quarta-feira, fevereiro 24, 2021

23- F


Recordo-me de que o seu nome era Flavia. O marido era herdeiro de uma família ligada a uma das mais conhecidas bebidas de Espanha. Era um casal divertido, extremamente agradável. Tínhamo-nos conhecido, dias antes, através do meu colega da embaixada espanhola em Oslo, Rafael (Rafa) Conde, em casa de quem passavam uns dias de férias.

Havíamos convidado os dois casais espanhóis para jantar, nessa noite, em nossa casa. Era o dia 23 de fevereiro de 1981. Os espanhóis, que gostam de crismar as datas com peso histórico, haveriam de chamar a esse dia o 23-F.

Pela tarde, chegaram notícias: um golpe militar estava em curso em Espanha. Hesitei em falar do assunto ao Rafa. Acabou por ser ele a ligar-me: “Já sabes o que se passa? Mantemos o jantar?”. Eu ri-me e disse-lhe: “Desde que não venhas fardado!” Ele esclareceu: “Sabes que os nossos convidados são ‘muy de derechas’!” Eu não era ingénuo: já tinha dado conta. E acrescentou: “A Flavia é sobrinha daquele que parece ser o chefe dos golpistas, o general Miláns del Bosch!”. Aí arrematei: “Não há problema! Traz ‘los fachos’ e depois logo se vê!”

A alegria da Flavia, naquela noite, era bem menos transbordante do que era seu costume. Pediu-nos, por duas ou três vezes, para poder telefonar para Madrid. O Rafa piscava-me o olho, com uma atitude contida, perante a coreografia que interrompia o jantar. Sempre que a Flavia regressava do hall onde estava o telefone, depois da consulta à família em sobressalto armado, perante um nosso “entonces?” mais curioso do que compungido, sentíamo-la cada vez mais chorosa.

Depois, na sala, os únicos canais de televisão que tínhamos, noruegueses e suecos, ainda davam um relato parco da cena nas Cortes. A heroicidade do trio - Mellado, Suarez e Carrillo - que não obedeceu ao berro fascista “Todos al suelo!”, do patético Tejero, só a viemos a saber muito depois.

A simpática Flavia viveu o resto da noite preocupada com o destino do tio. Eu, discreto, até à sua saída, como a educação de um anfitrião recomendava, aguentei com garbo a alegria que sentia com a prevista derrota daquele golpe de franquismo tardio. A certa altura, num instante de cumplicidade, atravessando a sala à distância, com um discreto esgar sorridente, eu e o Rafa tínhamos aproveitado para fazer um ibérico, democrático e silencioso brinde.

Só depois de todos os convidados saírem é que, já em família, se bebeu um copo à liberdade em Espanha. Tive pena, confesso, de não ter então à mão um álcool da produção do marido da Flavia...

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