sexta-feira, fevereiro 26, 2021

Não são saudades, é pena!


A casa tem hoje este aspeto desolador. Passei por lá, há poucas horas. Ninguém dirá, ao ver aquela ruína, que ali foi um dos restaurantes populares mais em moda na noite lisboeta.

No Painel de Alcântara, de início uma única sala, com uma cozinha muito simples à entrada, servia-se excelente comida. Na última metade dos anos 80, comecei a ser um cliente fiel da casa. E, até ao fim, continuei a sê-lo.

O Painel, nome que imagino derivado de um painel de azulejos com uma imagem de Lisboa que existia numa parede, onde a mão distraída do mestre-de-obras tinha cometido o lapso de colocar quatro azulejos ao contrário, dando um toque surreal ao conjunto, preponderava o meu amigo Cardoso.

Era um jovem nervoso, trabalhador incansável, que ia às cinco da manhã para a praça, com uma imensa atenção aos clientes. Na cozinha inicial esteve o Zé, que um dia foi chamado para a tropa e a quem uma moscambilha inocente conseguiu atrasar o recrutamento; ingrato, logo que liberto dessas lides, zarpou para outra casa, para imenso desgosto de quem usufruía da sua arte. No balcão das contas andava a Zezinha, uma jovem simpática, companheira do Cardoso, que um dia se cansou daquela vida, arranjou um emprego e deixou o homem inconsolável. Lia-se-lhe isso na cara.

O Cardoso teve muito sucesso com o Painel. Alargou a casa, comprou o espaço ao lado, ganhou fama e, sempre, mais clientes. Ali se ouviram fados! Chegou a ser difícil reservar mesa, mas eu nunca me pude queixar! O Cardoso, a certo passo, foi obrigado a ir ele próprio para a cozinha. Para assegurar a qualidade de uma oferta que nunca desiludiu. Viamo-lo desfazer-se em trabalho, com um ar cada vez mais cansado, magro e, sempre, agitado. Ganhou bom dinheiro, chamou irmãos para trabalhar com ele. Meteu-se em negócios e abriu outro espaço, ali perto. Também passei por lá. Mas algo não correu bem. 

Nas minhas passagens por Lisboa, nunca deixei de o visitar, de lhe dar um abraço, de amizade e de gratidão, pela imensa simpatia de que fui feliz destinatário. Via-o nervoso, cada vez mais nervoso. E triste. Entretanto, tinha casado, teve um acidente, esteve doente, a vida pessoal correu-lhe mal. O Painel, um dia, fechou e o meu amigo Cardoso desapareceu (*), dizem-me, vivendo lá para a Beira. 

As coisas não duram sempre, claro. Mas damos mais conta disso quando gostamos das coisas e das pessoas. Não são saudades, é pena!


(*) Depois de ter publicado este texto, soube que Adelino Cardoso morreu, em 2019.

1 comentário:

Flor disse...

Vivi com os meus pais nessa rua quase 20 anos. Há um tempo passei por lá e toda a rua estava uma lástima. Deitaram prédios abaixo, os terrenos cheios de entulho, um horror. Saí de lá triste. A Câmara esqueceu-se de Alcântara. Penso que ainda estará tudo na mesma. Lembro-me desse prédio. Quando eu era pequena lembro-me desse restaurante que era uma taberna/casa de pasto na década de 50/60.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...