segunda-feira, março 01, 2021

Memória da política

Acabo de saber que saiu um livro sobre as relações entre ministros e secretários de Estado, que assentará no estudo dos fatores de conflito entre essas duas categorias de membros de governo. Estou com alguma curiosidade em lê-lo, confesso.

O livro cobre um período posterior àquele em que eu próprio passei por dois sucessivos governos, exercendo, por mais de cinco anos, as funções de secretário de Estado dos Assuntos Europeus, quando Jaime Gama era ministro dos Negócios Estrangeiros.

A política também é feita de “petite histoire” e, por vezes, acabamos por ser envolvidos nela, queiramos ou não. Comigo isso também aconteceu. Ao longo daquele relativamente longo período de governo, em especial nos últimos anos, correu um persistente boato, com ecos na comunicação social, de que haveria divergências, e até conflitos, entre o ministro e eu. Em algumas ocasiões foi-me colocada a questão, não sabendo se alguém a suscitou alguma vez a Jaime Gama. Pude constatar, aliás, que algumas pessoas se compraziam em difundir o rumor, como se o quisessem consagrar como um facto.

Esta semana, passam precisamente 20 anos - caramba, já! - desde a data em que deixei funções políticas, na opção que então tomei de regressar à minha carreira profissional de base. A minha saída do governo havia sido programada com quase um ano de antecedência, entre mim e o ministro, com conhecimento do primeiro-ministro António Guterres, e teve lugar depois de eu ter deixado concluídas algumas tarefas que tinha a meu cargo, no âmbito europeu, que se considerou que era importante ficarem completas - a principal das quais era a conclusão da negociação do Tratado de Nice. 

Tudo correu sem o menor drama, sem a menor pressa, em total e completo entendimento. Por coincidência, a tragédia de Entre-os-Rios fez com que a minha saída acabasse por ser simultânea com a de Jorge Coelho, com quem, curiosamente, eu entrara no mesmo dia no governo.

Naqueles bem mais de cinco anos, posso hoje revelar, nunca tive, que me recorde, uma única discussão com Jaime Gama, nunca com ele tive a menor divergência de natureza política - pelos vistos, o mote do livro agora publicado. Em duas ou três ocasiões, mas apenas em questões práticas e nunca em qualquer tema de fundo, teremos abordado algum assunto por prismas diferentes, com toda a serenidade, tendo rapidamente chegado a uma conclusão comum, confortável para ambos. O que permitiu, aliás, e constato isso com muito agrado, que até hoje continuemos a ser bons amigos. 

O publicação do tal livro e a coincidência de passarem exatamente duas décadas desde o dia em que deixei a política ativa dão-me um belo ensejo de deixar isto aqui escrito e bem clarificado. Em definitivo, “for the record”, sem aguardar hipotéticas memórias encadernadas.

4 comentários:

Tony disse...

Sr. Embaixador. Dada a sua longa e profícua experiência, bem como, altíssimas capacidades pessoais, palpita-me, (logo veremos) que ainda o iremos ver em Ministro dos Negócios Estrangeiros, de um futuro governo e desta feita, com maioria absoluta, por causa das coisas.

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Tony. A política ficou (muito) lá atrás. Aos 73 anos, quero sopas & descanso e bons blogues... Abraço

maitemachado59 disse...

Sopas e descanso? Com toda a sua "extra mural" actividade?

Sopas, va la, omo bom gastronomo, mas descanso...

maitemachado59

Zé Herculano disse...

Fala do livro do Prof. Pedro Silveira?
Abraço.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...