(Vai para 10 anos (3.2.2015), publiquei aqui este texto, sob o título em epígrafe. Nos dias de hoje, imagino que a sua leitura possa chocar muita gente, embora, à época, e curiosamente, não tivesse sido muito controverso. A guerra civil a aludo no início do texto é a que estava a ter lugar entre Kiev e os autonomista russófonos do Donbass. A guerra entre Moscovo e Kiev só surgiu sete anos mais tarde).
" Há uma guerra civil em curso na Ucrânia, que está a agravar-se de forma perigosa. As perdas humanas são já muitas e a barbaridade de certas ações, que não poupam civis, tornam o diálogo e a capacidade de compromisso cada vez mais difíceis, a menos que um dos lados venha a desequilibrar as coisas em seu favor.
Porque não acredito que seja possível unificar toda a Ucrânia (e já dou por adquirido que a secessão da Crimeia é um ponto assente) sob a autoridade de um governo de Kiev que não conceda um estatuto particular às minorias russas ou russófilas, acho desastrosa a aventura - porque é de uma perigosa aventura que se trata - de rearmamento desse mesmo governo, a que o mundo ocidental se tem dedicado, de forma mais ou menos velada. Os "amigos" da Ucrânia que entusiasmaram os revoltosos da praça Maidan a derrubar um presidente eleito democraticamente e a desencadear uma pulsão anti-russa que conduziu ao estado de coisas atual foram irresponsáveis, têm nome: chamam-se NATO e União Europeia. Em lugar de perceberem que a especificidade geopolítica do país impunha um sentido de compromisso, injetaram em Kiev sonhos de adesão àquelas duas instituições e a ilusão de que, pela força, poderiam vir a impor esse "salto" geopolítico, explorando a fragilidade conjuntural de Moscovo. Derrotado pela Rússia na Geórgia, o "Ocidente" quis tirar desforço na Ucrânia. O resultado está à vista, com a Rússia a financiar e municiar os revoltosos, havendo fortes suspeitas de que haja mesma russos a lutar ao seu lado.
A Rússia perdeu a Guerra Fria mas permanece no seu lugar geográfico de sempre. Não perceber isto, à luz de proselitismos de oportunidade, é brincar com o fogo. O poder vigente em Moscovo, não sendo uma ditadura, está já longe de ser democrático. Putin é um quase autocrata que, tal como aconteceu no passado, se alimenta do nacionalismo para se impor internamente. Tem hoje taxas elevadíssimas de popularidade e a crise económica em que o país entrou, por via da quebra do preço do petróleo, cria um sentimento de insegurança na população russa que facilita a sua entrega a um "guia". Porque não há um verdadeiro sistema de "checks and balances" no país, o poder está hoje muito concentrado em Putin. Ora a História já provou que as assimetrias entre o processo de decisão das democracias e dos regimes mais ou menos autoritários provoca facilmente os conflitos, porque tem mecanismos diferenciados de formatação.
Os países ocidentais devem entender, de uma vez por todas, que os russos não vão deixar esmagar os seus "irmãos" do lado de fora da sua fronteira (e que viveram sob a mesma bandeira até há escassas décadas atrás) e que cada dia em que estimulem o governo ucraniano a reprimir as revoltas de Donetsk e Lugansk é um dia a menos para uma possível intervenção militar direta de Moscovo. Nesse dia, o que fará a NATO? Vai para a guerra? Não haverá consenso ocidental para uma operação NATO na Ucrânia, porque não estamos perante uma situação de invocação do artigo 5° do Tratado de Washington (agressão a um Estado membro). Haverá uma "coalition of the willing" dentre os Estados NATO para enviar tropas para a Ucrânia? Se alguns ensandecessem por esta via, aí sim, estaríamos a caminho de um novo conflito global.
Torna-se urgente uma mediação internacional que ponha cobro a esta situação e - tenho pena em constatar isto - duvido que os países da União Europeia tenham hoje um estatuto reconhecido de independência que lhes permita executar esse papel. Esse compromisso poderia passar pelo reconhecimento por Kiev de um estatuto especial das zonas russas da Ucrânia no âmbito do seu país, pelo abandono das pretensões de "independência" ou de integração na Rússia por parte dessas regiões, pelo reforço de garantias de Moscovo do respeito pelas fronteiras ucranianas, por uma substancial ajuda financeira ocidental para fins não militares ao governo de Kiev, ligado a um programa de reconstrução nacional que incluiria as zonas pró-russas (para as quais Moscovo poderia contribuir com ajuda não letal).
Para tal, impunha-se um prévio cessar-fogo na base de um "stand-still" de posições no terreno, fiscalizado por uma operação de separação de forças decidida pelo Conselho de Segurança da ONU. Por muito que me custe ter de admitir, a OSCE, organização a que dei alguns anos de trabalho, parece ter esgotado a sua capacidade de intervenção neste conflito e a Europa terá de aceitar que um instrumento criado para pilotar o fim da Guerra Fria tem poucas condições de operacionalidade quando um novo modelo de tensão Leste-Oeste se consagra paulatinamente.
Alguns dirão que o que acima escrevi não tem qualquer sentido, que assim se abriria a porta a mais um "frozen conflict" na área e que, no fundo, isso representaria uma abdicação de princípios e interesses estratégicos. A esses apenas perguntaria se estarão dispostos a ver os filhos morrer na estrada para Donetsk."
(Passaram quase dez anos sobre este meu texto. No entretanto, houve uma guerra muito mortífera para os dois lados. Não me parece, contudo, que os pressupostos básicos tenham mudado.)
10 comentários:
Proposta de paz:
- A UCRÂNIA DEVE RENUNCIAR AO 1°GOLPE.
[e, como é óbvio, também deve renunciar ao 2°Golpe]
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Parvoíce russa: quando terminou a União Soviética os russos deveriam ter dito aos ucranianos:
- "vocês fizeram-se paladinos defensores soviéticos para abocanhar territórios da Rússia (vulgo 1°golpe)... agora que terminou a União Soviética, vocês devem devolver os territórios abocanhados".
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Ucranianos à procura do 2°golpe: O PLANO 'NOVE EM CADA DEZ':
--->>> nove, em cada dez, dos mais variados analistas ocidentais garantiam: armas da NATO na Ucrânia... juntamente com... sanções económicas à Russia, e... a Russia seria conduzida ao caos: tal seria uma oportunidade de ouro: iria proporcionar um saque de riquezas da Russia muito muito superior ao saque de riquezas que ocorreu no 'caos-Ieltsin' na década de 1990.
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O 2°golpe, no início, seria constituído por 300 mil milhões: leia-se, os 300 mil milhões de activos russos que estão no Ocidente: Zelensky já reivindicou que esses 300 mil milhões deveriam ser entregues à sua equipa de gestão.
[Merkel e Holland vangloriam-se da sua esperteza Sun Tsu: «os acordos de '''paz''' de Minsk1 e Minsk2 serviram para enganar os parvos dos russos»]
Boa noite senhor Embaixador
Salvo melhor opinião, os pressupostos básicos mantêm-se.
Há dias estive a conversar com um bom amigo, ex-vizinho de prédio há mais de três décadas e que o senhor embaixador conhece bem.
A experiência dele (seis anos salvo erro) naquele território, ajudaram-me a perceber ainda melhor as responsabilidades da UE e NATO.
Putin é aquele democrata (!!) que se sabe, não vale a pena gastar palavras.
António R. Cabral
Tenho pena em constatar que os países da União Europeia não tenham a visão política do senhor embaixador. A cegueira ideológica e partidária é cada vez maior e perigosa.
Tudo isto faz lembrar as discussões públicas aquando da guerra do Iraque. Quem dissesse qualquer coisa que não acertasse com a música da orquestra era insultado de tudo. Depois foi o que se viu.
Quanto à Ucrânia, bom, é bom lembrar o que dizia esse grande comunista, Henry Kissinger. Mas é inútil pregar moderação a zelotas. Sobretudo quando são zelotas de oportunidade.
Já agora convém lembrar que a Ucrânia não é propriamente um estado nação, que foram várias as cidades do leste fundadas pelos russos, que houve na zona central umas repúblicas cossacas, que passou por ali uma horda, creio que mongol e matou quanto quis, que as regiões ocidentais da Ucrânia pertenceram ao reino da Polónia, à Áustria-Hungria, depois novamente à Polónia quando esta recuperou a independência e que há por lá minorias não muito contentes, como os húngaros da Transcarpátia. Mas nada disto interessa pois como sabemos a Ucrânia vai reconquistar o leste, limpar os russos dali, vai reconquistar a Crimeia e expulsar a Rússia e fazer da base de Sebastopol uma base NATO e assim Putin vair cair, a Rússia esfrangalhar-se e eu na sexta-feira ganho os 200 milhões do euromilhões.
Porque será que a imprensa de ref ( int incluída )não passa a reacção de DTrump à autorização de JBiden para o uso de misseis ATACAM em território russo ?
Gostava de ler a opinião do Embaixador sobre a omissão.
nem mais!
Vai-se a ver e, afinal, o homem que poderá causar mais destruição, incentivar ódios e desencadear uma terceira guerra mundial é... Biden. Mesmo no fim do mandato, não se coibiu de agravar ainda mais a situação, numa atitude que tem tanto de irresponsável como de insensato, dado que não será presidente daqui a dois meses. Trump, nos seus devaneios muito próprios, nem precisa de quem o defenda, o outro lado encarrega-se todos os dias de dar tiros de caçadeira nos pés. Depois perguntam porque é que o povo americano votou nele.
A demência militarista e a leviandade das nossas televisões é assustadora. Ninguém se lembra de falar em pôr fim ao conflito. Alguns comentadores falam como se fosse um jogo de futebol.
Excelente post, e muito premonitório, este de há nove anos. Felicito o Francisco.
Um belíssimo texto que algumas almas mais distraídas ou menos conhecedoras de pormenores poderiam pensar que se refere ao que se está a passar hoje.
Mas o Anónimo das 22.43 tem razão: é um “jogo de futebol” para muitos.
Quase tudo se transformou num “jogo de futebol”, há que continuar a alimentar o “bicho”, são poucos os que estão dispostos a perder o protagonismo das audiências (tiro o chapéu a quem soube afastar-se na altura certa, you know who, as cabeças que pensam por si correm cada vez mais o risco de serem “cortadas”).
Costumo dizer que a eleição de Donald Trump foi o melhor que podia ter acontecido a muitos, não precisam de puxar muito pela imaginação, têm tema(s) diário(s) garantidos por mais 4 anos (fora as sequelas).
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