Há dias, como toda a gente, vi na comunicação social o anúncio da condenação de Nicolas Sarkozy. Outros processos correm contra ele, pelo que o antigo presidente francês não vai ter uma vida fácil, nos próximos anos. Lembrei-me então de um episódio ocorrido com ele.
Numa manhã de 2012, o presidente Sarkozy fazia um discurso num determinado local, nos arredores de Paris, para o qual o corpo diplomático (ou só alguns embaixadores, já não recordo) havia sido convocado. Apenas me lembro de que era um evento de natureza económica.
À entrada, estive uns minutos, de pé, à conversa sobre nada, com um membro do governo francês, a encher o tempo que antecedia a intervenção do presidente. A certa altura, Sarkozy entrou na sala e subiu, rapidamente, ao palanque. Toda a gente se sentou. De imediato, vi-me colocado na primeira fila do auditório, quase ao centro da cena.
Fiz um esgar de embaraço para a pessoa do protocolo que, à distância, comandava a coreografia, mas este encolheu, sorridente, os ombros, como que a dizer “deixe-se ficar por aí!”. E por ali fiquei eu, “sem saber ler nem escrever”, como se dizia na minha terra para os apanhados em ocasiões com que tinham pouco a ver. O meu lugar de regra seria bem lá para o meio da sala.
Por uma qualquer razão, tinha dormido muito mal na noite anterior. No carro, da residência da embaixada até ao local, já tinha passado “pelas brasas”, mas estas não se tinham extinguido por completo.
Sarkozy não costuma ser um orador chato. Nervoso, saltitante, enfático, olhá-lo na ação oferece sempre um lado de espetáculo. E eu, que nunca lhe achei a menor graça política, tinha e tenho um fascínio pelas suas “performances”. E já tinha assistido a algumas bem divertidas, até em contexto de reuniões reservadas, que a deontologia me obriga a guardar para sempre.
Nessa manhã, porém, a minha capacidade de atenção não rimava com o discurso do presidente. De quando em quando, dei comigo a cerrar os olhos, com a lenga-lenga da oração política a embalar-me os ouvidos. Estava desfeito de cansaço e, por muito que tentasse, não conseguia disfarçá-lo.
Julgo que terei começado a fazer o que toda a gente faz nessas circunstâncias, para conseguir despertar-me: mudar as pernas de posição, ajustar-me na cadeira e, o que é um clássico, pôr a mão em frente aos olhos, a dar um ar de reflexão.
Mas a pulsão para o sono revelava-se imparável. De quando em quando, lá olhava para o orador. Mas as minhas pálpebras continuavam declinantes, sentia a cabeça a pingar e tinha aquela espécie de sobressaltos nervosos espevitantes, como se tivesse sido atingido por um pequeno choque elétrico. Já não sabia o que havia de fazer! Não conseguia escapar à sonolência.
Foi então que algo me inquietou, ainda mais: pareceu-me que Sarkozy olhava regularmente para mim! Fixava-me, com aquele fácies sério, grave, “excessivement grave”, expressão que o meu colega Steinbroken crismou, para outras situações, nas noites do Ramalhete, ali às Janelas Verdes.
Com o debitar do discurso, e porque eu estava quase em frente a ele, fiquei com a ideia de que o seu olhar se concentrava, com cada vez mais regularidade, exatamente em mim. Pior: sentia que havia já nessa mirada uma censura, uma personalização severa de desagrado. Seria mesmo pela minha sonolência? Estaria ele a dar conta de que eu estava prestes a mergulhar no sono? Eu, sem êxito, tentava disfarçar.
Nos anos anteriores, tinha estado com Sarkozy em várias ocasiões, mas quase não tínhamos trocado palavras. Tinha-lhe apresentado as cartas credenciais, como tinha acontecido com dezenas de embaixadores. Tinha assistido, numa posição secundária, a algumas reuniões com ele, com dois primeiros-ministros portugueses. Ele deve ter-me dito: “Ça va, monsieur l’Ambassadeur? e eu devo ter “respondido”: “Monsieur le Président!”, sem uma palavra mais, porque é assim que as regras obrigam.
Conhecia ele a minha cara? Duvido. Ou melhor, sim e não. Ele sabia, pela certa, que me tinha visto algures. Se me encontrasse ao lado de um primeiro-ministro português, deduziria que eu representava Portugal por ali. Mas, se me encontrasse na porta do Flore ou à entrada da Lipp, não teria a menor ideia quem eu era.
Sarkozy faz parte daquele género de políticos para quem os diplomatas são figuras inexistentes, constituindo apenas parte do cenário das coisas oficiais. Constatei isso em diversas ocasiões. E, lendo-o, mais tarde, confirmei ser essa a sua postura. Nada que seja incomum na vida internacional, diga-se. Nem sequer criticável, convém notar. Como dizia um velho embaixador, os diplomatas são “expendable”.
Perante o que me parecia ser o olhar fixo que Sarkozy mantinha em mim, passei do embaraço ao sentimento de culpa. Ali estava o chefe "do" Estado (nós, por cá, dizemos sempre chefe “de” Estado, mas os franceses não) a perorar coisas definitivas e, à frente dele, alguém caía de sono, se calhar, de tédio.
E era o embaixador português! Nessas ocasiões, passa-nos pela cabeça que as pessoas sabem quem nós somos: logo o embaixador de Portugal! De Portugal, do país que ali tinha uma vasta comunidade, que passava o tempo “a pedir batatinhas” à França para ajudar a convencer a Europa, nas suas trapalhadas financeiras. Ia ser bonito!
Passei ao estado de aflição. Não me conseguia libertar do sono, por muito que espetasse as unhas de uma mão na outra. O olhos fechavam-se, esperava (mas como podia ter a certeza?) não ressonar ou emitir ruídos de dimensão equivalente, nem ousava olhar de viés o ministro que, à minha ilharga, fora responsável por aquele entorse ao protocolo. Que eu, afinal, “agradecia” assim, adormecendo perante a doutrina emitida pelo mais alto responsável da nação francesa.
E lá me ia tentando eu soerguer do adormecimento físico, procurando olhar nos olhos um Sarkozy que, agora sim, parecia fuzilar-me com a vista. E que olhar tem Sarkozy, quando dá mostras de ira!
Comecei a imaginar que as relações luso-francesas poderiam levar um abalo. Não digo sofrer uma quarta “invasão francesa”, mas não excluía uma retaliaçãozeca qualquer, num contrato que necessitasse do aval político do Eliseu.
O que uma noite mal dormida, como o bater de asas da tal borboleta da história climática, poderia desencadear! Por cólera, por raiva e, no fundo, apenas por sono.
Eu já tinha tido, na vida, duas experiências trágicas nessa matéria.
A primeira, em 1969, num dia em que Adriano Moreira convidou Gilberto Freire (esse mesmo, o da “Casa Grande e Senzala”!) para ir falar ao ISCSP, na Junqueira. Por mais esforços que fizesse, mesmo com cotoveladas do meu colega Hermano Carmo, não consegui evitar adormecer, na primeira fila do anfiteatro, durante a palestra de um dos mais eminentes intelectuais brasileiros no século XX. Há meio século que trago esta angústia “atravessada”. Tenho mesmo uma fotografia desse momento. Ainda acordado, porém.
A segunda, confesso, é bastante mais comprometedora. Fazia parte de um painel, com três outros oradores, num local que nem ouso revelar. O tema devia ser a Europa ou qualquer coisa de internacional, porque é sobre isso, para além da gastronomia, que alguém ainda quer ouvir-me. A cena do palco incluía uns sofás, num dos quais me enterrei. E sobreveio-me, logo, um sono de morte. À minha frente, no anfiteatro, mais de uma centena de pessoas. E eu, progressivamente, a esvair-me em sonolência. Os meus colegas de painel a dizerem coisas inteligentes e eu a dormir sobre elas. Até hoje me pergunto o que terei dito. Será que também contribuí para a assistência dormir? Que embaraço!
Voltemos a Sarkozy. Imaginei que, na semana seguinte, em Bruxelas, num Conselho Europeu qualquer, num daqueles momentos televisionados em que os líderes se tocam nos braços, o “petit Nicolas” (como o desenho, “avant la lettre”, o tinha crismado) agarraria o fato de Passos Coelho, dizendo-lhe: “Alors, Pedrô! Ton ambassadeur à Paris, j’ai remarqué qu’il dort quand je parle!”
E já antevia a cara do ocupante de São Bento, a ver a réstia da boa vontade de Paris a esvair-se pela valeta europeia, por culpa de um diplomata a cair de sono, que passara uma noite sabe-se lá onde, logo ele, um tipo que tinha a mania de pôr no currículo um passado fardado de “homem sem sono”.
Não fora a minha reforma aproximar-se inexoravelmente e já me estava a ver a ser chamado ao gabinete azulejado do “terceiro andar” das Necessidades, com Paulo Portas, a dizer-me, entre a audiência a um sheikh árabe e outra a um amigo de Rumsfeld: “Francisco, o governo acha que você tem o perfil certo para ir abrir a nossa embaixada em Ouagadougou. Mas pode escolher Ulan-Bator, se achar melhor”.
Estaria eu a sonhar com esses pesadelos, quando o discurso de Sarkozy acabou. Toda a sala se levantou. Eu acordei ao som das palmas, também das minhas, claro, com que tentei espantar o sono e perdoar-me. O ministro francês, que tinha estado ao meu lado, dando ares de não ter dado pelo meu declinar de atenção, cumprimentou-me, sorridente, e saiu disparado atrás do chefe.
Todos saímos para a rua. O ar fresco fez-me bem. Até à culpa. Sabia lá Sarkozy quem eu era!