O rapaz levantou-se da cadeira e saiu em direção à porta da Sala Azul das Necessidades, que dava para os claustros. Via-se que ia visivelmente aturdido. Para ele, os últimos cinco minutos daquela prova oral de conhecimentos que acabara de fazer, no concurso de acesso à Carreira Diplomática, tinham sido muito duros.
O professor universitário de Direito que havia sido convidado pelo MNE para integrar o juri, do qual eu fazia parte, tinha colocado ao candidato uma cerrada barragem de perguntas, procurando explorar o que parecia entender como contradições ou escassez de detalhe nos temas em debate. O rapaz, tenso mas muito concentrado, lá se ia defendendo, mas o arguente, quase não o deixando “pousar a bola”, mantinha um ritmo forte de questionamento.
Eu, confesso, estava a achar um pouco demais aquele imparável fogo de barragem. Mas a regra, não escrita, era de que cada um de nós, membros do juri, não se imiscuia durante o período de questões dos outros.
O presidente em exercício do juri, o embaixador Cutileiro Navega, que ali estava em substituição do secretário-geral do MNE, o embaixador Costa Lobo, mantinha uma cara seráfica, que implicitamente traduzia o pleno respeito pelo direito do docente universitário de ir tão longe quanto quisesse, na condução da sua parte do exercício. O outro professor presente, que se encarregava dos temas económicos, Miguel Beleza, olhava, divertido, para a cena.
O rapaz, entretanto, já tinha saído da sala e fechado a porta, atrás de si. A regra era que discutíssemos, de imediato, a nota a atribuir a cada candidato, aproveitando o facto da prova estar “fresca” na nossa memória. Em regra, era o arguente quem propunha a nota, podendo nós opinar de que ela era alta ou baixa demais.
Ainda na ressaca do debate a que acabara de assistir, abri a discussão, dirigindo-me ao professor de Direito: “Desculpe lá, mas acho que foi duro demais com o rapaz! Ele estava destroçado! E, se atentarmos bem, ele até fez um boa prestação! Aguentou-se bem, perante o “bombardeamento” de perguntas que lhe fez. Não está de acordo comigo?”
O docente convidado abriu-se num imenso sorriso e disse: “Mas quem é que disse o contrário? Foi um dos melhores! Apreciei bastante o modo como resistiu às minhas provocações. O rapaz tem estofo! Vai fazer uma bela carreira. Temos de dar-lhe uma nota muito boa”. E lá avançou com um número que, no cômputo final das restantes provas, colocou o candidato bem junto ao topo dos novos “adidos de embaixada” que, semanas depois, entrariam nos quadros das Necessidades.
Ontem, por um mero acaso, à hora de jantar, cruzei-me com o “rapaz”, num restaurante da Carrasqueira, o porto palafítico alentejano, entre a Comporta e Alcácer. Ele é hoje, 27 anos depois da data do seu concurso de acesso, um dos melhores diplomatas portugueses, tendo já exercido funções de grande responsabilidade, como excelente servidor público que se revelou. O docente universitário que o interrogou nesse exame também não teve, a partir de então, uma má carreira. Hoje é presidente da República.