domingo, dezembro 20, 2015

O dr. Ladislau e a bela russa da bomba de gasolina


A jovem, que há pouco, na noite fria e chuvosa de Amarante, atestava o depósito do meu carro, falava um português irrepreensível. Os seus olhos, contudo, não enganavam.

- De que país é? 

- Sou da Rússia, disse com um belo sorriso.

Não estranhei. Mas, atentando para o rasgado dos olhos, inquiri:

- De que região da Rússia? 

Talvez para não entrarem em demasiadas explicações, estou preparado, desde há muito, para ouvir, dos imigrados russos em Portugal com quem me cruzo, a resposta "de Moscovo" ou "da região de Moscovo". Ela não foi por aí mas, sempre a sorrir, ainda tentou afastar a minha curiosidade:

- Sou de uma ilha ...

- Em que zona? 

Deve ter estranhado um pouco, mas foi ainda vaga:

- É uma ilha a norte do Japão.

De repente, a minha memória deu um "salto" de mais de meio século. De uma conversa numa tarde, no Centro de Estudos Geográficos do Liceu Nacional de Vila Real, aí por 1964. 

O Centro tinha sido criado por iniciativa do Dr. Ladislau, um professor de Geografia oriundo de Braga, que com isso dera alento a um grupo de interessados pelo tema, sob o imparável impulso do Sérgio Moutinho, que já se foi há muito. Dele faziam parte o José Barreto, o Elísio Neves, o Carlos Leite, o Ribeiro e mais dois ou três. Reuniamo-nos e discutíamos, publicávamos um boletim impresso na Minerva Transmontana, o "Meridiano". Graças a esse extraordinário professor, um homem que via muito mal mas que sabia como ninguém motivar o nosso interesse e a nossa curiosidade, conseguíamos então romper a modorra da vida chata de um liceu de província.

- É de Sacalina? 

A jovem quase que parou o que estava a fazer e, olhando para mim, agora com os olhos rasgados muito abertos de espanto:

- Estou em Portugal há 12 anos. É a primeira pessoa que me disse o nome da minha ilha.

O frio da noite e a pressa dos passageiros não me deu tempo para lhe perguntar se, como dizia Tchekov, "em Sacalina não há clima, só há mau tempo", razão porque foi, durante muitos anos, um sinistro lugar de degredo. E vinha ainda muito menos a propósito dizer-lhe que foi graças a uma conversa com o Dr. Ladislau, que um dia me falou dos conflitos da Rússia com o Japão, em tempos a propósito de Sacalina e até hoje sobre as Curilhas, que eu ouvi falar pela primeira vez da ilha onde ela nascera, que era mesmo capaz de apontar o seu lugar no mapa e que agora, meio século mais tarde, estava ali a fazer uma "figuraça", na bomba de gasolina da Prio em Amarante, sob a chuva miúda do inverno do Marão, à saída para Padronelo. 

Se têm dúvidas, passem por lá, falem com a bela "sacalinense", a quem há pouco me esqueci de perguntar o nome.

(Ah! e se forem durante o dia, aproveitem e comprem, ali bem perto, o excelente pão de Padronelo, dos melhores do norte. E, na "Tinoca", o "quinteto" maravilha de doces, mesmo a calhar para o Natal: as lérias, os papos d'anjo, os São Gonçalos, os foguetes e as brisas do Tâmega.)

14 comentários:

Majo disse...

~~~
~ Uma ilha brumosa e inóspita,

tão chorada pelo Japão, assim como a Kunashir...

Atendendo ao valor imaterial, é um valor bem alto

a pagar, pelos enormes disparates megalómanos

do Japão na II Guerra Mundial...


A ilha já foi uma colónia penal...

~ O que viajou a citada russa!
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Joaquim de Freitas disse...

Que história bem contada! Passei umas vinte vezes por cima ou ao lado, em viagem para Tokyo, antes da abertura da linha directa pela Sibéria. Fiquei com uma recordação terrível destas viagens, porque foi nessas paragens que um caça russo abateu um Boeing 747 da Korean Air Lines, que teria desviado do plano de voo autorizado...Que espionava dos ares, por conta dos Americanos, disse-se ....

Para os cinéfilos, Youl Brynner era nativo da Sacalina.

Joaquim de Freitas disse...

Engraçado, que uma "coisa" como esta consiga ter 15 comentários, enquanto Portugal está perante tantos problemas! Como com o futebol! Nunca compreenderei os meus compatriotas!

Esta "coisa", o "Star Wars", é na realidade, como para o Coca-Cola, uma extraordinária "obra" de marketing, como só os Americanos sabem fazer. E que o mundo inteiro "absorve"!

Alcipe disse...

Andas tu com frescura em Amarante
a deslumbrar eslavas plas estradas,
com esse geográfico desplante
que te ficou de lides já passadas,

enquanto nós, os órfãos do Procópio,,
abandonados pelas gerações
que nos alcançam só no telescópio
com que a História desfaz as emoções,

sentimos falta desse jantar lauto
em que a peste grisalha prosperava
e ria com o riso de um Plauto
o que da piolheira nos maçava.

Vencidos pois da Vida e da idade
nem um jantar nos vem trazer saudade!



Manuel Augusto Araújo disse...

Coisas da memória! Sacalina, além do que já foi referido o Corto Maltese numa das suas aventuras pela Sibéria, não deu um salto à ilha de Sacalina? Pela bela russa ainda vou pesquisar pra ver se a memória não me está a trair! não o posso saber já porque os meus "cortos malteses" estão em casa de um dos meus filhos. A falta de espaço tem destes alçapões. Às vezes queremos ir logo procurar uma coisa e ...vai demorar quase tanto tempo como ir descobrir a bela russa numa bomba de gasolina em Amarante! também a idade ensina a controlar as urgências e o tempo fica mais demorado como deve ter sido o tempo de viajar de Sacalina para Amarante! uma viagem algo misteriosa se calhar mais difícil de decifrar que um poema do Teixeira de Pascoaes!

Anónimo disse...

A historia e comovente e muito humana. Por mim nao sabia da existencia da ilha. Bem espero que a bela russa sem nome nao tenha vertido preciosas gotas de combustivel no meio da emocao.

A foto e soberba e faz lembrar uma ilha. Embora imagine que a ilha em questao esteja adora mais que brumosa e inospita fez-me saudades de Tarkovsky e da ilha
no "Solaris".

Mais pragmaticamente, porque nao retoma a tradicao do jantar da mesa 2 em 2016 convocando os convivas para o restaurante "Tinoca" com o seu quinteto de doces? Podia sugerir que metessem gasolina na bela russa com obrigatoriedade de cantarem Rachmaninoff "Praise the name of the Lord" (em russo!!!)

Desejo-lhe um domingo com sol e repouso.

Saudades

F. Crabtree

Anónimo disse...

Não fosse estar bem longe de Amarante e lá deslocar-me-ia por dois motivos: Conhecer a bela e simpática russa da bomba de gasolina; e comprar esse belo pão que lá se fabrica... A bela russa, embora bem distante da sua Terra, aqui, neste jardim à beira mar plantado, terá encontrado alguma qualidade de vida, que lá não teria!...
Bfds

Anónimo disse...

Fui lá. Está de folga...

José disse...

De folga? uma mulher dessas nunca está de folga...

Anónimo disse...

Boa Noite,

Que bom, que bem me faz passar por aqui...

Não tendo a sua capacidade narrativa, refiro apenas que situação semelhante me aconteceu com uma cidadã russa mas de Novgorod - cidade que amei conhecer.

Afectuosamente
Helena/Cascais


Anónimo disse...

Disse hoje à minha Mulher "Tenho de ir a Amarante encher o depósito" e ela não gostou. Moramos na Rebelva...

a) Feliciano da Mata, admirador de Putine

Luís Lavoura disse...

Pois eu tenho um colega que é da península de Kamtchatka (logo a norte da Sacalina) e tem um aspeto de russo perfeitamente normal.

ARPires disse...

Meu caro e ilustre embaixador, tem "estórias" algumas das quais carregadas de história e eu só me pergunto do que está à espera para publicar em livro.
Matéria é o que mais tem, imaginação não falta e capacidade narrativa inesgotável, só faltará mesmo a vontade de fazer!...
Acho que está chegada a hora de por mãos à obra.

Ernesto do Paço disse...

O seu post deixa transparecer uma indelével admiração por esses obscuros professores de Liceu que tivemos a sorte de encontrar na nossa juventude. O dr. Ladislau Morais, que usava óculos com lentes muito grossas, foi meu professor no Liceu Nacional de Viana do Castelo e, como Amilcar Patrício ou Pinheiro da Silva, despertou em nós o interesse pela Geografia e pela História que nos acompanhou vida fora e teve como prémio o dia em que visitamos Abou Simbel, o Cerro Rico de Potosi ou simplesmente a Acrópole. O seu encontro com a bela russa de Sacalina será, de certo modo a homenagem a esses notáveis professores. Je

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...