quinta-feira, junho 30, 2022

Há 10 anos: Elvas Património Mundial


Aprendi que a arte da diplomacia é, muitas vezes, o saber aproveitar as oportunidades. 

A história que me proponho contar tem precisamente 10 anos. Foi no fim de junho de 2012, em São Petersburgo, na reunião anual do Comité do Património Mundial da UNESCO, organização onde eu era, desde janeiro desse ano, o embaixador português, acumulando com o cargo de embaixador em Paris.

Na agenda que o governo português de então me tinha encarregado de defender nessa sessão, que durou vários dias, havia um único ponto: garantir que o Comité acedia ao nosso pedido do envio de uma nova missão a Portugal, para avaliar se as obras da construção da barragem de Foz-Tua estavam conformes com o estatuto de Património Mundial do Alto-Douro Vinhateiro. Uma anterior missão da UNESCO suscitara essa dúvida e fizera recomendações que Portugal se comprometera a seguir. Nessa reunião na Rússia, depois de muito trabalho, ficou aprovada a ida de uma nova missão. 

Mas a minha tarefa em São Peterburgo não ia acabar aí. 

A cidade de Elvas tinha apresentado, tempos antes, um processo de classificação como Património Mundial, que envolvia a cidade e as suas fantásticas muralhas. 

Em Paris, o parecer da UNESCO fora, contudo, muito claro: a questão necessitava de mais algum tempo, havia pontos a corrigir, muito em especial algumas mudanças deveriam ter lugar antes de Elvas ser "elevada" pela organização ao desejado estatuto. 

Em Lisboa, a Comissão Nacional da UNESCO ecoava essas razões: o processo tinha ainda algumas falhas que tornavam muito pouco provável a classificação da cidade; tanto mais que, na mesma reunião, se ia discutir o caso do Douro, a que o governo dava elevada prioridade. Lisboa considerou assim que, nesse ano de 2012, o caso de Elvas não era prioritário no nosso esforço diplomático.

Coube-me a mim a ingrata tarefa de tentar dissuadir o presidente da Câmara de Elvas, num complexa e tensa conversa telefónica, da sua ideia de enviar a São Petersburgo uma numerosa delegação em apoio às pretensões de Elvas. Não foi fácil travá-lo! Cheguei a ameaçar com a não acreditação da deputação elvense! E pedi ao presidente Rondão Almeida que reduzisse a representação de Elvas a ... uma única pessoa!

Essa pessoa devia ter uma qualificação técnica para me ajudar, se acaso eu entendesse que havia alguma hipótese residual de explorar o assunto. Mas expliquei, bem explicado, que o caso de Elvas não estava nas nossas prioridades nesse ano, embora a experiência que essa pessoa pudesse vir a retirar da observação dos trabalhos do Comité lhe pudesse vir a ser muito útil... provavelmente no ano seguinte. Foi o bom e o bonito, mas tudo se fez como eu pedi.

Chegado a São Petersburgo, passei a totalidade dos primeiros dias a tratar do caso do Douro, como o governo insistentemente me pedia. Fi-lo quase sem abandonar as instalações da antiga Duma, que ainda mantinha a estrutura de madeira de que eu conhecia bem das fotografias em que Lenine surge a ali dirigir a revolta de 1917. O problema do Douro resolveu-se. 

E Elvas? Pelos corredores, andava o representante enviado por Elvas, o professor universitário Domingos Bucho, principal responsável pelo dossiê de candidatura da cidade a Património Mundial. Com a restante delegação já com o essencial da agenda concluído, os dois lugares da delegação portuguesa passaram a ser ocupados por mim e por ele. E foi assim que, durante horas e dias, vimos aprovados pelo Comité algumas candidaturas, rejeitadas outras, com Elvas a ir ficando para o fim.

O professor Domingos Bucho não se conformava que Elvas não tivesse uma "chance". A Comissão Nacional da UNESCO, cujos membros estavam em São Petersburgo, recomendava-me que não tentasse contrariar a vontade da organização, que abertamente era desfavorável à classificação das fortalezas da cidade. Mas, numa manifestação de confiança profissional, deram-me mãos livres para eu atuar como entendesse melhor - embora o tivesse de fazer por minha conta e risco... 

Com a passagem do tempo, fui-me convencendo que talvez valesse a pena fazer algumas "démarches", para medir o pulso ao Comité. Eu já os havia "explorado” até ao limite por virtude do Douro e, em alguns casos, a boa vontade dos meus colegas do Comité tinha sido inexcedível, pelo que voltar a pressioná-los era complicado. Ter um segundo “interesse nacional” aprovado na mesma sessão do Comité era pouco vulgar, seria quase um "milagre". 

Porém, a certa altura, tive a intuição de que valia a pena correr o risco de uma derrota. E, com o professor Domingos Bucho como suporte essencial, preparei uma abordagem tática.

Tudo passava por conseguir que me fosse dada a palavra, aquando da apresentação do caso pela UNESCO, contando depois com uma ou duas vozes no Comité, que ecoassem as nossas razões. E assim aconteceu. 

Uma responsável da UNESCO mostrou o caso de Elvas, explicou que havia "nove razões" (em especial três) pelas quais, infelizmente, a cidade não poderia ganhar o estatuto de Património Mundial nesse ano e preparava-se já para passar adiante e a outro caso quando um dos delegados, por mim previamente sensibilizado, inquiriu junto da mesa porque que razão não se pedia ao representante de Portugal para comentar o que fora dito. Portugal não era membro do Comité. Só podíamos falar se para tal fôssemos convidados.

A presidente da mesa, a embaixadora russa, anuiu e passou-me a palavra. Convém começar por dizer que a leitura do relatório (negativo) havia sido acompanhada por fotografias da cidade e das suas muralhas, que haviam sido por nós fornecidas, e que tinham uma qualidade e uma beleza impressionante. 

Quando tomei a palavra (o YouTube mostra, “ao vivo e a cores”, essa parte da sessão), bem habilitado tecnicamente pelo professor Domingos Bucho, procurei "desconstruir" algumas dessas observações, os três pontos que considerei "menores" e que Portugal se comprometia a resolver rapidamente. 

Amigos no Comité, previamente apalavrados, fizeram coro com o que eu disse e um deles, o delegado do Japão, um embaixador e um país com peso dentro da UNESCO, perguntou por que razão o caso de Elvas não ficava resolvido logo ali. Se o governo português, como eu afirmara, se comprometia a resolver os pontos pendentes, essa seria a solução mais sensata. O meu colega francês viria a reforçar esse pedido. Os colegas do Senegal, da Colômbia e do México vieram em nossa ajuda.

A situação tinha, contudo, foros de ineditismo. Não havia nenhum "draft" de Resolução preparado para ser votado, condição "sine qua non" para poder haver uma decisão do Comité. A presidente russa da sessão queria ser simpática connosco, mas não sabia como resolver a questão. Alguém sugeriu que se improvisasse uma Resolução. Vi a fúria na cara dos representantes da UNESCO, que pressentiram o terreno a fugir-lhe por debaixo dos pés: para eles, Elvas deveria, inexoravelmente, passar para o ano seguinte.

Foi então que a "rapporteur" (não sei se se diz "rapporteuse" ou "rapportrice"...) tomou a palavra e disse que, uns anos antes, tinha havido um caso similar e tinha-se improvisado um projeto de Resolução. E, para grande surpresa de todos, ela própria entregou à presidente da sessão um projeto de texto, rapidamente redigido.

(Faço aqui um parêntesis para contar que, na véspera, à saída da sessão, eu havia dito àquela simpática jovem costa-riquenha: "Parabéns! Tem feito um trabalho notável. Já chefiei comités na ONU e, devo confessar-lhe, nunca vi alguém fazer de "rapporteur" com a qualidade com que você o faz". Disse-lhe isso sem o menor pressentimento de ela nos pudesse vir a ser útil, apenas num elogio profissional muito sincero. Mas não duvido que possa ter criado uma boa vontade que nos iria ser inesperadamente útil). 

A sala estava suspensa, os responsáveis da UNESCO, que haviam perdido a questão de mão, estavam a "rezar" para que algum dos 21 delegados suscitasse uma objeção que pudesse contrariar aquela deriva. Ninguém o fez, nem mesmo a delegada alemã, que muito fundamentalista se tinha mostrado no caso do Douro, talvez travada por essa mesma razão. E, 30 segundos depois, por unanimidade do Comité, Elvas passava a ser Património Mundial!

O resto já se presume. Dei um abraço ao professor Domingos Bucho, muitos diplomatas pela sala vieram cumprimentar-nos, e a delegação portuguesa foi comemorar. 

Em Elvas, a cidade entrou em merecida festa, com foguetório pela noite dentro. Menos de um ano depois, por lá fui, com o professor Domingos Bucho, receber a medalha de ouro da cidade, enterrando definitivamente o "machado de guerra" com o presidente Rondão Almeida. 

No dia de hoje, Elvas pode comemorar uma década de Património Mundial.

1 comentário:

Portugalredecouvertes disse...

Sr. Embaixador,
È muito prazeroso quando as boas energias prevalecem sobre algumas animosidades que se adivinhavam/adivinham!
É bom verificar que Portugal têm uma boa lista de locais classificados Património Mundial pela Unesco, cujo processo lhes garante/garantirá a interessante proteção desse património material e imaterial de relevância histórica e cultural,
É também interessante verificar que bastantes cidades "portuguesas" do Brasil, todas elas muito lindas e bem conservadas (é fácil de visualizar pelo Youtube), construídas durante o período colonial, nos séculos XVI a XVIII, foram também inscritas no Património Mundial pela Unesco,
- Ouro Preto
- Salvador
- Diamantina
- Paraty
- Olinda
- São Luís do Maranhão
- Goiás
poderá haver mais, tirei estes nomes da lista de um site brasileiro!

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...