis e noutros bairros do Paris suburbano. Pois é, os combatentes de Paris não são islamitas estrangeiros; são irmãos de sangue do filósofo Alain Badiou e de outros ideólogos do Partido Comunista de França (marxista-leninista-maoista)".

- "a lógica profunda do ataque a Paris não é o terror, não é o horror, não é a crueldade; a lógica é a lógica da guerra, dente por dente, olho por olho, até derrotar o inimigo. Terror, horror, crueldade são os ataques aéreos, de mísseis de cruzeiro, de artilharia, de drones, conduzidos pelo imperialismo, designadamente francês, sobre os homens, os velhos, as mulheres e as crianças das aldeias e das cidades de África e do Médio Oriente, para roubar-lhes o petróleo e as matérias-primas. Os atacantes de Paris nem chocolates roubaram: levaram a guerra aos franceses, apenas para acordá-los: para lembrar-lhes que o governo e as forças armadas do imperialismo francês estão, em nome da França e dos franceses que julgam ter o direito de se poderem divertir impunemente no Bataclan, a matar, a massacrar, a aterrorizar com crueldade inenarrável os povos do mundo".

- "Os direitos do homem, os direitos humanos fundamentais são uma exigência do mercado capitalista, para poder explorar, sob uma cobertura jurídica, os operários. Os direitos humanos fundamentais são uma forma ideológica de dominação dos operários, porque respondem a uma necessidade do modelo económico hegemónico do capitalismo e tendem à reprodução desse modelo". 

Quando se chega a este estado de insanidade, o internamento em instituição psiquiátrica é o mínimo que se pode recomendar. Mas, em período natalício, talvez seja de aproveitar Arnaldo Matos para os circos de inverno que por aí andam, para renovar a classe dos palhaços. Neste caso, o palhaço triste. 

Muito lá de casa...

Um dos candidatos que estas eleições presidenciais oferecem à escolha dos portugueses é uma figura que, durante anos, entrou na nossa casa com grande frequência. Não tocou à porta, mas esteve connosco na sala, conversando sobre tudo e sobre todos, de futebol a política, de “faits divers” às finanças, da justiça aos espetáculos, da lombada de livros às questões de saúde, etc, etc.

Sobre tudo tinha ideias, de tudo parecia que sabia um pouco, num modelo a que os italianos chamam de “tudólogo”. Diz coisas certas? Claro que sim, a par de outras que são tão discutíveis como as que qualquer um de nós costuma ter. Educado, inteligente, informado, às vezes um tanto “pela rama”, outras um pouco mais profundo, o tal candidato provou que quase nada do mundo lhe era alheio. Ou parecia ser. A sua melhor definição foi-me dada um dia por um amigo: “estou quase sempre de acordo com ele, exceto quando conheço bem os assuntos!”
No cenário de fundo da vida da esmagadora maioria dos portugueses adultos, o tal candidato é uma figura que nunca esteve distante. Os mais velhos lembram-no como jornalista, outros como político ou como jornalista político, muitos outros simplesmente como professor – e nós sabemos como ser “professor” sempre por cá funciona subliminarmente como um fator de prestígio para credibilizar o que se diz. A maioria dos contemporâneos recordá-lo-á como opinador, primeiro na rádio, depois nas televisões, nestas tendo vogado entre canais. No desporto, não é do Benfica nem do Sporting, antes pelo contrário, não sendo também do Porto. Todos o identificam com um partido mas também já o ouviram criticar, sem exceção, os líderes desse mesmo partido. Todos? Todos! Mesmo que ele próprio tenha também cumprido um dia essa função…
Para muitos dos portugueses, esse candidato sugere a intimidade que temos com um primo distante, daqueles que irrompe nos casamentos ou nos batizados. Não o conhecemos bem, mas é insinuante, simpático e dialogante. Conta anedotas, é espirituoso, desenha uma presença agradável, sai-se com tiradas inteligentes, às vezes iconoclastas, as mais das vezes jogando no “mainstream” do senso comum. Algumas mulheres acham-lhe piada, alguns homens apreciam-no como divertido e eternamente bem humorado. Todos o tratamos pelo primeiro nome, claro. É muito lá de casa…
Há uma década, quando Cavaco Silva foi candidato a presidente, recordo-me do modo complacente como alguns, mesmo nele não votando, encararam com resignada aceitação a sua eleição, não obstante ser “do outro lado”. Dizia-se que era um homem “rigoroso”, “austero”, uma figura "em quem se podia confiar”. Depois, foi eleito e saiu-nos na rifa o que temos visto!
Imaginem agora que outro alguém, também “do outro lado”, mas a quem ninguém se atreverá a colar os qualificativos sossegantes que ingenuamente concedíamos ao presidente cessante, volta a ocupar Belém! Ah! “Mas este tem muito mais graça, é divertido! Vai ser um tempo interessante!” Pois, pois! Esperem pelas crises, pelos dias em que as coisas não estejam a correr bem! Depois não me venham dizer que não avisei!    
(texto publicado no Acção Socialista)

sexta-feira, dezembro 18, 2015

Encharcada


- Alinhas comigo numa encharcada, a meias?

A proposta de um amigo, no final de um divertido almoço pré-natalício de "implicados" no 25 de abril, com almirantes e generais à mistura, não foi suficiente para me seduzir. Tenho de poupar os meus excessos de trigliceridos, colesterol e glicose para os abusos nas festas que aí vêm. De seguida, desaparecidos que sejam os efeitos mais perversos, lá para meados de janeiro, vou ter de fazer a rotineira visita ao cardiologista. 

Gabava eu esta minha "heróica" resistência a outro amigo e este logo me disse:

- Tu vais ao cardiologista depois do Natal? Eu já fui antes. Melhor ainda: desde há uns anos vou sempre a três.

- A três cardiologistas?

- Sempre! É que nem todos te dizem o mesmo. Eu sigo sempre aquele que me recomenda menos cuidados...

Pensando bem, devia ter comido a encharcada no Clube Militar Naval, quanto mais não fosse para acompanhar o excelente espumante de Freixo de Espada à Cinta que um dos convivas ofereceu à "tropa". Como dizia o outro: é o que se leva desta vida... Ou, como um dia também ouvi, só se vive uma vez e esta parece que é a última.

Ventos da pequena história


Não faço ideia se a imprensa internacional destacou o assunto na agenda das curiosidades, mas seria imperdoável se não tivesse ficado bem registado o caso da desistência de uma candidata às eleições presidenciais portuguesas, alegadamente por virtude da documentação para a instrução da respetiva candidatura ter sido levada pelo vento que assolou os Açores. Creio que nunca o famoso anticiclone tinha tido uma intervenção política tão significativa...

Verdade seja que, neste morno tempo de campanha presidencial, este terá porventura sido o seu episódio mais excitante. Ao que vou lendo, os candidatos dedicam-se a refeições e conversas corporativas, transportados por ondas grisalhas de apoiantes, perante um país que parece esvaído num cansaço político, depois da saga da indigitação governativa. Nada que deva desagradar muito ao putativo incumbente que dispõe da mais óbvia notoriedade mediática, que entra na semana natalícia com expetativas elevadas, devendo, no entanto, cuidar em não ser filmado a comer bolo-rei, como sucedeu a alguém há uma década, embora tenha sido a nós que saiu a fava...

Imagino que a António Costa não apeteça falar muito de eleições presidenciais. Como tem sido triste regra recente, o PS balcanizou-se entre candidatos que se reclamam da área do partido, conduzindo este a mais uma situação embaraçosa. Não optar entre os voluntários pareceu-me ser uma atitude sensata, embora também possa ser lida como desvalorizante da escolha. E, como o passado recente provou à saciedade, o lugar tem muito maior importância nos equilíbrios internos do que por vezes se supõe.

Passados que foram meses de excitação e combate político, fica-se com a sensação de que o país está a viver um tempo de desejada “acalmação”, não obstante ainda emerjam, aqui ou ali, histriónicas ressacas, típicas das saídas inesperadas do poder. Atentas as expetativas baixas com que o novo executivo foi recebido, a autoridade serena do primeiro-ministro, a qualidade muito respeitável da sua equipa e o inesperado “bom comportamento” dos seus companheiros de jornada induz uma imagem de estabilidade em que, há semanas, ninguém apostaria.

Entramos daqui a dias em 2016. Se o défice deste ano se aguentar, se o Banif acabar por não correr mal, se os patrões aceitarem pacificamente o salário mínimo, se o orçamento vier a estugar ambições excessivas e a fazer sorrir Bruxelas, quem sabe se tudo não pode vir a correr pelo melhor?! Ah! Mas é muito importante que o senhor Draghi tenha muito boas festas para que nós todos tenhamos um ano novo feliz.

quinta-feira, dezembro 17, 2015

A Europa, a Turquia e os refugiados


Star Wars


Um dia de 1980, o "número dois" americano em Oslo, Paul Bremer (que iria tornar-se "infamous" quando foi o primeiro "administrador" do Iraque, depois da invasão de 2003), convidou-me para uma sessão privada do filme "The Empire Strikes Back", o segundo filme da série "Star Wars", que tinha acabado de sair na América e de que ele tinha uma "advanced copy".

Recordo-me bem desse fim de tarde. Éramos aí umas 20 pessoas e eu passei uma "seca" inenarrável, até se desembocar nas inevitáveis pizzas com cerveja ou Coca-Cola, com que se fechou a noite. Detesto ficção científica, não tinha visto o primeiro filme da série (como não vi nenhum dos posteriores), não tinha a menor curiosidade por aquelas figuras, que todos os circunstantes conheciam de cor e salteado. A série "Star Wars" não me diz rigorosamente nada. 

Ontem, ao ver a excitação que por aí vai com o sétimo filme da série, dei por mim a ter pena de mim: por que diabo nunca consegui entusiasmar-me com a ficção científica, seja em filme, seja em livros? Com uma imensa técnica a servi-los, reconheço que esses filmes são de uma beleza plástica fantástica, como tenho notado nos extratos que observo. Mas levar a sério aquelas figuras de capa e espada luminosa? Pronto, já sei, a culpa tem de ser minha... 

Sindicalismo diplomático

Ontem, no palácio das Necessidades, foi reeleita a lista para a Associação Sindical dos Diplomatas Portugueses (ASDP), a cuja assembleia geral presido. Embora com algumas "baixas" que a conjuntura determinou, a lista eleita no ano passado dispôs-se a continuar por mais um mandato. Nem tudo aquilo a que nos propusemos foi conseguido (longe disso!), mas creio que, na atitude e na determinação, foi possível continuar a afirmar a vontade dos diplomatas portugueses de verem crescentemente dignificado o seu papel no seio da Administração Pública. 

Contrariamente a visões caricaturais preconcebidas, os diplomatas não reivindicam prebendas ou tratamentos de exceção, apenas por uma questão de prestígio ou estatuto protocolar. Com toda a legitimidade, desejam que uma carreira cujo acesso se faz através das mais exigentes provas de toda a função pública, que tem uma rotação de locais de exercício laboral que não tem par, que obriga a uma espécie de "dupla exclusividade" (pelo facto do cônjuge ter frequentemente de deixar de trabalhar), que implica um inconveniente saltitar de escolas dos filhos, bem como muitos outros aspetos específicos de condição profissional (necessidade de manter residência simultânea em Portugal e no estrangeiro, sujeição a sistemas de saúde diversos, frequentes riscos excecionais de segurança, etc), seja objeto de um estatuto profissional mais completo e cuidado, que comporte regras transparentes, que reduza a discricionariedade, que ajude a moderar a imprevisibilidade e possa dar maior estabilidade aos seus quadros. Não obstante os constrangimentos orçamentais que todos compreendemos e aceitamos, há muito a fazer para dar às novas gerações de diplomatas, a quem compete o futuro da representação externa do país, expetativas de uma digna realização profissional.

Em tempo: a assembleia geral da ASDP aprovou ontem um voto de pesar pelo recente falecimento do embaixador José César Paulouro das Neves, que era o sócio n. 2 da Associação.

quarta-feira, dezembro 16, 2015

A carreira e a vida


Luis Pinto Coelho pode não ter sido uma personalidade diplomática fascinante, mas acabou por tornar-se numa figura bastante interessante.

Governador civil, deputado do Estado Novo, comissário-nacional da Mocidade Portuguesa e professor universitário, este fiel servidor do salazarismo foi escolhido em 1961 para embaixador português em Madrid, cargo que desempenharia até Marcelo Caetano ascender ao poder, em 1968. Como diplomata político, a memória que dele guarda o Palácio das Necessidades não o eleva além da mediania.

Mas Luis Pinto Coelho acabaria por ter um percurso de vida bastante curioso. Tendo-se apaixonado em Madrid por uma americana lindíssima, sacrificou o seu lugar para poder viver ao lado da mulher de quem gostava. Nessa opção - contra tudo, contra todos e, em especial, contra as convenções da época - viria a mostrar uma dimensão humana muito interessante. Afastado de Madrid, Caetano dar-lhe-ia tempos mais tarde um lugar de conselheiro cultural no Brasil e, finalmente, colocá-lo-ia como embaixador em Buenos Aires, onde o 25 de abril o foi encontrar. Passou o resto da sua vida em Espanha, onde chegou a ser modelo fotográfico, nunca renegando as suas convicções salazaristas - o que, aliás, só lhe fica bem.

A sua neta, Sofia Pinto Coelho, publicou há meses uma memória carinhosa do seu avô, que eu havia lido com algum interesse. Na passada semana, assisti, por acaso, na SIC a um filme baseado nesse livro. Confesso que achei curiosa essa revisitação de uma existência pouco comum.  

Ainda a ONU e Portugal

No final dos anos 70, um grupo de cidadãos de diferentes cores políticas e oriundas de setores muito variados decidiu tomar uma iniciativa com o objetivo de reforçar a visibilidade das Nações Unidas no seio da sociedade portuguesa. Por muitos anos, durante a ditadura, as Nações Unidas haviam sido apresentadas como um "inimigo". Com uma imprensa censurada, a imagem da ONU tinha um tom sempre negativo, com a ação no seu seio dos países do "terceiro mundo", que apoiavam os "terroristas" que atacavam as nossas "possessões", a ser diariamente diabolizada.

O 25 de abril mudou a perceção de Portugal no plano externo, mas a imagem das Nações Unidas, das suas virtualidades, do fantástico trabalho dos seus diferentes órgãos e agências, ficou ainda longe de ser reconhecido entre nós. Em inícios de 1978, fui contactado para integrar o grupo fundador de uma estrutura tendente à promoção da imagem da ONU em Portugal. Recordo que tivemos várias reuniões no escritório das Nações Unidas em Lisboa, no edifício Imaviz, tendo eu próprio sido o autor dos estatutos da ACNUP (Associação de Cooperação com as Nações Unidas em Portugal). Tendo partido para o estrangeiro em 1979, desliguei-me entretanto da associação.

Recordo agora algumas pessoas que estiveram entre os fundadores da ACNUP: António Costa Lobo, Carlos Eurico da Costa, João Palmeiro, Rui Machete e José Policarpo. Esse mesmo: o futuro cardeal patriarca. 

terça-feira, dezembro 15, 2015

ONU - 60 anos de presença portuguesa

Passaram ontem os 60 anos da presença de Portugal nas Nações Unidas. A data foi assinalada discretamente. De relevante, apenas li um bom artigo do MNE português no "Público".

Portugal entrou para a ONU dez anos depois da criação da organização. Em 1945, a escassez de credenciais democráticas inviabilizara o nosso acesso, embora, anos depois, em 1949, o óbice curiosamente não existisse para o ingresso na NATO, onde, pelos vistos, o nosso país era tido como parte do "mundo livre". Só em 1955, um largo acordo Leste-Oeste viria a permitir a entrada de Portugal, a par de outros Estados.

Não iria ser nada fácil o percurso português na ONU. Os ventos sopravam a favor da descolonização, mas Portugal "assobiava para o lado", como se o assunto lhe não dissesse respeito. As nossas colónias tinham passado a ser denominadas "províncias ultramarinas", pelo que o problema era "dos outros", que não entendiam que entre Melgaço e Ocussi a questão era apenas de coordenadas geográficas. 

O desfecho da tensão instalada entre Portugal e a União Indiana em torno do estatuto do Estado da Índia, no final dos anos 50, fez prenunciar o vendaval político que o início da luta angolana pela independência, em 1961, iria instalar em permanência. Com a criação nesse ano do Comité Especial para a Descolonização - o chamado "comité dos 24" - ficou criada uma frente que iria passar a atazanar a diplomacia portuguesa. A ONU transformou-se num dos principais palcos da nossa visibilidade externa, num acossamento constante, que viria a conduzir ao afastamento forçado de Portugal de algumas agências da organização. A ditadura e a política colonial, que tornaram o nosso país "orgulhosamente só" no mundo, iriam ter nas Nações Unidas a sua "bête noire". 

A Revolução portuguesa de 25 de abril de 1974, abriu o mundo multilateral a Portugal, que, de um dia para o outro, passou a ser o "enfant chéri" da ONU. Menos de cinco anos depois, o nosso país ascendia pela primeira vez a um lugar de membro não permanente do Conselho de Segurança. Aí regressaria em 1997/98 e 2011/12, sempre com prestações de grande qualidade, que muito prestigiaram a nossa imagem. Pelo meio, ficaram algumas décadas de presença muito profissional e competente de Portugal nas várias instâncias da organização e suas agências. A luta pelo direito de autodeterminação de Timor-Leste iria confirmar-nos como um país com sólidos princípios e uma persistência e coerência notáveis. A participação portuguesa em diversas operações de paz no quadro onusino grangeou-nos também o respeito generalizado.

Portugal pode e deve orgulhar-se pelo que fez nas Nações Unidas ao longo das suas seis décadas de presença. E deveria dizê-lo mais alto.

segunda-feira, dezembro 14, 2015

14 de dezembro de 1986


Foi há 29 anos. Foram 7-1. Eu estava lá. Foi uma bela tarde.

A ilusão francesa


Este fim de semana, testemunhámos a concretização de umas das grandes ilusões da política francesa. O facto da Frente Nacional, de Marine Le Pen, não ter conseguido ganhar em nenhuma das regiões francesas, não obstante os resultados espetaculares obtidos na primeira volta destas eleições, significou apenas que uma aliança de votos entre a esquerda e a direita democráticas conseguiu o quase milagre de evitar esse desfecho.

Desde há vários anos que assistimos a este "teatro" democrático: os eleitores esquecem as suas clivagens e juntam-se em torno do candidato que melhor colocado possa estar para impedir a vitória do candidato da extrema-direita. É um "truque" que, até agora, tem funcionado, muito embora, neste sufrágio, as brechas tenham sido já evidentes. Por isso, nada nos garante que, no futuro, as coisas continuem a processar-se assim.

O partido de Marine Le Pen surpreendeu, uma vez mais: entre a primeira e a segunda volta subiu em número de votos, tendo obtido ontem o seu melhor resultado de sempre. As próximas eleições serão as presidenciais de 2017, onde Marine Le Pen tentará de novo a sua sorte.

Alguma França continua a pensar ser possível, por meros arranjos de natureza político-partidária, manter, por exemplo, a atual situação em que a FN, dentre os 577 deputados da sua Assembleia Nacional, tem apenas três (!) representantes próximos daquele partido. Ora quase um em cada três franceses vota Frente Nacional! Percebo e simpatizo com esta "barragem" republicana contra a sinistra extrema-direita, mas um juízo de razoabilidade democrática deve levar-nos, por um mero bom senso, à conclusão de que isto é política e institucionalmente insustentável.

Não será o prosseguinento destes entendimentos que, a prazo, travará a tragédia que seria - para a França, para a Europa e, por via desta, para Portugal e em particular para os portugueses que vivem em França - o surgimento da FN em lugares de poder. Só uma mudança das condições político-sociais que levam ao voto dos eleitores em Marine Le Pen pode alterar este estado tendencial de coisas. Isso significaria novas políticas e a recuperação da confiança, por parte do eleitorado, nos partidos mais moderados, à esquerda ou à direita. Se tal não suceder, estar-se-á apenas a adiar o inevitável.

ps - deixo uma fotografia de uma parede em Paris. Pensem nisto!

domingo, dezembro 13, 2015

"Olhar o Mundo"


Neste fim de semana, coube-me comentar a situação política internacional no programa da RTP "Olhar o Mundo", dirigido por António Mateus.

Os temas abordados são: a situação no Brasil, as eleições legislativas espanholas, o saldo da "parceria estratégica" estabelecida entre Portugal e a China há uma década, a nova determinação americana e o envolvimento britânico na guerra ao Estado Islâmico, o quarto de século passado sobre o Acordo de Dayton que garantiu a paz na Bósnia-Herzegovina, a primeira volta das eleições regionais francesas, as perspetivas abertas por um novo presidente argentino, as profundas mudanças políticas na Venezuela, as dificuldades económicas que Angola atravessa e os grandes desafios a que a cimeira do clima, em Paris, pretendia responder.

O programa pode ser visto aqui.

As pontes esquerda-direita

Marcelo Rebelo de Sousa referiu ontem, numa entrevista ao "Expresso", que, ao tempo em que era líder do PSD (1996-1999), tinha criado, com o então primeiro-ministro António Guterres, uma "miniestrutura de relação permanente", constituída por Isabel Mota e por mim, que "monitorizava o acompanhamento da política europeia passo-a-passo". É um episódio da "pequena História" que, porque revelado, vale a pena recordar.

Desde o início do seu governo, em 1995, António Guterres considerou importante ter o PSD "a bordo" para as grandes questões europeias. Embora com algumas "nuances", as posições dos dois partidos tinham largas similitudes no plano europeu e, muito em especial, ambas eram bem distintas, à direita, das do então muito eurocético CDS e, à esquerda, das do PCP (o Bloco estava ainda para nascer).

Recordo-me de uma reunião entre António Guterres e Marcelo Rebelo de Sousa, no gabinete do primeiro, em S. Bento, algures em 1996, comigo e com Isabel Mota presentes, em que ficou estabelecido que ambos dialogaríamos com regularidade sobre as posições em temas europeus que pudessem ter implicações importantes para o país. O PSD não teria um "droit de regard" sobre as posições do governo socialista mas, nas principais questões, este procuraria consensualizar com o PSD, na medida do possível, aquilo que viesse a apresentar em Bruxelas.

Isabel Mota, hoje administradora da Fundação Calouste Gulbenkian, tinha sido secretária de Estado do Planeamento durante governos de Cavaco Silva e era uma especialista na matéria europeia. Eu tinha acabado de assumir funções como secretário de Estado dos Assuntos europeus, depois de ter sido subdiretor-geral do setor e, simultaneanente, representante adjunto de Portugal no "grupo de reflexão" europeu para a revisão do Tratado de Maastricht. Muitos anos mais tarde, em 2003, quando eu estava como embaixador na OSCE em Viena, ambos viríamos a encontrar-nos de novo numa "task force" que o governo de Durão Barroso criou para acompanhar as negociações do malogrado Tratado Constitucional europeu.

O meu antecessor na secretaria de Estado dos Assuntos europeus, durante os governos de Cavaco Silva, havia sido, durante uma década, Vitor Martins, um técnico altamente qualificado, que fez um excelente lugar político e com quem eu colaborara intimamente (entre 1986/88 e 1994/95). Quando o substituí no cargo, muitas pessoas ficaram surpreendidas pelo facto de eu ter confirmado, no meu gabinete, alguns dos seus adjuntos, circunstância que julgo quase inédita nas transições de governos entre a esquerda e a direita em Portugal. Alguns desses técnicos manter-se-iam até ao termo das minhas funções, cinco anos e meio depois.

O meu diálogo com Isabel Mota consubstanciava-se numa troca regular de informações, tanto mais que o PSD acompanhava os mesmos temas no âmbito do Partido Popular Europeu. Isso fez-se, em especial, durante as negociações do Tratado de Amesterdão, em que me coube o papel de negociador português, e do quadro financeiro da União para os sete anos seguintes, a "Agenda 2000", cuja coordenação negocial cabia, como era de regra, ao secretário de Estado dos Assuntos europeus.

Esse diálogo, que sempre vi como muito proveitoso, não evitou algumas pequenas "accrochages" entre o governo e o PSD sobre temas europeus, quase sempre tituladas por mim, pelo lado do governo. Recordo-me de pequenas polémicas na imprensa envolvendo Luis Marques Mendes, Pacheco Pereira e o próprio Marcelo Rebelo de Sousa. Com Isabel Mota, que me recorde, só tive uma troca pública de argumentos, aliás bem civilizada, no "Expresso", sobre a questão da regionalização, tema que ela combatia e em que eu defendia a posição governamental, com toda a convicção pessoal que consegui mobilizar na altura para o assunto - e que, agora confesso, não era muita.

Depois da saída de Marcelo Rebelo de Sousa da liderança do PSD, substituído por Durão Barroso, a minha interlocutora do lado do PSD passou a ser Maria Eduarda Azevedo. Devo dizer que construí um relação de boa amizade com ambas as minhas interlocutoras "laranja", que dura até hoje.

Creio que a revelação ontem feita por Marcelo Rebelo de Sousa trouxe para público, pela primeira vez, a existência dessa eficaz "ponte" europeia entre o governo socialista e o PSD, nos idos de 90. Uma relação que, nos últimos tempos do segundo governo Guterres acabou por ter algumas dificuldades, não apenas pela crescente crispação política interna, mas igualmente pelo facto das estruturas do PS, nomeadamente os seus deputados ao Parlamento europeu, serem, por esse mecanismo, como que excluídas desse diálogo. No período decisório sobre o Tratado de Nice, cuja negociação também titulei por parte de Portugal, o diálogo entre o governo e o PSD seria conduzido diretamente por António Guterres com Durão Barroso, acompanhados nesses contactos por Maria Eduarda Azevedo e por mim. 

Nos dias que hoje correm, quando o antigo conceito de "arco da governação" não atravessa as suas melhores horas, não é com certeza muito popular defender que PS e PSD devem manter, entre si, um diálogo regular, como polos naturais de alternância política que nunca deixarão de ser. Contudo, acho que o cultivo desse diálogo se deve manter para as grandes questões de Estado, muito em especial para a política externa e, neste âmbito, para os grandes temas europeus. Quanto mais não seja para constatatar divergências...

sábado, dezembro 12, 2015

Miró


Lembram-se do tempo em que era "imperativo", para saldar as dívidas do país, vender a coleção de obras de Miró que faziam parte do património do BPN? Recordam-se de quando o assunto foi suscitado pela oposição e tudo foi feito pelo então governo para "despachar" aquelas obras? Têm na ideia que a PGR travou a venda das obras e que isso permitiu que a Parpública fosse forçada a não alienar aquele património?

Hoje mesmo, o ministro da Cultura, João Soares, anunciou ter oferecido à Fundação de Serralves a possibilidade de expor a coleção de obras de Miró. Que pertencem ao Estado português. Há algumas coisas a mudar, como se vê.  

sexta-feira, dezembro 11, 2015

Os riscos do medo


Há muito que a agenda europeia é dominada pelos medos. Foi, aliás, o medo perante a ameaça soviética, nos tempos da Guerra Fria, que cimentou a construção europeia, razão por que alguns consideram que, para além de Schumann e Monnet, há mais alguém que merece algum crédito pela solidificação do projeto integrador: Josef Stalin…

Aquilo a que Fourastié chamou os “trinta gloriosos” anos, entre o final da Segunda Guerra e a crise petrolífera de 1973, trouxeram à Europa crescimento, prosperidade e emprego, criando, deste lado do Atlântico, uma sociedade de consumo similar àquela que os EUA já gozavam. Do lado “de cá” da “cortina de ferro”, permaneceram sempre óbvios os temores defensivos. Mas o medo essencial na Europa morava então nas casas e nas ruas do “socialismo real”, tutelado por Moscovo.

Com os tempos económicos a serem menos favoráveis, com os alargamentos sucessivos a induzirem uma imparável diversidade e a conduzirem a uma objetiva mudança de natureza da União, esta tornou-se muito mais desigual. E, com o tempo, bastante menos otimista. O euroceticismo começou a bater à porta dos europeus, mais a uns do que a outros pela assimetria dos efeitos, fruto dos egoísmos nacionais que tornam Bruxelas o bode expiatório de tudo quanto corre mal em casa, adubado pelas quebras de solidariedade num projeto que se sente cada vez mais economicista e só residualmente tributário dos valores que haviam estado na sua origem.

Os medos regressaram em força às populações europeias e o projeto integrador, em lugar de ser visto como uma defesa para esses receios, começou a ser olhado como a verdadeira causa dos problemas. Se os alargamentos já haviam induzido o medo às deslocalizações de empresas, a imigração económica somou-se como uma nova ameaça ao emprego e, mais do que isso, induziu pulsões securitárias de novo tipo, afetando a bondade da livre circulação. A isso acresceu, nos últimos tempos, a questão dos refugiados e, ainda mais recentemente, a vaga terrorista, que veio “legitimar” o mal-estar intercultural e inter-religioso que já emergia em muitos países.

Este complexo quadro é o terreno ideal para quantos hoje advogam um recuo no processo integrador. Para Portugal, é muito claro que qualquer diluição desse paradigma seria muito negativo e agravador da nossa perifericidade.

Deixo um alerta específico: qualquer cedência ao Reino Unido, no seu pedido de “devolução” de poderes, que pudesse configurar um recuo nos direitos dos nossos trabalhadores seria um precedente muito nefasto. É que nunca se sabe se, aberta a porta, a senhora Marine Le Pen não poderia começar a ter algumas outras ideias…  

quinta-feira, dezembro 10, 2015

Pedido de Ajuda


Alguém pode acreditar que estas são as traseiras do Palácio onde, na noite de ontem, o chefe do Estado ofereceu um banquete oficial a um convidado estrangeiro, de um espaço museológico com pergaminhos, onde se situam as instalações do Instituto de Gestão do Património Arquitetónico e Arqueológico (!!!) e, last but not least, do Ministério da Cultura? 

Um dia, num Conselho de ministros em que estive presente, vai para 20 anos, recordo-me deste "escândalo" ter sido aflorado. Não me recordo de pormenores do que então se decidiu. A única coisa que sei é que as coisas estão ainda hoje no estado que se pode ver na imagem e passível de ser observado por quem suba a Calçada da Ajuda a caminho de Monsanto.

Há mais de dois anos, escrevi por aqui isto:

A "malapata" de Santa Engrácia acabou nos anos 70. Fizeram-se entretanto o CCB e imensos quilómetros de autoestradas, pavilhões gimno-desportivos, rotundas, milhares de obras, muitas delas inúteis, para encher o olho e o bolso patobravista autárquico. Terá também havido dinheiro para construir, de raíz, um novo e muito discutível Museu dos Coches. Neste mar de fundos, por que será que o Palácio da Ajuda permanece como o parente pobre do nosso mais valioso património histórico-arquitetónico?

O novo ministro da Cultura, João Soares, que foi um magnífico presidente do município lisboeta, tem, agora, mesmo à porta do seu gabinete, esta tragédia arquitetónica com que Lisboa convive há demasiados anos. Juntamente com Fernando Medina, que hoje dirige com saudável dinamismo a Câmara municipal, e com António Costa, que chefia o governo depois de muito tempo de sucesso no mesmo posto, seria importante que conseguisse encontrar uma solução para este estado de coisas. Ninguém reclama o impossível "completamento" do palácio, mas também se aguarda que não se acabe num remate modernaço, com ruínas e vidro. É que as "ruínas" da Ajuda não têm dignidade para serem salvas, são apenas um fruto "santaengraciano" da inércia e do desleixo.

Leia-se sobre este assunto o artigo de Paulo Ferrero no Público de hoje. 

Conselho de Estado


Devo dizer que não tenho uma opinião muito elevada sobre o papel do Conselho de Estado no nosso ordenamento constitucional. Com todo o respeito que, por razões formais, os órgãos e as instituições da República devem merecer a qualquer cidadão, confesso que não dou ao Conselho de Estado uma grande importância. E desconfio que os presidentes da República também não. Se assim não fosse, fariam uma leitura alargada das razões para a respetiva convocação e utilizá-lo-iam com muito maior frequência. E não é isso que acontece.

E por que o não fazem? Desde logo porque a opinião da esmagadora maioria das figuras institucionais que o compõem é quase sempre conhecida de antemão. Uma ou duas pode criar pontualmente alguma surpresa, mas, conhecendo-as, elas não fugirão muito ao "script" da instituição que titulam. O mesmo acontecerá, com certeza, às personalidades indicadas pelos partidos. A regra (também há exceções) leva a que a sua posição coincida com a da formação partidária que os indicou. Restam as escolhas do chefe do Estado, essas personalidades que tanto podem ser próximos do presidente, e que neste caso tenderão a segui-lo, ou nomes destinadas a colmatar a representação de partidos não beneficiados pela votação parlamentar e que, por maioria de razão, tenderão a espelhar a posição dessas mesmas formações (Cavaco Silva não favoreceu este modelo de seleção para o Conselho de Estado).

Não estranho por isso que os presidentes optem por ouvir outras entidades, quando estão em causa decisões importantes. Observámos isso quando Jorge Sampaio se aconselhou por ocasião da substituição de Durão Barroso por Santana Lopes e, mais recentemente, quando Cavaco Silva auscultou várias figuras ligadas a determinadas instituiçõess, antes de nomear António Costa. Resta saber se, em especial no segundo caso, o chefe do Estado teve alguma surpresa nas opiniões que ouviu (seguramente que a teve no caso de Fernando Ulrich, mas quem conhece o seu espírito independente não terá estranhado muito).

Que pensam os candidatos presidenciais do papel do Conselho de Estado? Marcelo Rebelo de Sousa já o disse, prometendo dar-lhe mais atenção. Vou estar atento para ouvir o que Sampaio da Nóvoa e Maria de Belém tenham para dizer sobre o tema. Não que isso signifique muito, na realidade prática das coisas, mas sempre ajuda a caraterizar o perfil institucional daquelas ou daqueles em que acabaremos por votar.

Dito isto, a verdade é que os partidos políticos adoram ter representantes no Conselho de Estado, porquanto isso funciona como um fator de prestígio e uma consagração institucional. Se o Conselho é um espelho da sociedade, nomeadamente da sociedade política, tem de facto uma certa lógica que os cerca de 20% de votos que partidos como o PCP e o Bloco de Esquerda representam possam dar lugar a uma presença no órgão. Daí que seja natural que aproveitem o seu apoio aos socialistas para tentarem garantir esse estatuto.

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...