sábado, julho 02, 2022

Cufusões


”Eu, nesse dia, estava na CUF e não podia sair”, ouvi um amigo dizer, na sexta-feira, do outro lado da mesa, durante um almoço com várias pessoas. 

Naquele instante, eu tinha-me distraído do episódio que ele relatava, pelo que pensei para comigo: “Esteve doente e não nos disse nada, coitado”. 

Segundos depois, percebi: tinha sido engenheiro na velha CUF, a empresa industrial. 

Uma confusão que é, em si mesma, um sinal dos tempos!

Guerra

O pior da guerra da Ucrânia está para vir. Não ousando recorrer ao nuclear tático, a Rússia vai intensificar ações ofensivas à distância. Alguma imprecisão deste tipo ataques e o óbvio uso de instalações não militares pelos ucranianos redundará em cada vez mais vítimas civis.

sexta-feira, julho 01, 2022

Para dentro ou para fora?

Em 1971, a propósito de J. Edgar Hoover, o presidente Lyndon Johnson proferiu uma célebre frase: “It’s probably better to have him inside the tent pissing out, than outside the tent pissing in”.

António Costa será um seguidor de Johnson?

quinta-feira, junho 30, 2022

Há 10 anos: Elvas Património Mundial


Aprendi que a arte da diplomacia é, muitas vezes, o saber aproveitar as oportunidades. 

A história que me proponho contar tem precisamente 10 anos. Foi no fim de junho de 2012, em São Petersburgo, na reunião anual do Comité do Património Mundial da UNESCO, organização onde eu era, desde janeiro desse ano, o embaixador português, acumulando com o cargo de embaixador em Paris.

Na agenda que o governo português de então me tinha encarregado de defender nessa sessão, que durou vários dias, havia um único ponto: garantir que o Comité acedia ao nosso pedido do envio de uma nova missão a Portugal, para avaliar se as obras da construção da barragem de Foz-Tua estavam conformes com o estatuto de Património Mundial do Alto-Douro Vinhateiro. Uma anterior missão da UNESCO suscitara essa dúvida e fizera recomendações que Portugal se comprometera a seguir. Nessa reunião na Rússia, depois de muito trabalho, ficou aprovada a ida de uma nova missão. 

Mas a minha tarefa em São Peterburgo não ia acabar aí. 

A cidade de Elvas tinha apresentado, tempos antes, um processo de classificação como Património Mundial, que envolvia a cidade e as suas fantásticas muralhas. 

Em Paris, o parecer da UNESCO fora, contudo, muito claro: a questão necessitava de mais algum tempo, havia pontos a corrigir, muito em especial algumas mudanças deveriam ter lugar antes de Elvas ser "elevada" pela organização ao desejado estatuto. 

Em Lisboa, a Comissão Nacional da UNESCO ecoava essas razões: o processo tinha ainda algumas falhas que tornavam muito pouco provável a classificação da cidade; tanto mais que, na mesma reunião, se ia discutir o caso do Douro, a que o governo dava elevada prioridade. Lisboa considerou assim que, nesse ano de 2012, o caso de Elvas não era prioritário no nosso esforço diplomático.

Coube-me a mim a ingrata tarefa de tentar dissuadir o presidente da Câmara de Elvas, num complexa e tensa conversa telefónica, da sua ideia de enviar a São Petersburgo uma numerosa delegação em apoio às pretensões de Elvas. Não foi fácil travá-lo! Cheguei a ameaçar com a não acreditação da deputação elvense! E pedi ao presidente Rondão Almeida que reduzisse a representação de Elvas a ... uma única pessoa!

Essa pessoa devia ter uma qualificação técnica para me ajudar, se acaso eu entendesse que havia alguma hipótese residual de explorar o assunto. Mas expliquei, bem explicado, que o caso de Elvas não estava nas nossas prioridades nesse ano, embora a experiência que essa pessoa pudesse vir a retirar da observação dos trabalhos do Comité lhe pudesse vir a ser muito útil... provavelmente no ano seguinte. Foi o bom e o bonito, mas tudo se fez como eu pedi.

Chegado a São Petersburgo, passei a totalidade dos primeiros dias a tratar do caso do Douro, como o governo insistentemente me pedia. Fi-lo quase sem abandonar as instalações da antiga Duma, que ainda mantinha a estrutura de madeira de que eu conhecia bem das fotografias em que Lenine surge a ali dirigir a revolta de 1917. O problema do Douro resolveu-se. 

E Elvas? Pelos corredores, andava o representante enviado por Elvas, o professor universitário Domingos Bucho, principal responsável pelo dossiê de candidatura da cidade a Património Mundial. Com a restante delegação já com o essencial da agenda concluído, os dois lugares da delegação portuguesa passaram a ser ocupados por mim e por ele. E foi assim que, durante horas e dias, vimos aprovados pelo Comité algumas candidaturas, rejeitadas outras, com Elvas a ir ficando para o fim.

O professor Domingos Bucho não se conformava que Elvas não tivesse uma "chance". A Comissão Nacional da UNESCO, cujos membros estavam em São Petersburgo, recomendava-me que não tentasse contrariar a vontade da organização, que abertamente era desfavorável à classificação das fortalezas da cidade. Mas, numa manifestação de confiança profissional, deram-me mãos livres para eu atuar como entendesse melhor - embora o tivesse de fazer por minha conta e risco... 

Com a passagem do tempo, fui-me convencendo que talvez valesse a pena fazer algumas "démarches", para medir o pulso ao Comité. Eu já os havia "explorado” até ao limite por virtude do Douro e, em alguns casos, a boa vontade dos meus colegas do Comité tinha sido inexcedível, pelo que voltar a pressioná-los era complicado. Ter um segundo “interesse nacional” aprovado na mesma sessão do Comité era pouco vulgar, seria quase um "milagre". 

Porém, a certa altura, tive a intuição de que valia a pena correr o risco de uma derrota. E, com o professor Domingos Bucho como suporte essencial, preparei uma abordagem tática.

Tudo passava por conseguir que me fosse dada a palavra, aquando da apresentação do caso pela UNESCO, contando depois com uma ou duas vozes no Comité, que ecoassem as nossas razões. E assim aconteceu. 

Uma responsável da UNESCO mostrou o caso de Elvas, explicou que havia "nove razões" (em especial três) pelas quais, infelizmente, a cidade não poderia ganhar o estatuto de Património Mundial nesse ano e preparava-se já para passar adiante e a outro caso quando um dos delegados, por mim previamente sensibilizado, inquiriu junto da mesa porque que razão não se pedia ao representante de Portugal para comentar o que fora dito. Portugal não era membro do Comité. Só podíamos falar se para tal fôssemos convidados.

A presidente da mesa, a embaixadora russa, anuiu e passou-me a palavra. Convém começar por dizer que a leitura do relatório (negativo) havia sido acompanhada por fotografias da cidade e das suas muralhas, que haviam sido por nós fornecidas, e que tinham uma qualidade e uma beleza impressionante. 

Quando tomei a palavra (o YouTube mostra, “ao vivo e a cores”, essa parte da sessão), bem habilitado tecnicamente pelo professor Domingos Bucho, procurei "desconstruir" algumas dessas observações, os três pontos que considerei "menores" e que Portugal se comprometia a resolver rapidamente. 

Amigos no Comité, previamente apalavrados, fizeram coro com o que eu disse e um deles, o delegado do Japão, um embaixador e um país com peso dentro da UNESCO, perguntou por que razão o caso de Elvas não ficava resolvido logo ali. Se o governo português, como eu afirmara, se comprometia a resolver os pontos pendentes, essa seria a solução mais sensata. O meu colega francês viria a reforçar esse pedido. Os colegas do Senegal, da Colômbia e do México vieram em nossa ajuda.

A situação tinha, contudo, foros de ineditismo. Não havia nenhum "draft" de Resolução preparado para ser votado, condição "sine qua non" para poder haver uma decisão do Comité. A presidente russa da sessão queria ser simpática connosco, mas não sabia como resolver a questão. Alguém sugeriu que se improvisasse uma Resolução. Vi a fúria na cara dos representantes da UNESCO, que pressentiram o terreno a fugir-lhe por debaixo dos pés: para eles, Elvas deveria, inexoravelmente, passar para o ano seguinte.

Foi então que a "rapporteur" (não sei se se diz "rapporteuse" ou "rapportrice"...) tomou a palavra e disse que, uns anos antes, tinha havido um caso similar e tinha-se improvisado um projeto de Resolução. E, para grande surpresa de todos, ela própria entregou à presidente da sessão um projeto de texto, rapidamente redigido.

(Faço aqui um parêntesis para contar que, na véspera, à saída da sessão, eu havia dito àquela simpática jovem costa-riquenha: "Parabéns! Tem feito um trabalho notável. Já chefiei comités na ONU e, devo confessar-lhe, nunca vi alguém fazer de "rapporteur" com a qualidade com que você o faz". Disse-lhe isso sem o menor pressentimento de ela nos pudesse vir a ser útil, apenas num elogio profissional muito sincero. Mas não duvido que possa ter criado uma boa vontade que nos iria ser inesperadamente útil). 

A sala estava suspensa, os responsáveis da UNESCO, que haviam perdido a questão de mão, estavam a "rezar" para que algum dos 21 delegados suscitasse uma objeção que pudesse contrariar aquela deriva. Ninguém o fez, nem mesmo a delegada alemã, que muito fundamentalista se tinha mostrado no caso do Douro, talvez travada por essa mesma razão. E, 30 segundos depois, por unanimidade do Comité, Elvas passava a ser Património Mundial!

O resto já se presume. Dei um abraço ao professor Domingos Bucho, muitos diplomatas pela sala vieram cumprimentar-nos, e a delegação portuguesa foi comemorar. 

Em Elvas, a cidade entrou em merecida festa, com foguetório pela noite dentro. Menos de um ano depois, por lá fui, com o professor Domingos Bucho, receber a medalha de ouro da cidade, enterrando definitivamente o "machado de guerra" com o presidente Rondão Almeida. 

No dia de hoje, Elvas pode comemorar uma década de Património Mundial.

A carta da Líbia


Naquela segunda metade da década de 70, as relações entre Portugal e os países árabes iam de vento em popa. Os mercados árabes, diluídas que estavam as anteriores reticências políticas face a Portugal, no pós 25 de abril, mostravam-se um terreno promissor de negócios para os empresários portugueses.

Como jovem diplomata, eu era então secretário de um grupo de trabalho com o nome pomposo de CICEPMOM (Comissão Interministerial para a Cooperação Económica com os Países do Médio Oriente e do Magrebe), criado, em 1976, pelo ministro Melo Antunes, presidido pelo engenheiro José Torres Campos e integrado por uma meia dúzia de pessoas, entre as quais um engenheiro que dava pelo nome de António Guterres, ainda mais jovem do que eu. 

A Líbia era um desses novos horizontes de trabalho económico externo. O MNE tinha-me mandado lá por duas vezes.

Um dia, algures no segundo semestre de 1978, na velha "EAA" (repartição da África e Ásia da DG dos Negócios Económicos), onde trabalhava, fui chamado ao telefone ("ó doutor, é um inglês para si!", berrou, lá de dentro, uma das senhoras do "apoio"). 

Quem me falava, do aeroporto de Lisboa, não era “um inglês”, mas um diretor-geral do Ministério dos Municípios líbio, que eu havia conhecido, nas minhas viagens a Tripoli. O meu interlocutor disse-me que era portador de uma carta do titular do Ministério dos Municípios líbio para o nosso ministro dos Negócios Estrangeiros, que já era então José Medeiros Ferreira, que entretanto tinha substituído Melo Antunes. Trazia instruções para fazer entrega pessoal da missiva. Ambos se tinham conhecido numa visita a Lisboa, no ano anterior.

Contactado o gabinete do ministro, fiquei a saber que Medeiros Ferreira tinha partido, na véspera, para Nova Iorque, a fim de assistir à Assembleia Geral das Nações Unidas. E que - curiosamente! - iria encontrar-se naquela cidade, no dia seguinte, com o ministro líbio, mas dos Negócios Estrangeiros. Nestas condições, que significado poderia ter uma carta, enviada por intermédio de um correio personalizado, subscrita por um outro ministro líbio - aquele por quem passavam os principais contratos que as empresas portuguesas estavam prestes a assinar com as autoridades do país? Era urgente clarificar o assunto.

O chefe (interino) do gabinete do MNE, na ausência do Eduardo Paz Ferreira, era o meu colega Carlos Neves Ferreira. Cedeu-me um carro do gabinete para eu ir buscar o diretor-geral líbio ao aeroporto. Levei-o ao “terceiro andar” das Necessidades, onde o Carlos lhe explicou que o nosso ministro já estava em Nova Iorque. Mas prometeu que lhe daria conta, de imediato, da mensagem do ministro dos Municípios líbio. Embora um pouco desapontado por não ter levado a missão a termo de forma personalizada, como lhe fora indicado, o meu conhecido líbio entregou a carta, que vinha em envelope fechado. Acompanhei-o de volta ao aeroporto, de onde partiu para Madrid. Dei o assunto por encerrado, no que me respeitava.

Puro engano. Regressado às Necessidades, fui, de novo, chamado ao gabinete do ministro, onde me foi exposta uma dificuldade, que eu tinha de encontrar maneira de superar: a carta estava escrita em árabe! Era necessário traduzi-la - e com urgência. Eu que me desenvencilhasse, como pudesse.

Com a "criança nos braços", com Nova Iorque à espera de novidades, não sabia bem como proceder. Não conhecia, em Lisboa, nenhum falante de árabe em quem pudesse ter confiança! Tinha alguns conhecidos em embaixadas de países árabes, tinha mesmo uma boa relação com o chefe da comunidade muçulmana, Suleiman Valy Mamede, mas a Líbia era já, à época, um país fora do "mainstream" político do mundo árabe, pelo que não podia correr o risco de colocar em mãos adversas uma informação que, pela urgência e pela forma como nos fora transmitida, teria, seguramente, alguma importância e delicadeza.

Foi então que me lembrei que, nos meus tempos de universidade, tinha conhecido um especialista em língua e cultura árabe, o professor Dias Farinha. Descobri-o pela lista telefónica e fui visitá-lo a casa, numa das torres do Restelo. Expliquei-lhe o nosso embaraço oficial e o pedido de urgente ajuda que lhe formulávamos. A resposta foi menos direta do que eu pensava: a sua especialidade era o árabe clássico, pelo que precisava de algum tempo para, com apoio de dicionários, "trabalhar" o texto, embora ele não fosse demasiado extenso.

Ao final dessa tarde, regressei a casa de Dias Farinha. E foi então que constatei, pela tradução feita, que a carta era, nem mais nem menos, um montão de banalidades e lugares-comuns, de formulação de votos pelo prosseguimento das boas relações que eram mantidas entre os setores técnicos, nas áreas onde Portugal se preparava para atuar na Líbia, notas sobre a grande importância que Tripoli atribuía a um entendimento cada vez mais profundo com o nosso país, etc. Enfim, tudo "langue de bois". 

Eu estava siderado, e, claro, preocupado. Inquiri do professor Dias Farinha se, de facto, ele estava bem seguro de que a carta não era mais do que "aquilo", se não havia alguma mensagem subliminar ou se, afinal, eu podia assegurar ao meu ministro que o texto era, como se constatava, mera "conversa fiada". O especialista garantiu-me que sim.

Regressei às Necessidades, informou-se a nossa missão na ONU e, lá em Manhattan, o ministro português deve ter concluído, shakespeareanamente, sobre o alarme dos seus colaboradores em Lisboa: "much ado about nothing".

A historieta não acaba aqui. 

Em 2001, quando fui representar Portugal na ONU, ao cumprimentar o meu colega líbio, julguei nele reconhecer uma cara familiar: era o antigo ministro líbio dos Municípios, de seu nome Abuzaid Dorda. Nada mais nada menos que o subscritor da carta que tanto trabalho me havia dado. Tornámo-nos amigos. 

Dorda teve um futuro complicado: foi chefe da polícia secreta de Kaddafi, seria detido e severamente torturado depois da queda deste e passou oito anos preso. Morreu há semanas, no Cairo, li agora.

Por que é que me lembrei disto? Porque o meu interlocutor no gabinete do ministro, na historieta que aqui deixo, o meu colega Carlos Neves Ferreira, cumpre amanhã 80 primaveras e, com ele, no sunset de Sintra, tenciono beber à sua saúde uma champanhola das sérias. E lembrar os velhos tempos em que éramos um pouco mais novos.

Bye bye Biden?


Allan Katz, antigo embaixador americano em Lisboa, na administração Obama, publica na Newsweek um artigo apelando a que Joe Biden anuncie que não concorrerá a um segundo mandato. 

Na perspetiva de Katz, a crescente impopularidade de Biden, somada a outros fatores, iria facilitar uma vitória de Trump.

Vale a pena ler o artigo. Aqui.

quarta-feira, junho 29, 2022

Quem é amigo, quem é?

Bem vistas as coisas, António Costa parece ir prolongar, com Luís Montenegro, a “aliança“ implícita que algum PSD desconfiava que ele mantinha com Rui Rio. Ao anunciar a polémica decisão sobre os aeroportos, precisamente nas vésperas do congresso do PSD, Costa oferece ao novo líder, de bandeja, um um oportuno “cavalo de batalha”. Quem é amigo, quem é?

Da paz


Acabei de ler, há minutos, um livro bem recente, muito interessante e informativo: “À Conquista da Paz - do Iluminismo à União Europeia”, da historiadora britânica Stella Ghervas. 

Deixo-lhes o último parágrafo do texto.

terça-feira, junho 28, 2022

Princípios para a gaveta

É extraordinário - e histórico - o recuo da Suécia e da Finlândia, em matéria de princípios, para conseguirem ultrapassar o veto da Turquia à entrada para a Nato. Há coisas que ainda nos surpreendem.

segunda-feira, junho 27, 2022

Uma aventura na escrita


Um dia, vai para meio século, Carlos Eurico da Costa, que dirigia a empresa publicitária Ciesa-NCK, setor que atravessava tempos difíceis e que então se tentava reinventar, sabendo-me um compulsivo leitor de imprensa, por me ver comprar resmas diárias de jornais, fez-me um desafio: não estaria eu disposto a redigir um boletim semanal, onde registasse os principais factos da atualidade política portuguesa, sublinhando - e essa era a novidade - o modo como os diferentes órgãos da imprensa escrita os tinham analisado ou sobre eles tinham opinado? A ideia era simples: descrever os factos e as figuras nele relevantes através do olhar da diversa imprensa.

Segundo a sua perceção, haveria um mercado potencial para esse produto, nas embaixadas e empresas estrangeiras, que viviam um pouco perdidas e aturdidas, nesse período pós-Revolução, em face da variedade política e ideológica da época, para conseguirem identificar o que se passava de realmente importante e estabelecer o quem-é-quem das figuras públicas que emergiam e de que então se falava. O estilo da escrita tinha de ser absolutamente neutro, independente. O rigor nessa análise era essencial, para justificar a compra, até porque a assinatura não seria barata (se um produto dessa natureza fosse barato, ninguém compraria…)

“Nada melhor do que um diplomata para redigir uma coisa assim!”, disse-me o Carlos. É que eu já era então diplomata, desde há algum tempo. Confesso que me atravessaram algumas interrogações sobre se aquele tipo de trabalho era compatível com o que eu desenvolvia nas Necessidades. Mas era evidente que nada daquilo que eu fazia, no meu dia a dia profissional, se confundia com a política interna portuguesa que me era proposta como objeto de uma análise factual, através da nossa imprensa.

Aceitei o desafio. O Carlos era meu primo e tínhamos uma relação muito próxima. Já me tinha conseguido um emprego, em “part-time” bem matutino, na Ciesa-NCK, logo após o 25 de Abril, ao tempo que eu fazia serviço militar, tarefa que tinha abandonado quando entrei para o MNE. Eu regressaria assim à colaboração com a empresa.

Demos ao boletim o nome pouco criativo de “Análise da Informação”. “Tem de ter uma designação sóbria, profissional”, decidiu o Carlos Eurico, que “sabia da poda”, quer da informação quer da vida empresarial.

Sob o ponto de vista financeiro, a compensação não era grande, mas ajudava-me a compor o baixo salário de um diplomata em início de carreira. Como tarefa e em termos de ocupação de tempo, o exercício veio, contudo, a revelar-se um “inferno”: deixei de ter os fins de semana livres, o vizinho do andar de baixo veio queixar-se de que o debicar na minha Olivetti portátil não deixava dormir o filho recém-nascido, a minha mulher queixava-se de que não tínhamos o menor tempo para nada. E eu andava cada vez mais estourado! 

Creio que aguentei aquilo, sozinho, cerca de dois meses. Um dia, disse ao Carlos que não podia continuar. Tinha de encontrar outra pessoa para executar o trabalho.

O Carlos, que não era pessoa para se atemorizar com os contratempos, teve logo uma ideia. Se eu não aguentava a “barra” sozinho, criava-se uma equipa. Mas insistia que eu ficasse nela, com “um terço do trabalho”. E ganhando o mesmo. Foi então que me dei conta de que o projeto tinha começado a ter sucesso, que havia cada vez mais clientes, e que, porventura, não estaria mesmo a ser pago à altura do que produzia. Mas de nada valia queixar-me do passado.

Dias depois, o Carlos trouxe a solução. Para a coordenação, ia o José Silva Pinto, um dos jornalistas fundadores de “O Jornal”. O terceiro redator, por sugestão do José Cardoso Pires, seria Francisco Vale, que hoje dirige a editora “Relógio de Água”, e que eu já conhecia de tempos comuns no Teatro Universitário do Porto. Em alguns momentos, a “Análise”, nas nossas férias, viria a ter a colaboração do Manuel Beça Múrias e do Carlos Cáceres Monteiro, ambos pertencentes ao “dream team” de “O Jornal”.

O pagamento continuava a não ser muito elevado, mas o Carlos introduziu-lhe uma novidade apelativa: o nosso salário ficava indexado ao número de exemplares vendidos. Ele comprometia-se a dar-nos conta mensal do andamento do negócio. E ele era um homem de contas certas, como nós sabíamos.

Passaram uns meses, Um dia, o Carlos telefonou-me, com voz “de caso”: “Precisava de falar contigo, antes de ambos termos uma conversa com o Silva Pinto e com o Vale”. Passei por casa dele, onde vivia com a Maria Lúcia Lepecki, e fui confrontado com um ”problema”: “A Ciesa acabou de fazer um contrato que, praticamente, triplica o número de exemplares vendidos. Como é que saímos disto?”.

Imagino que os meus olhos rissem, quando lhe respondi: “Essa agora! Não há o menor problema, é bem simples: triplicas os nossos salários!”. O Carlos ficou possesso: “Estás doido! Não posso fazer isso! Por um trabalho em “part-time” vocês passariam a ganhar um dinheirão!”. Eu estava muito divertido, a rir por dentro. “Tens de me ajudar na conversa que tenho de ter com o Silva Pinto!”. Eu continuava divertido, já a gargalhar em seco…

Dois dias depois, a equipa da “Análise da Informação” era convidada pelo Carlos Eurico da Costa para almoçar no “Caramão da Ajuda”. Quando cheguei, vi que a mesa estava cheia de belas entradas. Com um bom vinho. O Zé e o Francisco ainda não tinham chegado. O Carlos alertou-me: “Vê se me ajudas na conversa”. Eu ironizei: “Por isso é que nos trazes para o Caramão… da Ajuda?”.

Lá almoçámos. Deixei a despesa da conversa para o nosso coordenador, o José Silva Pinto, com o Carlos a lançar-me olhares, na esperança que eu fizesse alguma concessão masoquista que fragilizasse a coesão do trio. É o fazes! Lá se acordou um arranjo, já não sei de que forma, para “não sairmos milionários”. Não saímos, mas tivemos um belo aumento. Por essas horas extra que fazia para a Ciesa, eu ganhava quase o dobro do que o MNE me pagava. Foi um bom negócio.

Em maio de 1979, fui colocado no estrangeiro. (Alguns amigos perguntavam-me então da razão da minha teimosa relutância em sair para um posto: aqui fica a explicação). Soube que a “Análise de Informação” continuou, por mais alguns anos.

Ontem, o José Silva Pinto, contactou-me, para refrescar a memória sobre um pormenor desses tempos. Lembrei-me de recordar hoje estes episódios da nossa aventura comum. Que ajudou a cimentar a nossa amizade.

Uma estratégia russa


The recognition of the Donetsk People’s Republic (DPR) by other countries is just an interim stage while it is more important for the Donbass republics to get integrated into Russia, Chairman of the DPR Public Chamber Alexander Kofman told TASS on Sunday.” (O reconhecimento da República Popular de Donetsk (RPD) por outros países é apenas um estádio intermédio, dado que o mais importante para as repúblicas do Donbass é serem integradas na Rússia, disse à Tass, neste domingo, o presidente da Assembleia Pública da RPD, Alexander Kofman).

Em fevereiro último, ainda antes da invasão da Ucrânia, durante uma reunião do Conselho de Segurança da Federação Russa, transmitida pelas televisões, o mundo teve oportunidade de assistir a uma intervenção de um dignitário do regime que, num evidente lapso, disse estar de acordo com a integração das repúblicas de Donetsk e Luhansk na Federação Russa. Putin, com humilhante veemência, interrompeu-o, dizendo que essa não era a questão que ali estava a ser discutida. E não era: na ocasião, tratava-se apenas de decidir se a Rússia iria reconhecer essas repúblicas, aproveitando a luz verde para tal, que antes fora dada pela Duma (parlamento). A personalidade que interveio tinha-se precipitado, mas o que disse era revelador.

A questão tem algum tempo e Moscovo não tem seguido um percurso linear para atingir o que lhe importa. 

Em 2008, na sequência da tentativa do governo da Geórgia de retomar a soberania sobre as regiões secessionistas da Abcásia (separada desde 1993) e da Ossétia do Sul (separada desde 1991), a Federação Russa interveio militarmente em favor do poder “de facto” existente em ambas e decidiu reconhecê-las,  no seu aut-atribuído estatuto de Estados independentes. O argumento foi o de que as populações russas, que, maioritariamente, vivem nesses territórios, estavam a ser atacadas ou ameaçadas. Desde então, a Ossétia do Sul, que só a Rússia e um número infimo de países reconhece como independente, tem vindo a adiar a convocação de um referendo interno para a integração plena na Federação Russa. Não há ainda nota de idêntica intenção por parte da Abcásia, que vive sob um reconhecimento internacional análogo, mas a forte tutela russa sobre esse “Estado” é muito evidente e há a convicção de que, acaso a Ossétia do Sul faça o esperado pedido integrador na Rússia, os abcazes procederão de forma idêntica.

Em 2014, duas regiões no Donbass, no Leste da Ucrânia, Donetsk e Luhansk, autodeclaram-se autónomas do controlo do governo central. O presidente do país, oriundo dessa área, havia sidi afastado por um golpe político que colocou no poder, em Kiev, um regime abertamente pró-ocidental e considerado  discriminatório face às populações russófonas do país. De forma mais ou menos discreta, o governo russo apoiou (e, muito provavelmente, estimulou), com recursos materiais e humanos, essa revolta regional. Moscovo, quiçá por razões táticas, não reconheceu então essas duas “repúblicas populares”, mas deu-lhes constante apoio, a partir de então, para a guerra de baixa intensidade que mantiveram com o regime de Kiev. 

Simultaneamente, a Rússia operou, nessa altura, na península da Crimeia, um “golpe de mão”, ocupando rapidamente a região, sob a impotência militar da Ucrânia, organizando um apressado referendo para a “independência” do território, logo integrado na Federação Russa.

Já neste ano de 2022, pretextando não ter sido concluída a autodeterminação regional prevista no Acordo de Minsk (para a regulação político-constitucional entre Luhansk e Donetsk e o poder central em Kiev, negociado sob mediação franco-alemã) e tendo-se agravado, na perspetiva de Moscovo, as ameaças às populações russas no Donbass, que correriam o risco “genocídio”, a Rússia invadiu militarmente a Ucrânia, a “convite” desses dois “Estados”, que entretanto, rapidamente reconheceu como ”Estados independentes”.

Agora, olhando o decurso da guerra e modo como ela está a decorrer, pode prever-se que um processo similar venha a suceder futuramente à região de Kherson (uma das primeiras a serem ocupadas em fevereiro, o que pode justificar-se pela importância de assegurar o abastecimento de água à Crimeia e facilitar o respetivo acesso por terra, garantido com a tomada de Mariupol). As medidas de russificação em curso, desde o uso do rublo à internet e media russos, apontam nesse sentido.

Numa perspetiva maximalista, se o avanço russo no sul da Ucrânia, para ocidente, conseguir chegar à fronteira moldava, é mais do que provável que a comunidade russa na Transnístria (zona separatista da Moldova, que dá regulares sinais no sentido de querer ligar-se institucionalmente a Moscovo) venha a pedir à Duma russa o seu reconhecimento (como sucedeu com as repúblicas do Donbass) e assim se inicie o processo para a respetiva integração na Federação Russa.

A declaração com que iniciei este texto vem dar corpo, em absoluto, àquilo que se tem ouvido de Vladimir  Putin, desde as semanas que antecederam esta guerra. A doutrina parece cristalina: as áreas da antiga União Soviética onde vivam cidadãos russos ou pertencentes a comunidades étnico-linguísticas russas, que tenham dificuldade de afirmação dos seus interesses específicos enquanto comunidade, no contexto dos novos países de que passaram a fazer parte, são vistas pela Rússia como fazendo parte da sua esfera de legítima tutela. A Rússia estimula a expressão “nacional” e a pulsão autonomista dessas comunidades, dá-lhes o rótulo de “repúblicas” e, num derradeiro passo, acabará por integrá-las na Federação Russa, estendendo-lhes depois a proteção, em especial em matéria de segurança, que lhes será conferida pela soberania russa. 

No limite, e no futuro, podemos interrogar-nos sobre se quaisquer atos de natureza militar que venham a ser empreendidos por parte dos governos dos países de que se cindiram (Geórgia, Ucrânia e Moldova), para recuperação da soberania que lhes é reconhecida pela ONU e pelo Direito Internacional, não serão interpretados por Moscovo como ações de agressão militar contra a Rússia e o seu território, com todas as consequências que daí podem derivar, em termos de resposta defensiva.

G7

Talvez com “arrière-pensées” de alguns membros, o G7 decidiu que o apoio à Ucrânia continuará, não pressionando Kiev à negociação, num momento que esta poderia dar vantagem à Rússia. O mundo desenvolvido entende que, por ora, as suas populações aguentarão os efeitos da guerra.

“A Arte da Guerra”


O próximo podcast “A Arte da Guerra”, a minha conversa semanal, de cerca de 30 minutos, com o jornalista António Freitas de Sousa, sobre temas internacionais, integrado nos suportes audiovisuais do “Jornal Económico”, só vai “para o ar” do dia 21 de junho.

Vamos entrar em três semanas de ”mais do merecido gozo de vilegiatura”, para utilizar a expressão que ”O Vilarealense”, folha informativa semanal da minha terra, há muito desaparecida, utilizava para noticiar as idas a banhos dos conterrâneos ilustres e “das suas excelentíssimas Familias”. 

Como me dizia, há pouco, um atento visualizador, a quem transmiti a nova, “está descansado que a guerra espera por ti!” Eu sei!

domingo, junho 26, 2022

Assim, não vale!


Misturar o conceito de salário médio com o valor que um diplomata tem de receber, além do seu salário-base, para poder viver e educar filhos no estrangeiro (às vezes, em cidades com preços milionários, como no Golfo, Japão ou Noruega) é um péssimo trabalho de informação pública.

Tenho absoluta certeza de que o salário médio dos diplomatas portugueses ultrapassará, em muito pouco, um terço do valor aqui anunciado.

sábado, junho 25, 2022

Transferência ou remoção, eis a questão!

Não há qualquer acordo sobre a língua que possa obviar a desentendimentos semânticos. No Brasil, quando um diplomata vai para uma embaixada no exterior, diz-se que foi “lotado” nessa missão diplomática, isto é, que passou a fazer parte do “lote” do pessoal aí em serviço. E quando sai de um posto para outro, ou segue de regresso à sua capital, diz-se que foi “removido” desse posto, no sentido de ter sido “transferido”. Entre nós, dizer-se de alguém que foi “removido”, soaria estranho: remove-se um obstáculo ou um empecilho, não (em regra) um servidor público. Também pode acontecer, só que não se diz…

Ainda na ressaca de dois dias que passei na Fundação Calouste Gulbenkian, a discutir o futuro das relações entre Portugal e o Brasil, no ano em que se comemoram os 200 anos da independência deste último e em que o coração (físico) do primeiro imperador brasileiro surgirá como uma “vedeta” mórbida dos festejos, lembrei-me do que sempre pensei: somos, afinal, dois povos separados por “tanto mar” e por uma língua incomum.

Vem isto a propósito da notícia, hoje conhecida, de que o presidente ucraniano decidiu mudar a sua embaixadora em Lisboa. Há pouco, na CNN, perguntado sobre isto, estive quase para repegar nos dois termos - o usado em Portugal e o usado no Brasil - e especular: a embaixadora foi transferida ou removida? 

Não fui por esse caminho. Disse, com toda a sinceridade, que entendia que a embaixadora tinha tido uma reação extremamente profissional, ao dizer, à comunicação social portuguesa, que se tratou de uma mudança já programada, até porque ela própria tinha tido a indicação de que iria sair, numa comunicação que lhe havia sido feita pelo respetivo ministro. Quando? Há dois dias. 

Há anos, um embaixador português, cujo nome agora me escapa, “removido” também com breve aviso prévio, ao ser-lhe perguntado pela imprensa sobre se tinha algum comentário a fazer ao que lhe tinha ocorrido, optou por responder que não precisava de dizer mais nada: a decisão era tão eloquente que falava por si…

sexta-feira, junho 24, 2022

Recuo

Com a tragédia da guerra a Leste, nos últimos meses, bem como na decisão do Supremo Tribunal dos EUA, que hoje foi anunciada, fica provado que o mundo pula mas, às vezes, em lugar de avançar, recua.

quinta-feira, junho 23, 2022

“A Arte da Guerra”


“A Arte da Guerra”, podcast semanal no “Jornal Económico”, uma conversa com o jornalista António Freitas de Sousa, desta vez sobre a crise em torno de Kalininegrado e a ambição europeia da Moldova, o impasse francês e as eleições presidenciais na Colômbia: 

Pode ver clicando aqui.

A Rússia na Ucrânia


Os mapas da Ucrânia que, em regra, a imprensa nos apresenta, não permitem uma comparação com países com os quais estamos familiarizados.

Este mapa sobre as zonas ocupadas pelas forças russas é, a meu ver, bastante informativo (é necessário clicar no mapa para ele expandir).

quarta-feira, junho 22, 2022

Ai o SNS!

É quase comovente ver o desvelo para com o Serviço Nacional de Saúde por parte de uma importante força política que votou contra a respetiva criação. Percebe-se que possa, entretanto, ter mudado de opinião, mas um discreto ato de contrição histórica não lhe ficaria nada mal.

Eles aí estão!

Na nossa comunicação social, alguns calejados especialistas em Covid terão abandonado, por instantes, Severodonetsk, para, através da alta dos combustíveis, se dirigirem aos serviços de obstetrícia. O cerco, embora sem russos à mistura, fechar-se-á com a chegada dos incêndios.

Que azar!

 Terramoto no Afeganistão. Há países que deviam ir à bruxa!

terça-feira, junho 21, 2022

Um livro


Ontem, entre o final da tarde e o início da madrugada, li um livro, uma autobiografia, de cuja existência me tinham falado, com umas escassas centenas de páginas, de um autor cujo nome que não vem nem virá ao caso. Olha-se para aquilo tudo e perguntamo-nos: que raio de vida terá sido aquela, em que quem se cruzou de forma positiva com o autor, disso justificando alguma nota, terá sido um número muito escasso de gente e, ao invés, dali emerge uma onda de acrimónia em relação a uma montanha de outras pessoas, a maioria chamada pelo nome (vá lá!). Tudo, quase sempre, num registo de baixo ajuste de contas. Se alguém chega aos últimos anos da sua existência e o que tem para apresentar, como saldo do que viveu, foi apenas aquilo que deixou impresso - e imagina-se que, se essa pessoa escreveu aquilo, é porque não tinha outra vida para descrever - podemo-nos perguntar se essa pessoa foi feliz assim. É que, se acaso o foi, se ela acabou por se sentir bem nesse mundo de que foi o ácido protagonista que orgulhosamente se descreve, então é porque não deve ser boa rês. (Alguns se perguntarão: mas por que não revelar o nome do livro e do autor? Porque isso seria dar-lhe importância e cair no mesmo “naming names” agressivo em que ele incorreu. E nada tenho a ver com essa pessoa.)

segunda-feira, junho 20, 2022

Voltar a Königsberg?


Veremos se as medidas anunciadas pela Lituânia para dificultar o habitual acesso da Rússia ao seu território isolado em Kalininegrado não acabarão por se transformar numa imensa sarilhada. “Fishing for trouble” pode ser a expressão exata para qualificar este gesto de Vilnius.

América do Sul



A vermelho, os países com governos de esquerda (embora considerar a Venezuela de Maduro de esquerda seja uma palermice). A azul, estão o Brasil (logo veremos em novembro) e o Equador. A cinza está a Guiana Francesa, que tem as cores de Macron…

Vencedores derrotados

”Vencedores” relativos nas legislativas francesas foram os dois parceiros de Macron na coligação eleitoral: Édouard Philippe (primeiro PM de Macron, líder do Horizons e potencial candidato em 2027) e François Bayrou (líder do MoDem) que ganham margem negocial na antiga maioria.

domingo, junho 19, 2022

França

1. Há derrotas que têm uma dimensão única: ver o presidente da Assembleia Nacional e o seu líder parlamentar perderem os lugares de deputado é um bom testemunho da crise que o partido de Emmanuel Macron está a atravessar.

2. A direita clássica francesa, fundadora e usufrutuária maior da V República, passou a quarto partido de França. Olhem-se as caras que a representam: são tudo figuras do “sarkozismo”, que deixou o poder - Eliseu e Assembleia - há uma década. Mas que ainda mantém maioria no Senado.

3. A coligação eleitoral NUPES não terá um grupo parlamentar conjunto na futura Assembleia Nacional francesa. O France Insoumise, os ecologistas e os socialistas terão grupos próprios. Consequência: o Rassemblement National, de Le Pen, passa a ser o principal partido da oposição.

4. Macron fez carreira com a tese de ser “ni droite, ni gauche”. Hoje, o lema mantém-se: não consegue fazer alianças… nem à direita, nem à esquerda!

Mortos & mortos

Na tragédia ucraniana, para a nossa comunicação social, há mortos civis ”bons” e “maus”. Se o ataque é feito pelos russos, as vítimas são tratadas com imenso carinho mediático. Se se trata de uma ação militar ucraniana, os civis são “casualties” que estavam no sítio errado.

Guerra é guerra?


Há muitos anos, nos 90 do século passado, o meu pai, que me tinha ido visitar a Londres, perguntou-me se não podíamos “dar um salto” a Coventry. Claro que era possível! Lá fomos e, pelo caminho, foi-me explicando, com pormenores, que aquela cidade fora atacada pela Luftwaffe, durante a Segunda Guerra mundial. Eu conhecia vagamente a história e sabia que, como retaliação, Churchill tinha determinado bombardear Dresden. 

Em Coventry, havia uma catedral destruída, cujas ruínas tinham sido recompostas com outra construção, para que a memória se não apagasse (na foto). O meu pai, “aliadófilo” ferrenho, tinha na sua recordação afetiva a barbaridade de Hitler, mas não o que Dresden tinha sofrido. Os “nossos” mortos são sempre o que conta.

Eu tinha ido a Dresden, na então RDA, mais de uma década antes. Lembrava-me de uma cidade triste (hoje, dizem-me, tem uma pujança cultural notável), mas tristes e sem cor eram todas - repito, todas, por muito que isso irrite alguns amigos meus - as cidades da RDA, e eu visitei muito daquela que era então a montra do “socialismo real”. Curiosamente, não me recordo de ter visto em Dresden memoriais da guerra, mas admito ter estado distraído.

O ataque a Coventry tinha provocado 176 mortos e o bombardeamento de Dresden matou 25 mil pessoas, leio agora no Google. “Guerra é guerra”, dirão alguns. 

Por que é que me lembrei disto? Porque acabo de ler um artigo de Pacheco Pereira, no “Público” em que sublinha uma coisa evidente: por maiores que tivessem sido os agravos (e foram muitos, como se sabe) que os ucranianos tivessem feito às populações russófilas e russófonas no leste do país, desde 2014, é absurdamente desproporcionado o nível de agressão cruel que a Rússia está, por estes tempos, a utilizar nos vários territórios da Ucrânia em que atua militarmente.

“Guerra é guerra”? Tenho dúvidas que as coisas possam ser vistas assim.

Paul McCartney


Este texto não é para toda a gente. É apenas para quem percebe o que quero dizer com ele. Li que Paul McCartney fez 80 anos. Faço parte da geração dos Beatles. E não sou da dos Rolling Stones (embora tenha quase toda a sua discografia, claro). A geração dos Beatles é a minha geração. E é por sê-lo que quero dizer, com imensa sinceridade, que ter sabido que Paul McCartney tem 80 anos me fez alguma impressão. E que me estou borrifando para a idade do Mick Jagger. Era só isto que queria dizer.

Rock in Guincho

 


Ontem.

sábado, junho 18, 2022

Serenidade e bom senso


Bela lição dada hoje pelo comandante Correia Guedes, a propósito do incidente com o avião, no aeroporto de Lisboa. Em dois tempos. Desde logo, a aconselhar que nunca devamos dramatizar estes episódios: em regra, tudo corre bem. Depois: que é mais do que urgente um segundo aeroporto para Lisboa. Ouçam-no!

Rússia, Ucrânia


Depois de ler tanta coisa sobre a questão ucraniana, concluí que este livro, com todas as limitações que possa ter, foi, a grande distância, a obra mais equilibrada que encontrei. Mas também sei que, sobre o tema, há quem só goste de ler coisas “desequilibradas”…

Por sugestão de um comentador - para quem tenha alguns minutos e compreenda o espanhol -, aqui deixo um link do YouTube

sexta-feira, junho 17, 2022

Trintignant


Há precisamente dez anos, numas férias por França, estacionei o carro no largo de uma pequena cidade, Piolanc, a norte de Avignon. Entrei num café e, numa parede, vi um foto, bem antiga e assinada, de Jean-Louis Trintignant. Para fazer conversa, perguntei à senhora que me serviu se conhecia o ator. Olhou para mim, com um sorriso simpático e desculpavelmente sobranceiro, deixando cair: “Ele é de cá. E é nosso cliente”.

Não fazia a menor ideia de que por ali tinha nascido um dos atores franceses que, desde há muito, tanto admirava. Uma extraordinária figura do cinema, de quem vi imensos filmes. Quero lembrar três e, de certo modo, esquecer um. O primeiro, dirigido por Dino Risi, muito antigo, com Vittorio Gassman, “Il Sorpasso”, que muito marcou a minha adolescência. Outro, já na idade adulta, que me levou a ler Pascal, o “Ma Nuit Chez Maud”, de Rohmer, e que, um dia, me fez, por horas, procurar paisagens de memória nas ruas e arredores de Clermont-Ferrand. Finalmente, um último filme que me tocou imenso, mais recente, sobre um casal idoso, em que o Alzheimer intervem, película cujo nome não recordo. Qual é o filme que lembro que quero esquecer? O delicidoce “Un Homme et une Femme”, de Lelouch, de longe o seu maior êxito de bilheteira. 

Recordo-me ainda de Trintignant ter atravessado, há duas décadas, uma tragédia familiar, com uma filha brutalmente agredida pelo namorado, num país báltico, vindo a morrer em França, dias depois. A cara do ator, muito dada ao rictus angustiado, estava, dessa vez, a transmitir as dores da vida real. 

Leio que Trintignant morreu hoje.

Rússia


A cobertura televisiva do discurso de Vladimir Putin no Fórum Económico de São Petersburgo foi muito hábil, focando caras da diversidade étnica mundial, para tentar sublinhar o caráter global do evento. Mas também revelou rostos de cidadãos russos comuns.

Pedrógão

Pedrógão foi uma imensa tragédia. Escavar raivosamente em torno das culpas não dolosas do que então sucedeu é “chover no molhado”. Mas ter a máxima exigência e responsabilizar pelo que, desde então, não foi feito e deveria tê-lo sido, isso sim!, é uma exigência democrática mínima.

Notícias do arraial

Carmo Afonso escreve hoje (bem) no “Público” sobre a Alt-Right portuguesa, a ideologia a-social que, fingindo cultivar a liberdade, cavalga o egoísmo geracional e tenta queimar etapas para chegar mais depressa aos SUV e à Comporta.

A cadeira


O diretório que tenta prevalecer no Conselho da União foi ontem dizer a Kiev que ia estar de acordo com o que já sabia que a Comissão ia dizer hoje. Afinal, a luta pelas cadeiras não se fez só em Ancara.

Lugar aos novos!

O “novo“ PSD diz que não se quer comprometer com qualquer opção sobre o novo aeroporto de Lisboa. Claro que não: vai esperar pela escolha que o governo fizer para, depois, se lhe opor. Alguém esperava outra coisa?

Lá no fundo, eles são assim!

Vargas Llosa, entre Bolsonaro e Lula, diz que prefere Bolsonaro. Alguém se recorda que, no fim da vida, Soljenítsin (esse mesmo, o do Gulag), depois de ter adorado Franco e Pinochet, acabou num fã devoto de Putin? Quantos esquerdistas não andam por aí a suspirar por Trump…

Brincar aos castelos


O castelo de S. Jorge estava mesmo assim, no início dos anos 40. Depois, puseram-no à medida daquilo que o imaginário histórico requeria. E foi então que chegaram os turistas…

Já agora!

Parece que o governo vai ter um novo responsável pela comunicação. Pena foi que só o tenham contratado para depois dos feriados...

Divisões

A frase do SG da NATO, Stoltenberg, criticando as declarações do papa Francisco sobre a tragédia ucraniana, faz recordar o que Stalin perguntou, quando Pio XI criticou as perseguições de cristãos na URSS: “E quantas divisões é que tem o papa?”

Mélenchon

Nos casos em que a alternativa, na segunda volta das eleições legislativas francesas, se fará entre um candidato da extrema-direita e outro da coligação que apoia Emmanuel Macron, Jean-Luc Mélenchon - tal como já fez no passado - decidiu não recomendar qualquer voto. É uma posição de imensa irresponsabilidade, indigna das tradições republicanas da França. Não consigo deixar de tomar partido e dizer: desejo que Mélenchon tenha o futuro que merece.

quinta-feira, junho 16, 2022

“A Arte da Guerra”


Em “Arte da Guerra”, o podcast semanal do “Jornal Económico”, falo com o jornalista António Freitas de Sousa sobre a guerra na Ucrânia, as eleições legislativas em França e as relações luso-britânicas no pós-Brexit.

Pode ver aqui

Lembrar Minsk

Estamos muito longe de conhecer os contornos do compromisso com que terminará a guerra na Ucrânia. Mas tenho quase a certeza de que se acaso Kiev tivesse dado os passos a que se tinha comprometido no Acordo de Minsk de 2015, o saldo político final ser-lhe-ia bem mais favorável. Pelo menos, teria retirado à Rússia um importante pretexto que usou para justificar a invasão.

França

Posso estar enganado - em política, engano-me algumas vezes, não o escondo -, mas a frente eleitoral de Mélenchon, não obstante ir obter um bom resultado no domingo, vai deixar os seus “enragés” apenas com uma capacidade parlamentar para infernizar o quinquénio de Macron.

China

O facto de ter sido a agência noticiosa chinesa a divulgar a troca de mensagens entre Putin e Xi Ji Ping, em que referem “willing to continue mutual support with Russia on issues related to sovereignty, security and issues of major concern” deve ser lido como um sinal revelador.

Eixinho

Em Brasília, há uma via rodoviária a que toda a gente chama o Eixinho. Lembrei-me do nome, ao ver o grupo de chefes europeus que se prepara para ir à Ucrânia. Este “Eixinho” europeu (desculpem o trocadilho histórico irresistível), com um Scholz líder de uma coligação que claramente não domina, um Macron debilitado e “à bout de souffle”, entre sufrágios, somados a um Draghi que tem mais prestígio pessoal do que gás para apoiar a sua economia, com juros já a disparar, não constitui um ”diretório” europeu muito forte. E Zelensky, que atravessa um momento muito sério no seu tempo de guerra, e que deve estar com um estado de espírito longe de facilitar qualquer flexibilidade, sabe bem isso. E só ouvirá Biden. Não sei mesmo se a ida desta “troika” a Kiev, neste momento, é uma boa ideia.

Medvedev

Num regime ditatorial, a emergência pública de personalidades nunca acontece por acaso. Não sou “kremlinólogo”, mas acho interessante este súbito surgimento de Medvedev, que, em tempos, alternou com Putin de lugares, por imperativos constitucionais entretanto ultrapassados.

Sócrates

Percebe-se bem que José Sócrates aproveite todas as oportunidades, que mediaticamente lhe são oferecidas, para procurar reiterar a leitura que faz do processo que o envolve. Mesmo sem discutir o fundo da questão, fica a sensação de que a forma do seu discurso e o tom que regularmente utiliza dificilmente recuperarão, para o seu lado, qualquer pessoa que antes já não acreditasse nele.

quarta-feira, junho 15, 2022

Pois é!


Kai Ziehl

Então é assim: há as pessoas como eu e há quem saiba fotografar. Se a inveja fosse “uma cena que me assistisse”, estava furioso. Não sendo, estou apenas deliciado.

Popularidade e demagogia


Um dia de 1997, em Lisboa, durante uma reunião do conselho de ministros, António Guterres deu conta da surpresa que tinha tido, numa sua recente visita à Polónia, ao constatar que todos os seus interlocutores locais estavam convencidos de que Portugal iria ser o país que mais dificuldades iria criar aos futuros alargamentos da União Europeia. E, voltando-se para o secretário de Estado dos Assuntos Europeus que eu então era, e que ali estava ocasionalmente por qualquer razão de agenda, alertou: “Espero que, em Bruxelas, os nossos funcionários clarifiquem bem a nossa posição”. Aquela perceção não era apenas polaca: muitos dos países do centro e do leste europeu estavam sinceramente convencidos que iriam encontrar em nós um grande obstáculo à sua pretensão de se juntarem à União.

A lógica dos interesses apontava, de facto, para que Portugal tivesse uma posição muito defensiva no tocante ao efeito, quer em matéria de fundos, quem em termos de vantagens competitivas, que a presença de um elevado número de novos parceiros iria implicar. Mas António Guterres via um pouco mais longe: o alargamento era um irrecusável objetivo estratégico da Europa “deste lado”, o qual, desde o final da Guerra Fria, entendia como imperativo conseguir dar resposta ao anseio de muitos Estados “do outro lado”, recém-libertos da tutela soviética, que pretendiam ancorar a sua liberdade e o seu desenvolvimento no quadro de um projeto que, durante décadas, lhes fora mostrado como paradigma de modelo exemplar de cooperação e de integração económica e, cada vez mais, de cidadania e de valores comuns, que os “critérios de Copenhague” haviam entretanto consensualizado.

O pragmatismo não é contraditório com a ética. Portugal não poderia recusar a outros aquilo que funcionara como reforço essencial do seu próprio projeto democrático e de prosperidade, para além de que a pressão para a inclusão dos novos Estados iria, com toda a evidência, tornar-se crescente. A política europeia de Portugal, com Guterres, tendo os interesses portugueses no seu centro, tinha como filosofia essencial a partilha sincera dos interesses europeus. No tocante ao alargamento, até ao termo do processo, o nosso comportamento iria ser exemplar - e os então candidatos são hoje, estou certo, as nossas melhores testemunhas.

Vem isto a propósito da Ucrânia. Na sequência da agressão russa, Portugal, em uníssono, manifestou uma reação de repúdio a esse inaceitável atentado à soberania de um Estado independente e com fronteiras reconhecidas, dando provas concretas de solidariedade e de empenhamento, em todas as instâncias e por todos os meios que pôde colocar à disposição, desde logo na oferta de grande apoio aos refugiados. Mas, igualmente, demonstrou-o na partilha plena das decisões no seio da NATO, da União Europeia ou nas Nações Unidas. Bem como na disponibilidade de meios materiais de diversa muito natureza. Sempre achei ridículo entrarmos no “campeonato” do grau de retórica adjetivada para denunciar a invasão e criticar Moscovo, mas, até aí, o governo português, ao que me lembro, não ficou mal “classificado”.

Surgiu, entretanto, a questão de uma possível adesão da Ucrânia à União Europeia. Relevando de um lamentável desconhecimento da realidade, logo apareceram, em algumas capitais europeias, os defensores de um “fast-track”, de uma espécie de “via verde”, que permitisse que Kiev, saltando etapas, passasse, a breve prazo, a membro pleno da União. Entre nós, no comentário impressionista, emergiram também, por mimetismo, os promotores zelosos da ideia. Estar com o “l’air du temps” faz parte de um certo estilo de “informação”.

António Costa, desde o primeiro momento, teve a coragem de “deitar água na fervura” neste voluntarismo insensato, não se intimidando em dizer a verdade. Disse-a mesmo em Kiev, em face do presidente ucraniano, para óbvio desgosto deste. Ora um processo de adesão desta natureza não é equivalente à emissão de uma cartão de sócio de um clube, em que os membros decidem dispensar de jóia e de alguns requisitos um novo candidato que se considera desejável que possa partilhar, com rapidez, o nosso convívio. Ser parte da União Europeia é ter não apenas a vontade, mas também as plenas condições, para poder cumprir com o cada vez mais exigente acervo legislativo, até para proteção do país candidato face à feroz competição que a exposição ao mercado interno comunitário implicará.

Além disso, que já não é pouco, alguma experiência mais recente, com as derivas negativas de alguns Estados, prova que é imperativo reforçar as exigências no tocante à observância estrita das regras democráticas e do pluripartidarismo, da separação de poderes e do respeito pela independência da justiça, das regras gerais do Estado de direito, da proteção da comunicação social independente e do respeito pelos direitos das minorias. Alguém que surja a afirmar que a Ucrânia, mesmo antes de ter entrado no atual estado de guerra, cumpria um mínimo destes critérios, não pode ser levado a sério. Vou dizer isto, medindo bem as palavras: a Ucrânia está ainda muito longe de poder vir a ser um membro da União Europeia e, mais do que isso, não é ainda claro que tenha condições para o poder vir a ser algum dia. É impopular dizer isto? Talvez, mas eu digo. E é preciso que isto seja dito.

Mas não tem a Ucrânia o direito de entrar num caminho de aproximação às instituições comunitárias? Claro que sim e tem, exatamente por isso, o direito de apresentar o seu caso e de vê-lo devidamente apreciado. E, por essa razão, por simpatia com esse seu legítimo desejo, devem ser dados todos os passos que sejam possíveis nesse sentido. Mas sem quaisquer pressas, que possam ser lidas como podendo estar a “queimar etapas”, porque o ambiente emocional, que o horror da guerra nos possa e deva motivar, não nos deve fazer esquecer que há outros Estados que, desde há vários anos, com grandes esforços de adaptação interna das suas estruturas, iniciaram um caminho de aproximação às instituições comunitárias que está muito mais adiantado, o que pode e deve justificar a sua entrada mais rápida.

Imagino que por essa razão, na declaração que hoje fez ao “Financial Times”, António Costa deixou o que pode ser lido uma crítica implícita à atitude da presidente da Comissão Europeia, Ursula van der Leyen, que tem vindo a dar mostras de procurar um protagonismo institucional que, lamento ter de dizê-lo, não está a respeitar o equilíbrio dos tratados europeus. Tal como, aliás, acontece com a sua colega presidente do Parlamento europeu, a presidente da Comissão parece deliberadamente querer esquecer que quem decide sobre as adesões à União é o Conselho de Ministros e os parlamentos nacionais da totalidade dos atuais Estados membros. A Comissão faz as suas avaliações e análises, mas são os chefes de Estado e de governo quem tem a última palavra. Ao proceder como procede, ao “pôr o carro à frente dos bois”, a Van der Leyen deve ser dito que deve ter consciência de que está a acicatar a potencial conflitualidade entre os Estados mais vocais e entusiastas, por razões de proximidade estratégica, com as ambições maximalistas de Kiev, e outros, nos quais Portugal se insere, que têm uma leitura mais serena e equilibrada do problema, sem que, nem por isso, se considerem menos empenhados na defesa do caso ucraniano. Até por uma razão simples, embora quiçá menos popular: defender o interesse da Ucrânia é, também, dizer-lhe a verdade.

Mas António Costa disse mais. Deixou implícito, como já antes o tinha feito, o interesse em se estudar, como Emmanuel Macron havia sugerido e o bom senso parece recomendar, a instituição futura de um espaço institucional intermédio, entre o estatuto de Estado terceiro e o de membro de pleno direito, por forma a criar um tempo de aculturação e de transição que, precisamente, possa aferir, à medida dos progressos alcançados, da possibilidade de de Estado candidato vir a obter uma integração plena, antes da conclusão da negociação dos 35 exigentes capítulos temáticos para uma adesão plena. E o primeiro-ministro português disse, além disso, algo também da maior sensatez, o facto de ser importante que a União Europeia se concentre, por ora e essencialmente, naquele que é um desiderato comum, sem a menor sombra de dúvida, sem incorrer em riscos de divisão, entre todos os parceiros comunitários: promover uma forte e empenhada ação de ajuda económica à reconstrução do país, à reforma das suas infra-estruturas, afetadas pela guerra. Essa, além da paz, que não é chamada para aqui, é a prioridade.

Volto ao ponto por onde comecei. Portugal, ao longo da sua história de presença na vida política da construção europeia, sempre revelou o maior interesse em ver as fronteiras da Europa comunitária abertas a todos os Estados que, exclusivamente à luz dos seus próprios méritos, revelem condições para poderem constituir como um valor acrescentado à expansão do projeto de liberdade, paz e desenvolvimento que subscrevemos, em boa hora, fez precisamente ontem 37 anos.

Não fazemos nenhum favor a ninguém ao proceder assim. Estamos apenas a atuar como um país que, ao longo do seu tempo democrático e com escassos sobressaltos nos vários ciclos políticos, tem do seu papel no mundo uma perspetiva solidária, o que já é uma marca e um orgulho da sua política externa. E que, nesse domínio, não recebe lições de ninguém. Nem lições, nem pressões.

terça-feira, junho 14, 2022

Vergonha

Provavelmente, não deveria sugerir isto. Mas tenho a certeza que o país ficaria muito grato ao presidente da República se ele pudesse chamar a si, em articulação com o primeiro-ministro e com o líder da oposição, a questão do novo aeroporto. O que se está a passar na Portela é uma vergonha nacional, com um efeito na imagem do país e da "galinha dos ovos de ouro" que é o nosso turismo.

França - a instabilidade como cenário


Emmanuel Macron vai ter um segundo quinquenato muito difícil. O reinado solitário do seu partido quase unipessoal, La République en Marche (que passará a chamar-se Renaissance), acabou ontem. Tudo será muito diferente, no futuro. É claro que, entre as duas voltas - a primeira que ocorreu a 12 de junho e a segunda a 19 - podem acontecer várias coisas, num cenário político sempre muito dependente das perceções locais, onde a liberdade dos eleitores não se deixa condicionar pelos conselhos dos líderes partidários. O voto útil ou a “lógica republicana” podem, ou não, funcionar nesse próximo escrutínio.

Ainda não pode ser descartado, em definitivo, que venha a conseguir, apenas com os dois grupos seus aliados no seio da frente eleitoral Ensemble, uma maioria absoluta no parlamento. Este é, contudo, o cenário menos provável. Porém, ainda que tal ocorresse, seria sempre por uma ínfima diferença, pelo que o peso dos dois parceiros, o Horizonts (de Edouard Phillipe, o seu primeiro PM, nome a recordar para o período pós-Macron) e do MoDem (de François Bayrou, uma “velha raposa” do centrismo de direita) iria obrigatoriamente subir e, provavelmente, obrigar a uma nova remodelação governamental.

Se não vier a conseguir uma maioria absoluta, que é a perspetiva mais plausível, o presidente irá ter de pagar um ainda mais duro (e, por ora, imponderável) preço para conseguir que o seu governo possa vir a ter o apoio parlamentar do Les Républicans. Esta direita clássica nunca perdoará a Macron ele ser uma das razões do seu declínio (a outra razão é a “normalização” de Marine Le Pen). E, por isso, irá pedir um preço altíssimo para o apoiar, ainda que criticamente.

Com as mãos atadas no parlamento, os próximos cinco anos de Emmanuel Macron prometem ir ser um calvário, em termos de condições políticas para conseguir introduzir algumas reformas que a sobrevivência do sistema torna imperativas. Acresce que a “rua” não promete abrandar: os “gillets jaunes” podem regressar, porque a degradação económica das classes médias será acelerada pelos efeitos da inflação, da subida das taxas de juro e dos combustíveis, e as forças sindicais prometem já colocar a ferro e fogo o imenso setor público. E muitos trarão, de novo, a jogo a insegurança, as fronteiras, a precariedade, o aumento do custo geral de vida, o salário mínimo, a idade da reforma, etc.

Jean-Luc Mélenchon, o tribuno da esquerda, não vai conseguir ser primeiro-ministro. Mas há que reconhecer que soube bem cavalgar o descontentamento daqueles “enragés” que nada querem com a extrema-direita. Conseguiu assim federar, quiçá episodicamente, toda a esquerda relevante, sob a sigla NUPES (Nouvelle Union Populaire Écologique et Sociale), com vista a estas eleições legislativas. Por lá estão o La France Insoumise, do próprio Mélenchon, os ecologistas, os socialistas e os comunistas. Mas, nessa NUPES está também tudo e o seu contrário: quem é pelo projeto europeu e quem lhe contesta as regras financeiras e a preeminência do seu direito; quem aceita a pertença à NATO e quem é favorável à saída da França da organização, que acha ser uma mera arma do imperialismo americano; quem aceita a energia nuclear e quem se lhe opõe; e assim por diante.

Para o que importa, Mélenchon conseguiu titular um resultado que, não sendo inesperado face às sondagens, representa um importante salto face à soma daquilo que foi o peso relativo dessas formações nas anteriores eleições legislativas, há cinco anos. Esse crescimento pode ter como origem setores que então terão votado no partido de Macron, tendo-se entretanto desiludido, e, eventualmente, colhido mesmo alguns votos que a extrema-direita tinha captado. Mas tudo indica que terão sido os votantes de gerações mais novas que terão engrossado esta notável votação na NUPES. Os deputados que a NUPES vier a conseguir, no segundo turno a 19 de junho, serão a principal oposição na futura Assembleia Nacional, mas há que pensar que a natureza das suas diferentes componentes não garante que aí venham a ter um comportamento uniforme. Em todo o caso, a Assembleia Nacional vai ser uma tribuna onde a esquerda (mais ou menos radical) estará em força, como há muito não acontecia.

O Rassemblement National, de Marine Le Pen, perdeu muito eleitorado, em face daquele que ela própria havia obtido nas presidenciais. O seu resultado é um óbvio fracasso político, embora tudo indique que, pela primeira vez, possa vir a ter um grupo parlamentar com uma expressão razoável, num sistema eleitoral que, como é sabido, a não favorece. Pelo caminho, com um resultado muito medíocre, ficou o Reconquête, do seu “challenger” na extrema-direita, Éric Zemmour. O próprio líder não foi eleito e a única conquista do novo partido terá sido o ter montado uma rede de dimensão nacional, muito graças à expressão mediática do seu líder. Mas, para sobreviver, vai fazer uma travessia do deserto.

Bastante fraco foi o resultado do Les Républicans, um partido com vocação tradicional de poder, de origem gaullista, e que, não obstante manter ainda uma maioria e a presidência do Senado, e também uma forte expressão municipal e regional, revela uma imensa dificuldade em assumir-se como alternativa de governo à escala nacional. Há dez anos afastado do Eliseu e de uma maioria na câmara de deputados, o Les Républicans, em face da “moderação” de Le Pen, tem vindo a ficar num limbo político que não seduz o eleitorado. As suas caras são ainda as da velha política, todas, sem exceção, tributárias do tempo de um Sarkozy que já não conta para o seu futuro. O catastrófico resultado da sua candidata às últimas eleições presidenciais, Valérie Pécresse, marcou um ponto muito baixo na história recente do partido.

A V República francesa estará a chegar ao fim? O modelo constitucional em que assentava - um presidente legitimado pelo voto popular, apoiado por uma maioria parlamentar - está, mais do que nunca, em crise. É verdade que, no passado, já se tinham verificado ocasiões em que o ocupante do Eliseu teve, no Palais Bourbon, maiorias que o contrariavam. Porém, essa oposição processava-se em termos de contraste ideológico não radical, pelo que foi sempre possível à França política encontrar um meio termo institucional que, provocando algumas fricções internas, conseguia não afetar, por exemplo, a sua postura europeia e internacional. Ora uma coabitação entre Macron e Mélenchon é hoje impensável. Nem o próprio Mélenchon deve acreditar nela. Por isso, a pergunta é legítima: o que sairá daqui?

Com mais de metade do eleitorado a abster-se, com o partido que apoia o presidente esmagado entre dois radicalismos sem a menor ponte entre si - ou melhor, convergindo apenas na oposição a tudo quanto Macron representa e apresenta -, o futuro da França aponta para um inevitável longo período de instabilidade. Não são boas notícias para a Europa.

"Então e o ... ?"

Agora, parece que anda na moda. Fala-se ou escreve-se sobre um determinado assunto e é certo e sabido que aparece logo um fabiano a dizer: ...