sábado, fevereiro 25, 2023

Guerra de mundos


O que se passa na Ucrânia fez regressar a sociedade internacional a um patamar de tensões com elevado risco. Mas só foi surpresa para quem andava desatento.

O ocidente, através dos Estados Unidos, tinha ganho a Guerra Fria. Nesse contexto, exaurida e incompetente na gestão da sua sobrevivência, a União Soviética, em pouco tempo, implodiu institucionalmente. Do lado de cá, com o comunismo soviético pelas portas da amargura, um furor otimista quase decretou a vitória eterna da democracia.

A Rússia que sobrara para Moscovo pareceu, a certa altura, poder adotar um modelo de mercado que o neo-liberalismo julgava salvífico para a criação, por ali, de um futuro regime de liberdades. Viu-se! Sem o cimento retórico dos amanhãs do socialismo real que não chegaram a cantar, o que restou da URSS acabou numa patética decadência. A regeneração, uma vez mais, veio a fazer-se em torno de um projeto de raiz proto-imperial, autoritário como sempre, marcado por uma imensa humilhação.


A ambição

No nosso mundo, a euforia deu lugar à ambição. A Europa, que no pós-guerra se unira atrás do muro de Berlim e debaixo do chapéu de segurança americano, teve arroubos de existência política, quis-se potência, encheu-se de sucessivos tratados e tratadinhos, acolhendo no seu seio, um tanto à pressa, para aproveitar a janela de oportunidade da fragilidade russa, Estados que, décadas antes, em Ialta, os aliados haviam concordado em oferecer à tutela de Estaline.

França e Reino Unido faziam de poderes, ajudados pelo nuclear e pelo usucapião no Conselho de Segurança, com a Alemanha a comprar, com a riqueza e a continuada contenção securitária, a honra e a unidade perdidas nos anos 40.

Os americanos tinham percebido, entretanto, que o principal risco, ameaçador da sua hegemonia económica e, a prazo, também geopolítica, estava algures, estava na China. A Europa era um competidor económico controlável, a Rússia era vista como um poder regional, como um dia disse um presidente americano que, nem por ser muito estimável, deixará de ficar na história com um dos mais incompetentes gestores da postura externa de Washington. Cavalgando a russofobia dos neófitos europeus, com o 11 de setembro a fornecer-lhe um alibi para pescar em águas estratégicas tradicionalmente russas, Washington foi por aí adiante.


O teste

Com a promoção do golpe político da Maiden, em 2014, a América deu uma machadada final na hipótese da Ucrânia poder gerir, enquanto Estado unitário e democrático, a sua dualidade étnica. O acordo de Minsk foi um mero arranjo de fachada, no qual ninguém acreditou, a começar por Washington, que não se tinha sentado àquela mesa. Irritada com o facto consumado da tomada da Crimeia, a América decretou a quarentena da Rússia do G8.

Putin arranjou um pretexto para se acantonar no Donbass e, à medida que Washington e Londres faziam entrar a Ucrânia para a NATO pelas traseiras, acalentou o projeto de reverter a independência ucraniana de 1991, a qual, verdadeiramente, nunca tinha aceitado. E mediu tudo mal: a determinação do opositor, o efeito do pânico nos europeus, o desejo de Biden de fazer esquecer a humilhação no Afeganistão e, surpresa das surpresas, a inadequação da sua força militar convencional.

Putin bem pode tentar disfarçar com bravata, mas o que se passou na Ucrânia neste último ano, foi uma imensa humilhação para a Rússia. A teoria do cerco externo promovido pelos Estados Unidos, com a Europa a fazer peito mas a ser um mero ajudante de campo, tem alguma coisa de verdade. Mas a voracidade territorial, bem como a barbaridade militar desproporcionada, colocou Moscovo na marginalidade da ordem internacional.

Muitas dezenas de milhares de mortos depois, de uma extensão inimaginável de material militar perdido e de uma condução errática do esforço de guerra, fica, da Rússia enquanto poder, uma imagem muito pouco lisonjeira.

E fica a trágica dúvida: se a Rússia se enganou na avaliação das suas capacidades numa guerra convencional, não poderá vir a repetir o equívoco numa qualquer aventura nuclear?


A fronteira

Em Varsóvia, Biden quis marcar a nova fronteira, democracias versus autocracias. Com isto, faz um favor a Putin, colocando potencialmente a seu lado, porque excluídos pelo país-tutela do mundo das liberdades, toda uma vasta legião de ditadores, autocratas e ditos iliberais, com quem pode não dar jeito aparecer na fotografia, mas que contam bastante no saldo político Norte-Sul. O presidente americano esquece que, na anterior Guerra Fria, foi com muita dessa gente que o ocidente contou para trilhar o caminho que levou ao colapso de Moscovo.

A guerra está aí agora, para lavar e durar. Sem "boots on the ground", ganhando nas armas, no gás e, desta vez, nos princípios, a América está mais à vontade para a tarefa de abafar a Rússia. A Europa, por muito que Macron ziguezagueie, seguirá Washington, tendo de gerir as consequências políticas e económicas das sanções. Se os cidadãos americanos não sentirem negativamente no bolso o esforço orçamental, Biden pode mesmo vir a suceder a si mesmo, travestido de Matusalém. Quem havia de dizer!

quinta-feira, fevereiro 23, 2023

Mais claro não pode ser


A lógica da ação militar russa passa por esta frase. Não se trata apenas defender os direitos dos russos que vivem na Ucrânia, no quadro da soberania ucraniana (base do acordo de Minsk, que Moscovo subscreveu). Putin considera que as áreas onde eles vivem são "territórios históricos" russos. Pode imaginar-se como isto deve soar nos ouvidos dos Estados bálticos.

quarta-feira, fevereiro 22, 2023

Trindade


O empregado (disse-me) tinha 43 anos e, a observar o modo clássico como se movimentava na sala, hoje ao jantar, dava ares de estar ali desde a fundação da casa. Fiz as contas e concluí que, já adulto, fui, pela primeira vez, à Trindade, a cervejaria, há precisamente 53 anos. Uma década antes do homem nascer. Ou ele é muito novo ou então é isso em que estão a pensar.

A bem dizer, nunca me recordo de ter comido mais do que assim-assim na Trindade. O bife, porque vai-se à Trindade para comer o bife, esteve sempre longe de ser o melhor de Lisboa. 

O bife da Trindade, mesmo o do lombo, antes naqueles pratos metálicos que fizeram escola, esteve, por muitos anos, muito longe do do Império (hoje, fica ela por ela, e isto não é um elogio), do velho Montecarlo ou do Toni dos Bifes, e, sempre, muito abaixo do "rollsbeef" do Café de S. Bento. O senhor Albino, no Snob, ainda hoje tem um bife melhor. O Outro Tempo Bar também. O do Gambrinus, claro, é muito superior - e já teve melhores dias. Simpático continua a ser o do Pabe, como o é o da Sala de Corte. Falam-me da excelência dos bifes do Elefante Branco, mas essa é carne onde, juro!, nunca meti o dente.

Pelo bife do lombo que hoje ali provei (tinha ido em dezembro e a impressão foi exatamente a mesma), a Trindade renovada (porque a casa levou uma forte e arejada reforma, como a imagem ilustra) está feita para uma clientela estrangeira, que deve gostar dos clássicos azulejos e das calçadas de Lisboa que ilustram as novas paredes. Para quem é, aquele bife basta. Ou o "brás de bacalhau" (quem inventou esta corruptela parola, insultuosa para o Bacalhau à Brás, devia ser pendurado eternamente numa espinha), também pedido, que estava desenxabido.

Repito: não tenho especiais saudades da antiga Trindade. Mas recordo ali os almoços políticos socialistas, antes das descidas do Chiado, a 48 horas das urnas. E, bem antes, os fins de tarde dos anos 70, saído da livraria Opinião ou do Centro Nacional de Cultura, quando hesitava entre ir à Casa Transmontana, nas escadinhas do Duque, ao Alfaia ou então à Trindade. Ali havia a certeza de encontrar, na sala de entrada, sempre com uma caneca gigante de cerveja ao lado, um tipo barbudo, com cara de poucos amigos, que fechava todos os dias nesse registo, depois de ter oficiado no alfarrabista, umas portas abaixo, quase em frente aos Anarquistas.

Fui à Trindade hoje, como se vê. E só lá voltarei, não obstante a simpatia solta do pessoal, com muito brasileiro (e gosto de ver brasileiros no nosso comércio), quando me esquecer do bife que hoje quase lá comi.

O regresso de Bond


(Artigo publicado na revista "Visão")


O regresso de Bond


Eles aí estão, pelo mundo, de volta à ribalta. Nos jornais, na política, na academia, nas fardas. Os viúvos da Guerra Fria. 

Desde o início dos anos 90, quando a implosão da União Soviética tinha garantido uma vitória ao ocidente, percebia-se já a sua inquietação. Tinham tido um êxito, claro, mas, às vezes, em tom de desabafo, deixavam cair: “Nesses outros tempos, as coisas eram bem mais claras, éramos nós e eles”. E o facto de “eles” se terem só formalmente transmutado, de ter passado a ser necessário fingir que se acreditava na sua conversão, criava um ambiente estranho, um faz-de-conta em que passaram a ser obrigados a viver. 

Por uma trintena de anos, esses saudosos das sombras de um mundo a preto e branco, sentiram-se desconfortáveis, por terem sido forçados a sair da velha e cómoda trincheira maniqueísta. 

Tal como James Bond tinha abandonado a caricatura vinda do frio e derivara para novos alvos, também eles se dedicavam a genéricos estratégicos, aos atores não-estatais, como o terrorismo de várias matizes, ou os jihadistas, tudo imerso numa pouco subliminar islamofobia, sucedânea do anticomunismo do antanho.

Agora, o velho Bond já pode regressar. O que se passou no último ano trouxe esse pessoal de volta aos velhos tempos, ao faroeste da vida internacional, à guerra dos bons contra os maus, mesmo que se sintam obrigados a conceder, em privado, referindo-se a alguns incómodos companheiros de jornada, que surgem no apoio à causa da conjuntura, aquilo que um dia Roosevelt disse de Somoza: “He is a son of a bitch, but he is our son of a bitch”. Direitos humanos, liberdade partidária, independência dos tribunais, liberdade dos media - enfim, passam a ser coisas que outros valores mais altos obrigam a pôr entre parêntesis.

Devemos ficar inquietos quando, na partilha de solidariedade com causas anunciadas como essenciais, descobrimos, ao nosso lado, gente que, em tudo resto, não partilha o nosso quadro de valores. Quando, sob o alibi da “force majeure”, nos encontramos de mão na mão com pessoal nada estimável, é muito mau sinal. Ou melhor, no plano internacional, é sinal de que entrámos, alguns felizes, outros descontentes, muitos hipócritas, outros sem mais soluções, na lógica de uma inelutável confrontação. Que é sempre a soleira de uma possível guerra a sério, com tudo ao molho e fé no nuclear.


Agradecer a Putin

Vladimir Putin é o outro lado da moeda dos “cold warriors” de extração ocidental.A Rússia de Gorbachev e Yeltsin, de que o ocidente morre de saudades, acabou por decantar um “apparatchik” que, nem por um segundo, aceitou de bom grado o fim da URSS, que o mesmo é dizer, o saldo da Guerra Fria que essa mesma URSS, goste ela ou não de admitir, perdeu. E, quando se perde uma guerra, há consequências a suportar.

Contudo, Putin sabia que, nessa Rússia humilhada, não estava sozinho, muito longe disso. E, sem surpresas mas com inesperada clareza, deu-nos a conhecer a doutrina subjacente à sua leitura de uma espécie de hierarquia das nacionalidades que a União Soviética federara. As intervenções públicas com que o senhor de Moscovo nos ilustrou, ao longo do ano desta guerra, foram, nesse aspeto, de extrema utilidade didática.

É certo que a Rússia fora acossada pelo ocidente - chamando as coisas pelos nomes, pelos Estados Unidos - com o assumido objetivo de provocar o seu enfraquecimento, mesmo a sua anulação como potencial ameaça. Mas foi ele próprio, Putin, com o seu mutante e cada vez mais preocupante comportamento, ao longo dos anos, quem gerou o caldo de cultura que adubou essa mesma deriva. 

Aparentemente, a Rússia de hoje não consegue perceber que os governos dos países que engrossaram as fileiras da NATO, que se foram chegando às fronteiras russas, o fizeram porque quiseram, não foram marionetes, agindo sob a pressão de modernas baionetas americanas. Alguns têm ódios recalcados, uma russofobia evidente. Mas têm também fortes razões para estarem inquietos. São cúmplices, dessa forma, do cerco americano à Rússia, do incumprimento da promessa política americana de não alargar a NATO? É óbvio que sim, mas Moscovo tem aqui a paga da sua preocupante deriva autocrática.

Talvez a Rússia possa agora perceber melhor que foi necessário um sismo estratégico para ver duas sólidas democracias, como a Suécia e a Finlândia, que tinham feito da neutralidade o DNA da sua identidade internacional, lançarem-se, por completo, nos braços da aliança militar ocidental. E que foi Putin, sem a menor sombra de dúvida, o detonador desse movimento.

Aqueles que, deste lado do mundo, se sentem agora mais à vontade com a dualidade estratégica que aí está reinstalada, devem assim um agradecimento à ajuda dada por Putin. 

A invasão da Ucrânia e, no topo do bolo, a canhestra integração na Federação dos oblasts onde havia uma apreciável população russa, precedida de uns ridículos referendos, revela que Moscovo vive numa espécie de “second life” em matéria de direito internacional, de que já tinha dado mostras na questão da Abcásia e da Ossétia do Sul. 

Por muitas voltas que as coisas possam dar, a Rússia pode esperar sentada se acaso tem a mínima esperança de que esta sua “nova” ordem internacional venha a prevalecer.


A China a bordo

A entrada das tropas russas na Ucrânia apanhou a China desprevenida? Talvez nunca venhamos a saber o teor da conversa entre Xi e Putin, nas vésperas da olimpíada de Inverno.

O que a China sabia, o que todos sabíamos, é que o mal-estar dos EUA em face da sua afirmação internacional caminhava num crescendo. E Pequim não ajudou: por exemplo, não se coibiu de alimentar a corda retórica, na tensão com Taiwan, porque lhe era essencial em ano de congresso do partido. 

Os últimos anos pareciam apontar, contudo, para o interesse chinês de consolidar o seu projeto de financiamento de infra-estruturas, a Nova Rota da Seda, um plano que, tudo assim o indicava, seria favorecido por um mundo em relativa paz.

O ciclo de distração americana no Médio Oriente - inaugurado com o 11 de setembro, prolongado com a segunda guerra no Iraque e culminado na saída do Afeganistão - tinha dado a Pequim, entretanto, duas décadas de simpática desatenção por parte de Washington. Isso tinha acabado e era óbvio que os EUA iriam agora mobilizar os seus “compagnons de route” asiáticos para um cerco de suspeição face a Pequim.

O que não estava nas cartas é que a China se veria obrigada, na sequência da reação ocidental à entrada da Rússia na Ucrânia, a coreografar um relativo alinhamento com Moscovo. Mas era impossível à China furtar-se a ele, mesmo se o “timing” para este inevitável agravamento da relação com o ocidente não fosse, como não era, o seu.

Agora, a polarização com Washington é inevitável, restando a Pequim tentar encontrar prosélitos em todos os continentes, oferecendo-lhes razões e dinheiro para não se deixarem seduzir pelo poder americano. Enfim, uma espécie de “déjà vu” face ao período posterior à Segunda Guerra. 


Ah! E há a Europa!

O parceiro dos americanos na nova Guerra Fria é, naturalmente, a Europa. 

Nesta crise, ficaram provadas três coisas. 

A primeira é que os EUA continuam a ser um poder europeu insubstituível, único verdadeiro provedor de resposta a ameaças da Rússia, com o Reino Unido à ilharga e os restantes a velocidades e vontades diversas. 

A segunda é que a Europa de Bruxelas, depois do subliminar golpe de Estado institucional em que a Comissão subalternizou um aturdido Conselho, pela fragilidade conjuntural do eixo franco-alemão, quase pede meças à retórica jingoista da NATO, mobilizada pelo medo e pela subordinação ao clamor mediático, elevado à dignidade de legitimidade democrática. 

A terceira é que, por muito que o velho continente continue a agitar-se em torno da ideia de obter uma autonomia estratégica, em matéria de segurança e defesa, esta guerra terá provado, pelo papel uma vez mais desempenhado pelos EUA no continente, que embora essa fosse porventura uma bela ideia, pode continuar a ser só isso.


Agora, a guerra

Os Estados Unidos, o dono do jogo, que até agora tem providenciado a esmagadora maioria do armamento dado à Ucrânia, mostra vontade de continuar a favorecer a resistência desta face à agressão russa, não forçando Kiev a qualquer cedência territorial. Com ou sem reserva mental por parte de alguns Estados, a Europa segue Washington, em ordem unida. Os EUA terão decidido que vale a pena correr o risco de contrariar a bravata russa de que pode vir a recorrer às armas nucleares. Só resta esperar, para a segurança coletiva, que as contas lhes (nos) não saiam furadas.

terça-feira, fevereiro 21, 2023

Há 10 anos...

Faz hoje precisamente 10 anos, publiquei neste blogue o que então designei por um "post impopular". E tenho a certeza de que, nos dias de hoje, continua a ser. Aqui fica:

"Acho triste o contentamento que anda aí em certas hostes com o achincalhamento público e o boicote da palavra de um membro do governo. Em democracia, o direito à manifestação e até à indignação tem sempre de ser compatível com o respeito devido às figuras institucionais e, em particular, o respetivo direito à palavra. Por muito que alguns não gostem de certas autoridades da República, a verdade é que se trata de personalidades que assumiram os cargos que hoje ocupam com plena legitimidade. As formas públicas de expressar o legítimo descontentamento têm assim de ser compatíveis com o quadro de deveres que a democracia impõe.

Sei que há quem não goste de ouvir isto embora desconfie que, se tocasse "aos seus", a posição dessas pessoas seria diversa."

A que é que isto se referia? Às "grandoladas" com que eram recebidas em público as aparições de Miguel Relvas, um ministro do "infamous" governo de Passos Coelho contra o qual a esquerda particularmente se assanhava. O ciclo político já mudou, há muito, mas eu continuo a pensar exatamente o mesmo que então pensava. E a dizê-lo, arrostando, com gosto, com a impopularidade do post. 

segunda-feira, fevereiro 20, 2023

Para ajudar...

 ... quem anda pelos Alentejos: ler aqui.


Assim, não vamos lá!


A propósito do que ontem aqui referi, sobre uma minha ida a Tróia, um amigo atento lembrava-me, há pouco, o verdadeiro escândalo nacional que é o facto da Ponte Bocage, que liga Setúbal àquela península, estar, desde há vários anos, fora de serviço, por problemas ditos insuperáveis ocorridos no seu tabuleiro.

"Deve ser o negócio dos ferries ou as doçarias de Alcácer, onde se vendem os famosos salacianos, que fazem lóbi contra a ponte", avançou aquele amigo, muito dado a teses conspirativas. Ele é tão cético que também não acredita na data do 1º de abril, anunciada para a reabertura daquela via de acesso.

Obra maior do engº Edgar Cardoso, o empreendimento foi inaugurado pelo brigadeiro Vasco Gonçalves, no mesmo dia de 1975 em que o antigo chefe do governo se deslocou à outra banda e, em Almada, disse do "Expresso", num discurso para a história, o que nem José António Saraiva se lembrou alguma vez de dizer sobre a estimável folha do dr. Balsemão.

Deixo a fotografia do belo e até agora inútil empreendimento.

Assim não vamos lá! A Tróia. Nem no Carnaval! Nem a brincar!

Kiev, hoje

1. Biden em Kiev: ora aí está algo que vai condicionar o discurso de Putin no dia 21.

2. Há qualquer coisa em Biden que faz recordar Bush pai: alguém que foi um vice-presidente discreto de um presidente popular, com uma considerável experiência na área externa.

3. Não fosse uma guerra sempre uma tragédia, poderíamos dizer que, com este conflito na Ucrânia, estávamos a ter um interessantíssimo objeto de estudo e aprendizagem em matéria de relações internacionais. O último foi há mais de 20 anos, com o 11 de setembro.

domingo, fevereiro 19, 2023

Outras bandas

 

O IPMA tinha-nos vigarizado a todos. 20° era a temperatura prevista. Com algum sol. Convictos de que vinha aí um domingo a preceito, trajados "light", rumámos de ferry, para almoçar em Soltróia. Em casa de amigos, que é onde melhor se come. E comeu. E bebeu. Mas sem réstia de sol. E com vento. E algum frio. Lá fora, claro.

Soltróia - Tróia com sol, deve ser o significado - é um bairro construído à beira-mar. Não ouso transcrever aqui o poema de Bocage "Em Tróia, de Setúbal bairro inculto...", porque este é um espaço de famílias e o Google suspender-me-ia, pela certa.

Passo em Soltróia duas ou três semanas em cada Verão. O que mais me agrada ali é o facto de ser quase um deserto de comércio e, em especial, de restaurantes, sem o mínimo de social publicável, sem notáveis notados. Só o mini-mercado do Ursino, o café do Pereira e o errático Beach Club, além da rulote das farturas e, na praia, as bolas de Berlim do João. 

E é tudo mais do que suficiente, porque é exatamente a escassez de comércio a chave do imenso sossego do lugar. Na "off-season", até essas coisas desaparecem, atirando quem lhes estranhe a falta para a alegria saloia da marina de Tróia ou para a finura das lojas da Comporta, aqui nas mãos da caixa registadora do Gomes, ou para os infernais mosquitos da Carrasqueira, onde me dizem que o Rola deixou de cantar.

Era assim que tudo estava hoje, lá em Soltróia. Com sol, claro, teria bastante mais graça. Mesmo assim, com lareira, foi um pretexto para um refúgio nas vitualhas, nuns álcoois a preceito e numa bela conversa de bons amigos. É o que se leva desta vida, essa é que é essa!

sábado, fevereiro 18, 2023

Tico Tico


Um prego na barra do Gambrinus rimaria bem, em regra, com uma saída da 6a de Mahler, na Gulbenkian. E uma ida ao Tico Tico costuma ser um complemento adequado ao final de uma noite de futebol que nos correu bem. Mas eu sou do contra, já não vou muito em futebóis e hoje, no fim da música, deu-me para ir jantar à histórica marisqueira do alto da Avenida da Igreja. E não me arrependi. O ambiente continua igual ao que sempre foi: animado, solto, barulhento, sem cerimónias. O serviço é rápido, com empregados antigos, diligentes e corteses q.b.. A lista é, basicamente, a de sempre, com a lampreia na "saison". O preço é bastante em conta, em especial atenta a especulação que por aí grassa. A relação satisfação/preço foi boa. Já tinha saudades do Tico Tico. Vou regressar em breve.

Avante, camarada Costa!

Pode ser que esta acusação de "comunista" a António Costa acabe por garantir ao PS algum eleitorado que o fim da Geringonça tinha tresmalhado.

Pensem!

"Wishful thinking", em português simples, significa tomar os desejos próprios pela realidade. É o que se vê mais por aí, a propósito da guerra da Ucrânia. As pessoas deviam usar menos qualificativos insultuosos sobre os contendores e os seus apoiantes e um pouco mais a sua cabeça.

A herança de Marcelo

Vê-se nas reações públicas de Marcelo Rebelo de Sousa uma exasperação perante o estado em que está o PSD. Ao contrário do Cavaco, que deixou em "herança" à direita a Geringonça, Marcelo gostaria de ver um PSD social-democrata no poder, consagrando a alternância. O que irá ter?

Passos perdidos

Quando digo a amigos de direita que Passos Coelho podia ser a sua melhor escolha para Belém, quase sempre me respondem que, em grande parte do eleitorado, a imagem do governo que esteve "coligado" com a Troika seria muito difícil de ultrapassar. Se é verdade, ainda bem.

E os princípios, senhores?

O que impressiona, no taticismo da direita tradicional portuguesa, quanto ao modo como aborda a questão migratória, é que a abordagem é feita exclusivamente em torno da potencial captação de votantes, nunca na afirmação de valores morais e de cidadania, como se estes fossem instrumentais.

Pergunta

Tenho bastante simpatia pelo novo pacote para a habitação e acho que, ao lançá-lo, o governo mostrou iniciativa e coragem política. Há, contudo, algo que me intriga: não teria sido possível esclarecer antes, sem a menor sombra de dúvida, a constitucionalidade de todas as medidas?

A luz de João Salgueiro



João Salgueiro, que ontem morreu aos 88 anos, morava quase em frente a mim. Desde sempre, em todas as noites do ano, duas da janelas da sua casa permaneciam com a luz acesa. Tive sempre curiosidade de saber porquê, mas nunca lhe perguntei.

Salgueiro foi um brilhante jovem membro do governo de Marcelo Caetano. Fundador da Sedes, viria a ser, depois do 25 de Abril, uma importante figura dentro do PPD/PSD, a cuja liderança chegou a ser candidato. Mas ganhou Cavaco Silva. Ocupou o cargo de ministro das Finanças, de presidente do Banco de Fomento Nacional e da Caixa Geral de Depósitos, tendo sido igualmente professor universitário.

Conheci Salgueiro em 1979, na Noruega. Uma década depois, ao tempo em que era presidente do Banco de Fomento Nacional, desafiou-me para uma "aventura" na área bancária que decidi não aceitar, trocando-a pela ida para a embaixada em Londres. Em 2012, ambos integrámos a comissão que preparou o anterior Conceito Estratégico de Defesa Nacional. A partir do ano seguinte, voltámos a cruzar-nos, com regularidade, numa tertúlia "discussante", bastante matutina, que Miguel Lobo Antunes reunia na Culturgest, da qual resultaram debates públicos e que produziu documentos coletivos que foram publicados na imprensa. Quando Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa mostraram interesse em conhecer os trabalhos desse grupo, foi João Salgueiro o nosso eloquente porta-voz, nas reuniões que tivemos em Belém e S. Bento.

João Salgueiro era um homem frontal, sem receio de dizer o que pensava - e pensava muito bem. Tinha uma leitura clara, às vezes bastante cética, sobre as coisas da pátria, cujos destinos levava muito a sério. Extraordinariamente inteligente e sempre atualizado sobre a vida económica, portuguesa e internacional, era um profundo conhecedor da área bancária, tendo sido presidente da Associação Portuguesa de Bancos. Sobre o projeto europeu, assunto que muito o interessava, alimentava algumas justificáveis, e creio que crescentes, reticências. E não o escondia. Por algumas vezes, em torno do tema, convidou-me a colaborar nas aulas de Economia que dava a alunos estrangeiros, na Universidade Nova de Lisboa.

A nossa tertúlia, como acontece com tudo, acabou um dia. Aos poucos, fui também deixando de encontrar João Salgueiro pela nossa rua comum, como sucedeu por vários anos. Há momentos, olhei para a casa. A luz já está apagada.

sexta-feira, fevereiro 17, 2023

Como?

Ouvir Mariana Mortágua dizer que "há Estado a mais", no que quer que seja, leva-me a pensar que chegou a hora de ir, finalmente, à Sonotone.

Lateralização

A reação às medidas do governo para a habitação, sem entrar na análise do respetivo mérito de eficácia, são um magnífico e oportuno barómetro para se perceber de que lado cada um está.

Munique

A Conferência de Segurança de Munique foi, durante anos, um espaço muito interessante de encontro de perspetivas diferenciadas de segurança e defesa. Agora, corre o risco de tornar-se num ameno convívio de “like-minded”. É pena!

quinta-feira, fevereiro 16, 2023

“A Arte da Guerra”


A América de Biden, a guerra na Ucrânia e as relações externas da China, bem como o destino da nova “rota da seda”, foram os temas do “A Arte da Guerra”, o podcast sobre temas internacionais do “Jornal Económico”, numa conversa com o jornalista António Freitas de Sousa. Pode ver aqui .

Lojas perdidas


Dei uma volta por uma rua de bairro, em Lisboa. E fui à procura de uma bela loja que por ali conhecia. Já não a encontrei. Lamentei a perda com um amigo. Respondeu: “Quando foi a última vez que compraste lá alguma coisa? As lojas não se mantêm sem terem clientes”. Embrulhei.

quarta-feira, fevereiro 15, 2023

Na “Visão”, amanhã

 


Ucrânia

 



O fim da Cultura e o meu Aurelião


Fico sempre triste quando sei do fim de uma livraria. Leio agora que a rede de livrarias Cultura, no Brasil, entrou em falência. 

Muitas e belas horas passei em algumas dessas lojas, bastando-me olhar para qualquer estante em minha casa para logo descortinar resultados dessas peregrinações.

A mais bela das Livraria Cultura era em S. Paulo, na Avenida Paulista (na imagem), espaço que eu já conhecia como os dedos das minhas mãos, sabendo onde encontrar tudo aquilo que me interessava. 

Em Brasília, onde vivia, não obstante a Cultura ser num shopping um pouco distante de minha casa, em muitos fins de semana me passeei de lá, saindo ajoujado de sacos com coisas que li e com outras que apenas tive o imenso gosto de comprar - porque, aprendi, só há uma coisa melhor do que ler um livro: comprá-lo!

Um dia, ocorreu um episódio curioso. Como sou um maníaco de dicionários, ainda antes de ir viver para o Brasil tinha a intenção de vir adquirir dois dicionários brasileiros clássicos: o Aurélio e o Houaiss. 

Numa das minhas visitas à Cultura, em Brasília, encantei-me por uma recente edição do Aurélio, o monumental trabalho de Aurélio Buarque de Holanda (a relação familiar com o Chico do mesmo nome não é próxima), num só volume, vulgarmente conhecido pelo “Aurelião”. Curiosamente, nem era muito caro nem muito pesado, dado ser em papel bíblia, não obstante as suas 2020 páginas.

Na mesma noite, depois do jantar, perdi uma boa meia hora na curiosa busca da definição brasileira para certos vocábulos bem portugueses, saltitando por aquele imenso volume. 

A certa altura, tive uma surpresa: uma palavra bastante banal faltava no dicionário! C’os diabos! Não era possível! Foi então que dei conta de que não figuravam, nesse ponto do volume, várias páginas - outras faltariam num local correspondente, na outra parte de um caderno que, por lapso, tivera essa falha.

No dia seguinte, logo de manhã, pedi ao meu motorista, ao Daniel, que, com o recibo da compra na mão, fosse à Cultura apresentar o problema e pedir a troca do livro. 

Ao final do dia, ao trazer-me de volta a casa, ele contou-me a reação do empregado da Cultura que o atendeu: “Esse seu patrão deve ser muito estranho! Veio aqui ontem, comprou um livro de mais de duas mil páginas e você vem, na manhã seguinte, dizer que faltam algumas folhas. Como é que ele deu conta disso? O homem passou toda a noite a contá-las?”

Catarina Martins

 

Quantas vezes o Bloco me irritou! Quantas vezes clamei que, no fundo, ele acabava a fazer o jogo da direita. Em 2011, ao vê-lo mão na mão com essa direita, disse do Bloco cobras e lagartos. Em 2015, quando aderiram à ideia da Geringonça, moderei essa minha irritação. Ela regressaria em 2021, quando o Bloco fez uma birra orçamental, que fez correr um risco desnecessário à esquerda. Mas voltei a moderá-la quando esse percalço político ofereceu ao PS, de bandeja, uma maioria absoluta.

Em todo esse percurso do Bloco esteve Catarina Martins. Uma mulher determinada, que sempre me pareceu sincera e empenhada nas soluções que propunha, estivessem elas certas ou erradas. 

Catarina Martins entendeu agora encerrar o seu ciclo de liderança, primeiro num dueto que deu ares de harmónico com João Semedo, depois a solo. Desejo-lhe as maiores felicidades pessoais.

terça-feira, fevereiro 14, 2023

O romantismo já não é o que era!


Eu e um amigo decidimos levar as nossas mulheres a jantar fora, hoje, no dia dos namorados. Como tenho, em geral, esse pelouro, foi-me solicitado que escolhesse e reservasse o restaurante. E assim fiz! Porém, quando anunciei que iríamos jantar ao Orelhas, em Queijas, fiquei com a sensação de que a minha seleção pode ter pecado por algum défice de romantismo. Também acham? Paciência! De uma coisa tenho a certeza: vamos comer muito bem!

Há alheiras na Marinha!

 


Olhó marciano!


Os maluquinhos dos ovnis estão entusiasmados com os objetos que os americanos andam a abater pelos céus. A sua fezada em como os extra-terrestres andam por aí teve um alento nos últimos dias. Se, no final, nada vier a lume, é porque, uma vez mais, “eles” querem esconder tudo…

segunda-feira, fevereiro 13, 2023

Clickbaitismo

A nossa imprensa é isto. “EUA dizem aos americanos para abandonarem a Rússia imediatamente”. Guerra nuclear? Nada disso: a Rússia pode vir a recrutar para as forças armadas cidadãos com dupla nacionalidade. Desde setembro que se sabe isso. Mas o que interessa é o “clickbait”.

Iliteracia

É admirável o raciocínio de quantos, perante um anúncio de crescimento do PIB, dizem que não sentem isso no bolso. E os que, em face da queda da taxa de desemprego, dizem que têm um primo sem trabalho. A literacia económica não rima com a sociologia de café.

Falar claro

Como ateu, gostava de deixar claro, neste momento menos simpático para os católicos portugueses, que continuarei a considerar que o património cívico e moral da igreja católica, na história da sociedade portuguesa, é bem superior a esta mancha, que é, aliás, um segredo de Polichinelo.

Manuel Rocha


Leio que morreu Manuel Rocha. Era uma figura de quem guardo uma memória muito agradável, com a qual me cruzei na vida algumas vezes, em contactos pessoais ou em troca de mensagens. Foi um excelente profissional da informação, a quem a televisão pública, nomeadamente a RTP Porto, deve bastante. Um abraço amigo de pesar à Fátima Campos Ferreira.

Áfricas



Havia um divulgador de História, injustamente acusado de ser historiador, na fórmula de Baptista-Bastos para alguns ditos jornalistas, que, na televisão, mostrava os locais de relevantes eventos pretéritos, dizendo, com frequência: “Foi aqui!” 

Ontem, numa sala de uma unidade hoteleira, algures no país, tive a mesma reação, embora pensada apenas para mim próprio: “Foi aqui!”

Já passaram muitos anos desde esse dia. Estávamos num almoço com uma delegação estrangeira, chefiada pelo primeiro-ministro desse país, oferecida pelo seu homólogo português. Notei que a cara de um colega e amigo, sentado quase à minha frente na longa mesa, não era das mais felizes. 

Ele estava colocado num determinado país africano e nosso ministro dos Negócios Estrangeiros, também ali presente, tinha-o informado, horas antes, que o seu próximo destino seria... um outro país africano. Curiosamente, um país onde, anos atrás, ele já estivera colocado.

Ter já passado, em duas vezes, um total de oito anos em África, com a perspetiva de um período de mais quatro anos numa capital africana onde já servira, era uma ideia que não agradava, compreensivelmente, àquele meu colega. 

Não obstante o interesse profissional dos postos, a vida em África acarreta quase sempre problemas específicos, pessoais e familiares, pelo que, muito legitimamente, ele ansiaria ter um outro destino geográfico. O ministro, contudo, por qualquer razão conjuntural que já não recordo, fora muito insistente e não lhe dera qualquer alternativa.

A conversa ao almoço derivou, a certa altura, para a Revolução do 25 de Abril. Pedagógico, o chefe do governo português explicou ao seu convidado as motivações subjacentes à revolta contra Marcello Caetano. Dentre essas razões, elencou os problemas de carreira e as pulsões democráticas que atravessavam a tropa, para concluir: "Além do mais, os oficiais portugueses estavam cansados de fazer várias comissões de serviço em África".

Foi então que se ouviu, num sonoro aparte em português, a voz do meu colega: "Como eu os compreendo!". 

Dei uma gargalhada de solidariedade, cujo significado poucos entenderam. Talvez o nosso ministro. Do outro lado da mesa, o António sorriu.

domingo, fevereiro 12, 2023

Hesitação

Estou hesitante sobre se devo comentar, na CNN, o abate, pelos americanos, dos objetos voadores que por lá andam. É que, se aquilo for do foro extraterrestre, isso excede a “job description” da minha colaboração. E não vai ser fácil encontrar alguém para a tarefa…

A febre


O meu avô paterno nasceu na Seara, uma aldeia da margem esquerda do rio Lima. Era filho único de pais com escassas posses, pelo que só conseguiu ser educado graças à ajuda de um filantropo de Ponte de Lima, que lhe pagou os estudos e o ajudou a encaminhar a vida.

Com a minha avô, com quem entretanto casou em Ponte de Lima, viria a ter seis filhos. Um dia, os meus avós decidiram ir viver para Viana do Castelo. Ainda existe a miniatura do barco no qual, em 1912, foi feita a mudança, entre Ponte de Lima e Viana, ao longo do Lima. Após ter ficado viúva, a minha bisavó foi viver com o filho e família deste. Por pouco tempo. Morreria em breve.

Ao que consta na memória familiar, a senhora era uma inenarrável chata. Faladora incessante, cansava quem com ela convivia. Desde logo os netos, que, com alguma dificuldade, se adaptavam à intensidade da presença da recém-chegada e até então pouco frequentada avó. O filho reconhecia essa peculiaridade da mãe, mas ai de quem ousasse qualificar negativamente a sua progenitora.

O meu avô, em certa ocasião, travou conhecimento com um cavalheiro, oriundo de uma aldeia próxima de Viana, no qual descortinou, precisamente, o mesmo tropismo comportamental da sua mãe: nunca se calava. Numa leve perfídia, terá tido então a ideia de provocar um encontro entre os dois.

Um dia, convidou o homem lá para casa, para um chá ou coisa assim, colocou-o numa sala com a minha bisavó e, a certo momento, saiu discretamente de cena, deixando os dois sozinhos.

A conversa terá sido relativamente longa. De fora da sala, ouvia-se um forte movimento de vozes, na interação entre os dois. Havia a curiosidade de saber como estava a decorrer aquela empenhada interlocução, mas o meu avô optou por não interromper o insólito episódio que tinha provocado.

Tudo tem um fim. A certa altura, a porta abriu-se e, desaustinada, saiu a minha bisavó, clamando: “Irra! Que homem tão aborrecido! Nunca mais se calava! Já não o podia aturar!”

Esse relato divertido, que atravessou décadas na boca do meu pai e de um dos meus tios, dava ainda conta de que a senhora teria saído com uma ligeira ponta de febre, como resultante física desse despique oral, do qual, conceda-se, o cavalheiro visitante terá saído amplamente vencedor. 

Desde miúdo, lembro-me de ouvir o meu pai dizer, qualificando alguém que falava muito: “Até faz febre!”

sábado, fevereiro 11, 2023

Na cesta…


Há um mito rural, na minha família materna, segundo o qual uma das minhas bisavós era bastante rica. 

É rural porque a senhora, depois de uma existência em Lisboa, onde fez amizades que lhe frequentavam umas festas famosas que organizava no “chalet” do parque das Pedras Salgadas, acabou placidamente os dias na Casa do Pereiro, em Bornes de Aguiar, numa rusticidade cómoda e simples, mas sempre com uma bela vida alimentada por cabedais de propriedades várias.

É também um evidente mito porque, pelo menos a este seu bisneto, nunca chegaram sólidas provas, com relevância contabilística para os fins que contam, desses tais supostos teres e haveres, que, imagino eu, se devem ter esvaído pela caterva de filhos, de dois casamentos, que terão herdado o mesmo jeito para o negócio que este seu descendente até hoje (não) tem. Um desses filhos, reza a lenda, perdeu ao jogo, numa noite, no casino das Pedras, uma bela quinta à volta da qual a aldeia de Bornes de Aguiar ainda hoje se espalha.

Fosse a senhora rica ou não, e para o que aqui hoje me interessa, ficou na memória familiar que tinha uma língua afiada e franca, uma graça viva e muitas vezes mordaz.

A historieta que vou contar ouvi-a repetida, por anos, à minha mãe e aos meus tios, nas conversas em noites de família. Por esse tempo, esses e tantos outros episódios interessavam-me pouco. Eram conversas de velhos, que não me diziam quase nada. Até um dia, até ao momento em que eu próprio passei a assumir, embora involuntariamente, esse mesmo estatuto etário. E foi então que me dei conta de que, para satisfazer uma cada vez maior curiosidade sobre um passado de que afinal eu era já um residual depositário, já não tinha ninguém a quem recorrer.

Um dia, vindo de Oura, dos lados do Vidago (quem é dali diz “do Vidago”, quem é de fora diz “de Vidago”), chegou a Bornes, para uma visita, um primo da senhora minha bisavó. Vinha a cavalo, porque era assim que, nesse século XIX, essas coisas se faziam.

À sua chegada à Casa do Pereiro, já depois da hora do almoço, constatou-se ser ele portador de uma gentil cesta de oferendas - com queijos, enchidos e algum estimável apoio alcoólico. 

Posta a conversa em dia, durante algumas horas, e porque entretanto a tarde se fazia tarde, a minha bisavó montou uma mesa para um lanche familiar, com coisas que por lá tinha. A elas juntou, com naturalidade, para a degustação desse momento, e quanto mais não fosse para lhes honrar a qualidade e a simpatia do gesto, os produtos que o parente lhe tinha aportado.

O que se seguiu, conta a nossa memória familiar, foi um pouco inusitado. O parente nem terá atentado no que a dona da casa lhe oferecia e, quiçá enlevado pelo gosto seguro daquilo que horas antes ofertara, avançou por essas vitualhas adentro, alambazou-se com elas de forma lampeira, quase as esgotando, num manifesto acesso de fome, quiçá potenciado pelo esforço físico da viagem. Os da casa, com a minha bisavó no farol da observação da cena, acharam bizarro esse tropismo para o auto-consumo, mas, com cerimonial elegância, engoliram o riso.

Ao final da tarde, quando o cavalo do primo trotava já pelo Fundo de Vila, de regresso às retas de Sabroso, que iam anteceder as curvas do Reigaz, a minha bisavó crismou, para sempre, uma frase que faz parte da memória risonha dos Seixas, para caraterizar o comportamento do seu lambareiro primo: “Na cesta o trouxe, na barriga o leva”…

sexta-feira, fevereiro 10, 2023

“A Arte da Guerra”


Esta semana, a “Arte da Guerra”, o podcast do “Jornal Económico” sobre política internacional, uma conversa com o jornalista António Freitas de Sousa, abordou o estado do conflito na Ucrânia e as suas perspetivas, a política brasileira e a complexidade das relações entre a Espanha e Marrocos, com os quase 60 anos da Frente Polisário pelo meio.

Pode ver aqui.

Foro La Toja


Tive muito gosto em moderar, na passada quinta-feira, na Fundação Calouste Gulbenkian, um debate sob o tema “Uma nova Ibero-América e uma nova relação transatlântica”, organizado pelo Foro La Toja - Vínculo Atlântico, uma estrutura não-governamental espanhola, já existente há vários anos, presidida pelo antigo ministro dos Negócios Estrangeiros espanhol, Josep Piqué, que agora alarga a sua atividade a Portugal, com apoio do Grupo Hotusa.

Para esta conversa, a organização convidou o antigo primeiro-ministro espanhol, Mariano Rajoy, o antigo vice-primeiro português, Paulo Portas, o antigo primeiro-ministro peruano, Pedro Cateriano, e o antigo presidente do Brasil, Michel Temer, que interveio por videoconferência.

Encaminhei o debate, que se prolongou por mais de uma hora, com base em três tópicos que lancei aos convidados : (1) perspetivas dos projetos de integração no atual contexto político latino-americano, (2) identidades e dissonâncias geopolíticas entre a UE e os países latino-americanos, em face da nova polarização à escala global, (3) futuro da relação económica entre a UE e a América Latina, num mundo em potencial “desglobalização” e crescimento do protecionismo.

Acho que a audiência apreciou este painel, que complementou outros que tiveram lugar na mesma manhã.

Peço de empréstimo esta fotografia que o António Nogueira Leite fez do seu lugar e publicou no Twitter.

O sol e a saudade

O sol brilhava para todos eles, para os manifestantes que ontem encheram ruas, criando, no espírito de muitos, saudades da geringonça, tempo em que, recordo, nada daquilo se passava.

quinta-feira, fevereiro 09, 2023

“Primeiro de Maio”


Quando, há mais de meio século, trabalhei por uns anos na Caixa Geral de Depósitos, a “Antiga Casa Primeiro de Maio”, ao lado, na descida da rua da Atalaia para o Calhariz, era uma “tasca de almoço” (classificação íntima) que, contudo, não era pouso regular do meus assimétricos grupos de amigos e conhecidos. 

Porquê? Porque, à época, tinha um preço ligeiramente mais alto do que outros locais similares e, nesse tempo, entre os meus colegas, havia quem tivesse de fazer bastantes contas à vida. Por isso, eu só raramente passava por lá, tal como pela vizinha “Primavera do Jerónimo”, que a fotografia assinada da Josephine Baker, no caixilho na parede, elevava a lugar de culto, com o toque turístico a refletir-se no preço dos históricos filetes de pescada. 

Esse era o tempo de um outro Bairro Alto, ainda sem “Frágil” nem “Pap’Açôrda”, onde não tinham despontado o “Casanostra” ou o “Bota Alta”, em que, para a noite, o “Alfaia” já estava na moda e à medida dos nossos bolsos, tal como, um pouco mais tarde, aconteceria com o “Baralto”, o “Fidalgo” e a “Tasca do Manel”. A “Baiuca” e o “El Ultimo Tango” ainda estavam para nascer. Do que por lá vai agora, nem sombras.

Mudei entretanto de ofício e de geografias de trabalho. A partir dos anos 80, quando vivia ou visitava Lisboa, era regular visitante do “Primeiro de Maio”. Aos sábados, era a minha cantina de almoço, sempre com a cinematográfica figura de António Lopes Ribeiro, já bem entrado na idade, a dominar uma das mesas. O “Primeiro de Maio” foi muito “trendy” por bastantes anos, com figuras e figurões bem conhecidos, da política à cultura, por ali amesados.

A cara tutelar do “Primeiro de Maio” era então o senhor Santos, com a sua mulher na cozinha. O seu sorriso acolhedor recebia-nos mal surgíamos no alto dos degraus de entrada. Nesse tempo em que reservar era a exceção, a regra, para nós, era aparecer uma mesa quase por milagre, com intimidade garantida com inesperadas vizinhanças, entre as quais cheguei mesmo a criar amizades. Belos tempos esses!

Entre as mesas do “Primeiro de Maio”, a certo momento, passou andar o Mário, sobrinho do senhor Santos, um miúdo que ajudava ao serviço. Desde que o tio se reformou, passou ele a ser a minha âncora numa casa onde, contudo, ultimamente não tenho ido muito. Fui hoje, com uma tertúlia aperiódica de cavalheiros que andam pela vida como os ingleses conduzem pelas estradas, um grupo que não tem pouso fixo, que erra (às vezes acerta) por vários endereços.

O Mário lá continua, à frente da casa, sempre simpático, herança boa do tio, que vive a merecida reforma na Beira. Os turistas que, aqui há uns anos, tornavam o espaço numa babel às vezes excessiva, desapareceram, desde há uns tempos, para as centenas de outras paragens que vão abrindo e fechando por essa Lisboa. O que havia de gente a mais, num certo período, parece haver a menos, nos dias que correm. E é pena.

Um conselho para antropólogos amadores com bom gosto, curiosos de uma certa Lisboa do passado que ainda por aí subsiste: passem pelo “Primeiro de Maio”, almocem ou jantem num local que terá sempre uma linha bem estimável na história da restauração de Lisboa. Vão lá sem a menor nostalgia, apenas porque sim. Ah! Podem dizer que vão da minha parte (não tenho comissão, garanto!) e peçam sugestões ao Mário. E aproveitem para descobrir os belos vinhos que sempre houve por lá.

Onde é? É na rua da Atalaia, 8, com o telefone 213 426 840.

“Links”

Desde a criação deste blogue que peço que evitem colocar “links” para outros textos. Escrevam comentários próprios, mas não transformem isto num “cabide”, por favor. 

O que correu mal?


Há cerca de um ano, no início das hostilidades na Ucrânia, a revista Visão pediu-me um artigo sobre a conjuntura. À época, não o reproduzi
 aqui, porque, naturalmente, ele só estava acessível a quem adquirisse a revista. Publico-o agora, para testar se o texto resistiu ao tempo.

O que correu mal?

Passaram já 30 anos. A nacionalidade dele era inglesa. A sua ascendência, pelo nome, era de muito longe dali, de um país báltico. Estávamos em Londres, na “Chatham House”, o instituto britânico de relações internacionais, num intervalo para café, durante um seminário onde se discutia algo que tinha a ver com o fim da União Soviética, que tinha ocorrido poucos meses antes. Era o primeiro semestre de 1992. 

“Eles não vão esquecer. E vão voltar, mais violentos do que antes. Nós conhecemo-los bem”. O meu interlocutor não tinha ilusões quanto aos russos. “Moscovo”, para ele, era o poder que tinha esmagado a sua nacionalidade originária. Uma coisa tinha ele por certo: a nova Rússia nunca seria democrática, por muito que tentasse fazer passar-se por isso. E olharia sempre para a sua periferia com um misto de arrogância, de desconfiança e desejo de fazer voltar as coisas atrás. 

Quatro anos depois, em Varsóvia, fui visitar o chefe da diplomacia polaca, Bronislaw Geremek. Um curto encontro de cortesia transformou-se, de um momento para o outro, numa longa lição de História, quando estimulei a sua opinião sobre a evolução da nova Rússia. 

A Polónia, por essa altura, ainda não fazia parte da NATO e da União Europeia. A fé de Geremek na capacidade de regeneração democrática do regime russo era basicamente idêntica à do meu anterior interlocutor de Londres. “Historicamente, a liberdade não mobiliza os russos. A alma da Rússia é a autoridade”. 

Por estes dias, lembrei-me de uma outra frase que o MNE polaco então me disse: “O futuro da Ucrânia é a grande preocupação da politica externa da Polónia”. Na altura, achei aquilo algo excessivo. Olhando o mapa e o correr dos tempos, percebi. O papel axial que Varsóvia tem vindo a desempenhar na tentativa de ancoragem da Ucrânia ao mundo ocidental está na linha dessa preocupação.

Ao longo da vida, tive a sorte de conseguir falar, sem a capa das conversas oficiais, com gente de quase todos os países que foram gerados pela implosão da União Soviética, bem como de quantos dela havia sido parceiros no mundo do “socialismo real”.

A atitude face à Rússia de todas essas pessoas não foi a mesma, mas tinha quase sempre um ponto comum: a ideia de que lhes era essencial reforçar as respetivas nacionalidades, como forma de evitar que uma pulsão centrípeta de Moscovo pudesse fazer voltar atrás o relógio da História. Naqueles que partilhavam a nossa geografia continental, vi uma vontade, praticamente unânime, de integrar as instituições europeias e euro-atlânticas, como escudo para o futuro.

Muitas vezes, confesso, impressionou-me a imediata acrimónia que alguns exalavam quando o nome da Rússia vinha à baila, dando comigo a reagir intimamente ao que interpretava com um exagero nacionalista. Com o tempo, contudo, fui dando por adquirido que é praticamente impossível colocarmo-nos no lugar de quantos passaram por experiências históricas de grande dimensão traumática.

Nas poucas ocasiões em que estive na Rússia, em conversas fora dos circuitos oficiais que consegui ter, ou com russos que fui cruzando pelo mundo, mantive sempre uma imensa curiosidade em tentar perceber como viviam os seus novos tempos. Anotei o quase embaraço como, às vezes com grande humildade e até algum esforçado humor, me relatavam as desventuras da sociedade russa contemporânea, quase sempre sem apostarem uma grande esperança num melhor futuro. Raramente lhes consegui arrancar elogios a Gorbachev, sentia-os hesitantes a valorizarem Yeltsin, notei-os sempre divididos quanto a Putin. Mas todos reconheciam que era neste último líder que muitos dos seus compatriotas depositavam alguma esperança. E que daí vinha muito da força de Putin.

O fim da distensão

Passaram já 20 anos. Quando, em 2002, fui para Viena dirigir a então presidência portuguesa da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) sabia que a Rússia constituía, com os Estados Unidos, o “duopólio” que determinava o andamento da organização. 

Vinha de Nova Iorque, de uma cidade marcada pelo recente “11 de setembro”, tragédia que, por algum tempo, tinha feito abater bandeiras no seio da ONU, onde eu era embaixador. Portugal fazia ali parte da “troika” de observadores do processo de paz em Angola, precisamente com os EUA e a Rússia. O último almoço a três que tinha organizado em minha casa correra num ambiente simpático. O convidado russo chamava-se Sergei Lavrov.

O ambiente que fui encontrar em Viena tinha uma tensão bem maior, polarizada nos representantes dessas mesmas duas potências. 

Como tínhamos chegado até ali? O que é que tinha corrido mal?

Nos anos 70, entre o mundo ocidental e a União Soviética, dois poderes que, por décadas, tinham mantido entre si uma forte rivalidade militar no quadro da Guerra Fria, de paralelo com um esforço de proselitismo dos seus projetos à escala global, havia começado a desenhar-se o terreno de algum diálogo. 

Em 1975, como saldo desse esforço diplomático de aproximação, foi assinado o Ato Final de Helsínquia, um texto de compromisso, com medidas geradoras de confiança entre as duas partes, recheado das ambiguidades semânticas com que os diplomatas conseguem ganhar tempo e, às vezes, alguma paz. 

Ironicamente, para nós, portugueses, 1975 seria precisamente o ano em que, na nossa política interna, se viveu um “Leste-Oeste” e, em algumas das nossas antigas colónias, a Guerra Fria continuou acesa.

O declínio da URSS, como potência, foi-se acelerando, desde então. Incapaz de sustentar a rivalidade económica e tecnológica com os EUA, o poder soviético entrou em crise e, em 1991, o país implodiu, dando origem a 15 Estados diferentes.

A ordem liberal parecia ter uma passadeira à sua frente, mas o “fim da História”, prognosticado por quem não percebe que dela nunca nos libertamos, era um falso bom alarme. 

Moscovo tinha passado, entretanto, a capital do país sucessor da URSS, a Rússia. Era um Estado herdeiro daquele outro que fora visivelmente derrotado pelos EUA, numa Guerra Fria onde ambos os lados só tinham combatido através de terceiros, em zonas de confluência dos respetivos poderes. 

O inesperado “flirt” da nova Rússia com o mundo vencedor foi breve e, quase sempre, algo equívoco. Os EUA terão prometido à Rússia que a NATO, depois do Pacto de Varsóvia ter sido dissolvido, se não expandiria para Leste. Não foi isso que veio a acontecer. Porém, a verdade é que a Rússia à qual o ocidente fizera essa promessa também já não era exatamente a mesma. 

A Rússia era agora Vladimir Putin, um homem que terá concluído que tinha mais vantagens em ser temido do que em ser respeitado. O seu poder, quase unipessoal e democraticamente mais do que duvidoso, deu razões à sua vizinhança imediata a Oeste para se manter “de pé atrás”, quanto ao futuro. E esses países procuraram atenuar os seus receios com a obtenção da integração na NATO e na União Europeia. 

Voltemos a Viena, a esse ano de 2002. A OSCE, a que Portugal presidiu durante esse ano, tinha sido o porto de chegada do laborioso processo de distensão entre o Leste e o Oeste. Mas muita água tinha corrido entretanto sob as pontes do Danúbio. Longe se estava já dos dias em que o diálogo fluía, a confiança era ainda possível e tudo parecia encaminhado para um futuro de cooperação. Pelo contrário, as tensões eram cada vez mais fortes.

A Portugal, que era e é conhecido como um eficaz “honest broker”, competia procurar conciliar as leituras da realidade política internacional que ia “de Vancouver a Vladivostok”, como então se dizia. Sabíamos que havia por ali duas culturas de segurança em evidente contraste: um mundo que era chamado de “a Oeste de Viena” que a Rússia acusava de querer, cada vez mais, dar lições de democracia aos países “a Leste de Viena”. Moscovo era o óbvio “protetor“ de quantos eram vistos como infringindo o “template” democrático, dos Balcãs à Ásia Central, passando pelo Cáucaso. 

Nesse ano de 2002, no Porto, em dezembro, todos os então 55 países membros da organização subscreveram os mesmos textos, preparados por nós. Colocar Washington e Moscovo de comum acordo numa perspetiva sobre conflitos e outras situações de instabilidade foi obra! Nunca esse entendimento voltou a ser reeditado na história da OSCE. 

Voltei à OSCE, em duas ocasiões recentes, a última há menos de um ano: o ambiente da relação entre Washington e Moscovo, inquinado pela conjuntura pareceu-me já dificilmente insuperável. A atual situação só confirma isso.

E agora?

No momento em que escrevo, não faça a menor ideia de que forma a situação internacional, decorrente da invasão russa da Ucrânia, evoluirá.

Uma coisa tenho por certa: alguma aquietação da crise atual acabará por fazer-se, com um saldo final, justo ou injusto, em que uns pagarão mais custos do que outros. E também sabemos que daí decorrerão ressentimentos, que irão adubar o futuro, nem sempre num sentido positivo.

A História sempre nos mostrou que, por maiores que tenham sido as tragédias ocorridas entre os Estados, o tempo tende, em geral, a desaguar em tempos de alguma acalmia E que, cedo ou tarde, irão surgir “pontes” entre os adversários de hoje, por necessidade da acomodação mútua.

A alguns, pode parecer chocante, num tempo de mobilização emocional como a que se vive, estar a sublinhar a necessidade da restauração do diálogo diplomático entre o ocidente e a Rússia, com Putin ou com outro líder no Kremlin.

A geografia, contudo, tem determinantes que forçam sempre a realidade. A Rússia, seja ela o que vier a ser, nunca vai deixar de ser vizinha desta Europa. Um lado do continente a que as últimas décadas, somadas aos acontecimentos iniciados em fevereiro de 2022, tornou ainda mais coeso dentro de si, quer na sua aliança militar, quer na interligação económica que as instituições comunitárias potenciaram. 

Quando haverá condições para re-inaugurar uma nova “détente”, envolvendo Moscovo, é impossível de prever. Mas como sempre aconteceu na História, a hora da diplomacia acabará por chegar.

quarta-feira, fevereiro 08, 2023

Nordstream 1 - Verdade 0

Reabriu a questão sobre quem colocou a carga explosiva no Nordstream 2, o segredo mais mal guardado do mundo, sobre o qual só os cegos ainda alimentam dúvidas. Antes do feminismo a proibir, nos mistérios policiais havia uma esclarecedora frase: “Cherchez la femme”.

A “branca”

Na manhã de hoje, no discurso de encerramento de uma conferência na Gulbenkian, o primeiro-ministro António Costa, voltando-se para mim, sentado na primeira fila, citou algo que eu tinha dito, minutos antes. E, ao fazer essa menção, começou a dizer “O embaixador Francisco…” e parou. O “Seixas da Costa” demorou uns segundos a sair. Ora dois ou três segundos, num momento como esse, é uma imensidão de tempo! Logo se lembrou, com um sorriso, pedindo desculpa: “Por um instante, tive uma branca!”. 

Como eu o compreendi!

Há mais de três décadas, em Londres, numa passagem pela capital britânica de Fernando Nogueira, uma das figuras mais marcantes do universo social-democrata, ministro da Defesa e número dois do governo, coube-me acompanhá-lo ao aeroporto, onde havíamos reservado, como era da praxe, uma sala na respetiva área VIP, destinada a passageiros ilustres. Lá chegados, e após termos ultrapassado as barreiras de segurança, sempre invocando o nome da embaixada, dirigimo-nos ao balcão de atendimento.

Com o ministro ao meu lado, informei quem eu era, indicando que estava a acompanhar o ministro português da Defesa. A funcionária inquiriu qual era o nome do ministro. 

Foi nesse instante que tive uma "branca" e o nome de Fernando Nogueira se me varreu por completo da memória. Fosse o cansaço ou a noite mal dormida, a verdade é que o nome não me ocorria. O meu embaraço era total. O ministro já olhava para mim, intrigado, e a funcionária aguardava a minha resposta.

- Desculpe! A reserva da assistência foi feita pela embaixada de Portugal, já lhe disse que se trata do ministro da Defesa, por que diabo precisa também do nome?

A senhora mirava-me, surpreendida com a duvidosa racionalidade da minha reação. E o ministro também:

- Por que lhe não diz o meu nome?

Tentando ganhar tempo, avancei então com uma "criativa" justificação, completamente tonta e até pesporrente:

- Senhor ministro: esta gente tem de perceber que deve funcionar com base na informação que é essencial. Imagine que era um nome chinês! Que interesse é que ela tinha em ouvir uns sons estranhos numa língua ainda mais estranha? Basta-lhes a embaixada e o título da pessoa!

O peso deste meu imaginativo argumentário de ocasião estava a começar a esgotar-se. E, na crescente atrapalhação, fui-me inclinando sobre o balcão, tentando ler, ao contrário, a folha que a funcionária tinha diante de si, com todas as reservas dos compartimentos da zona VIP. Por sorte, consegui descortinar a palavra "Portugal" numa das linhas. O nome e o título do ministro vinham a seguir… Então, com grande "autoridade", estendi o indicador e apontei-lhe a linha:

- Look! It's there!

- Mr. "Nóguêra"?

- That's right!

Ao meu lado, o ministro Fernando Nogueira, um homem cordialíssimo e de sereno sorriso, devia estar intimamente a pensar como é bizarra essa espécie profissional que são os diplomatas. 

Nunca tive oportunidade de lhe revelar este episódio. Quando isso acontecer, acho que vai achar graça.

Engenharias

Já terá sido criado, em alguma universidade, o curso de Engenharia Financeira? Se sim, David Neeleman, que comprou a TAP sem gastar um tostão seu, já devia ter recebido um doutoramento “honoris causa”.

Bebinca

Há já um tempo que não comia bebinca. Imagino que tenha sido por me ouvirem dizer que tinha saudades desse doce goês que tive o privilégio d...