Com uma carreira na função pública de 42 anos, esteve colocado em Oslo, Luanda, Londres, e foi embaixador nas Nações Unidas (Nova Iorque), OSCE (Viena), Brasil, França e UNESCO (Paris). Hoje exerce funções de administração e consultoria em várias empresas do setor privado e não se imagina a viver fora de Lisboa.
Durante a sua vida visitou mais de cem países e conheceu figuras decisivas do nosso tempo, como Bill e Hillary Clinton, Yitzhak Rabin e Yasser Arafat, Chirac e Sarkozy, Gorbachov e o atual ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov. Mas quem mais o impressionou foi Mário Soares – «estava à vontade em todo o lado, parecia aqueles velhos diplomatas que não se assustam com nada» – e, a nível internacional, Lula da Silva.
Alguns desses encontros, entre outros momentos e memórias, estão registados no livro Antes que me Esqueça (ed. D. Quixote), ponto de partida para uma conversa à volta da diplomacia e das suas circunstâncias.
Conheceu muita gente importante. Chegou a conhecer o Kissinger, que morreu recentemente?
Não conheci o Kissinger, mas todos nós no fundo somos um pouco clientes do seu realismo cínico. Se olharmos para os tempos da história a que esteve ligado, verificamos que há momentos dramáticos para muitos povos em que ele teve um papel decisivo. Estamo-nos a lembrar das ditaduras latino-americanas, do sudeste asiático, etc. Em relação a Portugal, Kissinger tem dois tempos. Um é o momento em que ele é convencido pelo Carlucci [embaixador dos EUA em Portugal entre 1975 e 1978] de que afinal Portugal não estava perdido nas mãos do comunismo internacional e que era possível encontrar uma solução através de Mário Soares e dos moderados dessa altura. Outro, talvez mais trágico, é o momento em que Kissinger vai com Gerald Ford à Indonésia e no dia seguinte, ou 48 horas depois, devido a uma luz verde dada por Washington, há a invasão indonésia. É nessas conversas que os indonésios ganham a consciência de que os americanos não se oporiam a uma invasão, na lógica da Guerra Fria. A eventualidade de Timor-Leste cair nas mãos do comunismo internacional levava a que Kissinger tivesse a noção de que valia tudo. No fundo não é muito diferente da velha lógica do Roosevelt, que a propósito creio que do Somosa, na Guatemala (*erro: era Nicarágua), dizia – e temos de fazer a tradução com cuidado: ‘He’s a son of a bitch, but he’s our son of a bitch’ [‘Ele é um filho da mãe, mas é o nosso filho da mãe’] Na Guerra Fria é quem está do nosso lado que conta, e ele põe um bocadinho os princípios de parte. Nesta última fase, o momento mais complexo terá sido quando, no início da guerra da Ucrânia, em mais um acesso de realismo, ele terá dito que era preciso fazer um compromisso que passasse eventualmente por algum trade-off relativamente ao território. Mas é um personagem extraordinariamente interessante da política americana. E devo dizer que ele pensa muito bem, escreve muito bem, é delicioso lê-lo. Mas nunca o vi.
Falemos então um pouco da sua experiência. O seu primeiro posto foi…
Na Noruega, em Oslo, em 79. Entrei para a carreira diplomática um pouco por acaso. Era funcionário da Caixa Geral de Depósitos, estava no meio do serviço militar, e fiz concurso…
Atirou o barro à parede a ver se pegava?
Já tenho falado com a minha mulher sobre isso. Eu já escrevia sobre questões internacionais n’A Voz de Trás-os-Montes, em Vila Real, aos 18, 19 anos. Ainda outro dia encontrei esses textos. E o meu pai era um francófilo e assinante do L’Express. Depois, entre um dos meus tios e o meu avô havia muita conversa sobre política internacional, virada para a guerra. E eu fui-me interessando. Havia concurso e pensei: ‘Eu sou capaz de fazer aquilo’. Há um elemento diletante nisto. Na altura, de manhã fazia umas horas numa empresa de publicidade e trabalhava comigo um personagem que chegou a ser famoso nos media portugueses, o locutor Pedro Moutinho. Quando eu lhe disse que ia fazer concurso para o Ministério [dos Negócios Estrangeiros], o Pedro disse: ‘Ó Francisco, você é de famílias com posses?’. E eu disse: ‘Não, eu vivo do meu ordenado’. ‘Então não pode ir para o Ministério. O Ministério é só para gente rica’. A verdade é que o meu salário, quando eu entrei, era mais baixo do que o que eu tinha na Caixa Geral de Depósitos. Portanto devo ter feito uma opção algo lúdica, no sentido de ‘deixa experimentar se sou capaz’. E devo dizer que os primeiros tempos não foram fáceis.
Porquê?
Quando entrei em 1975 o Ministério era uma casa basicamente conservadora. Mas ao mesmo tempo era uma casa muito liberal – talvez porque as pessoas viajem muito, tinha um grande cosmopolitismo. Eu tinha estado no MFA, tinha estado muito envolvido politicamente e com uma posição bastante radical. Andava com uma bigodaça e um cabelo imenso e as pessoas devem ter pensado: ‘Este tipo não está bem aqui’. Mas arranjei uma maneira de escapar: trabalhava muito e, sem modéstia, acho que trabalhava bem. Foi assim que eu subi à corda.
Foi assimilado?
Fui assimilado, numa casa que à partida não era a minha – o meu pai era gerente da Caixa Geral de Depósitos em Vila Real e eu vim estudar para Lisboa, portanto, não tenho ligações familiares nem sociais…
Porque existem linhagens no Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Existiam mais no passado. E acho absolutamente normal que o filho de um diplomata tenha a tentação de seguir a carreira. Ainda hoje há muitos filhos de diplomatas na carreira e têm feito ótimas carreiras. Mas eu diria que o concurso de 1975, aquele em que eu entro – e o primeiro em que entram mulheres –, é o momento da abertura social do Ministério. Não é que não houvesse já pessoas de níveis sociais diferentes. Mas eu diria que um certo eixo Lisboa-Cascais, e certas famílias de uma aristocracia às vezes já um bocadinho erodida, predominavam no Ministério. Eu vinha com uma marca, que nunca procurei iludir, de esquerda. E a esquerda não é o território ideológico natural do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Mesmo hoje, penso eu.
Então vai para Oslo.
Vou para Oslo, depois vou para Luanda.
Geograficamente não é nos antípodas, mas em termos civilizacionais…
Oslo tinha sido um banho de civilização. Dali parto para Luanda. Luanda com recolher obrigatório, com os hotéis a não funcionarem, não havia restaurantes, não havia lojas, não havia nada. A minha casa em Luanda era muito fraca, a vida era uma complicação. Mas eu e a minha mulher fomos extremamente felizes em Angola. Se calhar só tenho esta perspectiva agora, mas foi muito enriquecedor também em termos de nos dar um banho de realismo. E esse realismo tem uma dimensão política, isto é, nós percebemos que as coisas não são bem como se pintam. Por essa altura, ou uns tempos antes, entre os comunistas, apesar das divisões – os que eram favoráveis à União Soviética e ao PCP, os que eram favoráveis aos movimentos maoístas, etc. – havia uma coisa que estava numa espécie de Olimpo, que eram os movimentos de libertação. E justificava-se até muitas coisas que corriam mal por estarem no princípio.
E percebeu que afinal não era bem assim? Perdeu essa ingenuidade?
Quatro anos de Luanda ajudam-nos a pôr os pés no chão. E ajudam-nos a perceber que essa tal ingenuidade tem que desaparecer. E devo dizer que estes banhos – aí no livro conto também uma viagem à União Soviética, a Ialta, com a minha mulher, nos anos 80 – são momentos de confronto com um mundo… Eu nunca fui convidado para o PCP, talvez as pessoas achassem que não tinha vocação de seguidismo. Mas fez-me muito bem ir a Berlim Leste em 79, fez-me muito bem ir a Ialta em 80. Você tem um confronto com uma sociedade em que, intimamente, diz: ‘Eu não quero viver numa coisa parecida com isto’.
É uma vacina?
E, passando para Angola, é a dose de reforço da vacina. É o momento em que, mesmo aqueles que vêm de uma tradição marxista, como era o meu caso, de repente têm uma espécie de reconversão, no sentido de dizer: ‘Afinal, com todos os seus defeitos, a democracia burguesa é o sítio onde eu me sinto bem a viver’. Depois pode estar mais à esquerda ou mais à direita. Mas esta noção de poder dizer o que lhe apetece, de poder escrever à vontade, de poder sair à vontade, isto é uma coisa que não tem preço. Aliás, a gente olha agora para o mundo e percebe que esse é o lado certo. Independentemente de depois poder ter as suas ambiguidades.
Imagino que esses contrastes deem um cosmopolitismo que não é só o das grandes metrópoles, mas o cosmopolitismo que de certa forma lhe permite estar à vontade também em sítios menos ‘civilizados’.
É verdade, embora eu não seja dado, digamos, ao cultivo afetivo de coisas ‘étnicas’ ou de coisas ‘bizarras’ no plano cultural e da vida. Tento compreendê-las, mas não tenho paixão por isso. Sou muito urbano.
Muito europeu, também?
Muito europeu. Desde miúdo andei pela Europa. Fui à boleia da rotunda do Relógio até à Noruega.
Com que idade?
Com 19 anos e depois com 21, antes de me empregar na Caixa Geral de Depósitos. E fui aos Estados Unidos com 21 anos, nas primeiras férias que tive da Caixa Geral de Depósitos. Ninguém ia passar férias aos Estados Unidos. Também comecei nessa altura a nascer para a cultura anglo-saxónica – em minha casa era tudo francófilo, os meus livros eram em francês, as minhas referências eram francesas – e foi aí que comecei a abrir aos Estados Unidos e à cultura americana, à história política, aos Watergates, comecei a interessar-me muito por isso. Mas de facto há um cosmopolitismo que nós ganhamos e que é estar naturalmente em qualquer sítio. E perceber que estamos sempre – particularmente os diplomatas – numa posição secundária. É-nos dado o privilégio, em determinados momentos, de assistir a determinadas situações. Mas somos atores secundários. E não podemos ter a tentação de trair a lealdade e a fidelidade da função que nos é dada. As personagens que fui encontrando, os reis, os primeiros-ministros, essas coisas todas, percebemos que tudo roda, tudo muda. A parte diplomática dá-nos um papel, diria, de lugar na bancada para esse mundo. A certa altura, no final da minha vida – e este livro, no fundo, é o somatório de tudo isso – fui fazendo uns retratos à luz da minha própria maturação. Do princípio ao fim eu vou evoluindo e vou crescendo no olhar. E, se calhar, às vezes nalgum cinismo. Depois, a circunstância de ter passado de algum radicalismo marxista para a posição social-democrata que tenho hoje também me apaziguou comigo mesmo.
Já não tem aquela visão da luta de classes, portanto.
Não, não tenho. E mais do que isso: já não tenho a noção de que qualquer coisa que eu faça pode mudar o mundo. Talvez um voto de quando em quando ajude. Mas tenho a noção de que estas coisas têm uma dinâmica que nós não controlamos.
Existe um pouco a noção de que os diplomatas são pessoas que andam refasteladas em bons hotéis e em bons restaurantes a discutir os problemas do mundo mas sem terem verdadeiramente poder para os resolver.
Sempre fui bastante comodista e sempre procurei andar em bons hotéis. Há uma expressão que agora é muito utilizada, que é sair da sua zona de conforto. Eu estou lindamente bem na minha zona de conforto e lutei muito para lá chegar, portanto não me apetece sair dela. A minha zona de conforto é aquela que eu criei, que paguei, que saiu do meu trabalho. Sim, tenho a noção de que a vida diplomática dá às vezes essa ideia um bocadinho glamorosa de andar nos alcatifados e nos tapetes, com os reis, e os jantares e cocktails, não sabendo as pessoas que um cocktail ou um jantar com gente chata à volta é uma coisa absolutamente inenarrável. Mas imagino que alguns, particularmente aqueles que querem aceder à carreira, podem sentir-se tentados por aquilo a que o Medeiros Ferreira chamava ‘os sinais exteriores da carreira’. Hoje aceito com imensa relutância alguns convites diplomáticos de embaixadas, já dei para esse peditório.
Porque é uma estopada?
Às vezes não é. Às vezes são pessoas muito simpáticas, muito agradáveis. Mas, como eu não tenho futuro no terreno político, no terreno oficial, não preciso de estar a expandir esse networking, a troca dos cartões, etc. Já não tenho vida para isso.
Não tem uso?
O meu curriculum já parou e já dá para a nota necrológica. [risos] Acho que há um momento a partir do qual até nos libertamos disso e é um bocadinho um sentimento de alívio. Dito isto, há pessoas na carreira que têm maior apetência e ainda mantêm esse tipo de ligações. Eu cito no início do livro uma frase do De Gaulle que é um bocadinho aquilo que aprendi na vida: ‘É preciso saber deixar as coisas antes que as coisas nos deixem’. Para que nós amanhã não sejamos atirados para fora. Há uma história que eu julgo que não conto no livro, que é de um velho embaixador de uma grande embaixada portuguesa que estava já reformado em Lisboa, numa altura em que fui chefiar o protocolo durante 15 dias porque havia ali um problema. E o velho embaixador, figura prestigiadíssima, dos melhores nomes que a carreira teve, entra-me no gabinete que eu ocupava transitoriamente e diz-me: ‘Vem aí a visita do Presidente da República de […]. Não se esqueçam de mim para um lugar à mesa no jantar da Ajuda’. Tratei-o impecavelmente bem, acompanhei-o à porta, trouxe-o cá abaixo ao pátio, e disse para mim mesmo: ‘Espero ter aprendido a blindar-me contra a ideia de que alguma vez sou capaz de ir ao Ministério pedir para estar no jantar de Estado do Presidente da França ou da Rainha de Inglaterra’. Quando nos deixamos tomar por essa patine protocolar, cerimonial, de relações um bocadinho fátuas, é o fim. Acho que consegui escapar a isso.
Normalmente os diplomatas têm a palavra fácil, sabem fazer aquela conversa de salão – um bocadinho de história, um bocadinho de literatura…
Não sei se ainda sabem, mas sabiam.
Esse tipo de conversa é muito comum no meio diplomático?
É aquilo a que os franceses chamam langue de bois [língua de pau]. Ou, para usar outra expressão, são tipos que conseguem não dizer nada em várias línguas. Às vezes essa conversa tem que se fazer. Como diplomatas, somos seres sociais que estão ali, não em representação própria, em representação do Estado. E, se queremos dar continuidade àquela relação, temos que ser capazes de dizer alguma coisa que não fira o interlocutor. Ouvir barbaridades faz parte também. E ouvi-las com uma cara…
Impassível?
Aqui há tempos, em Lisboa, num jantar social de altíssimo nível a que eu tive de ir, uma senhora ao meu lado explicava-me: ‘Como sabe, nos países do sul da Europa só as ditaduras é que funcionam, não são países preparados para ter um regime democrático’. Como é que eu saio disto? Disse-lhe: ‘Isso é uma teoria interessante, valia a pena até…’ Sai-se pela ironia, não há outra maneira. Caso contrário vou dizer à senhora: ‘Você é uma parva, isso é um disparate!’.
Há uns meses estive em Bruxelas, e ouvi uma discussão surreal em torno da redação de uma recomendação. Tinham tanto medo de ofender este ou aquele, que às tantas o texto já não dizia nada.
Eu refiro isso no livro, às vezes discute-se noites inteiras por causa de uma palavra. É a chamada ‘agreed language’. Se a palavra é aceite, todos os documentos a partir dali vão ter essa palavra. Quem vê de fora acha: ‘Está tudo maluco, estes tipos estão a tratar coisas completamente sem sentido’. Mas no mundo da diplomacia multilateral pode ter algum sentido. O que não significa que às vezes não estejamos ali a perder tempo.
Na União Europeia existe uma burocracia complexa e…
Existe uma burocracia muito complexa e mais do que isso: como todas as burocracias, existe para se sustentar a si própria e para não ser destruída. Conheci um velho embaixador que dizia: ‘Sempre que se cria uma organização internacional, a primeira coisa que eles criam é um fundo de pensões’. [risos] E é um bocado verdade.
Está a dar a impressão de que é uma coisa quase parasitária.
Há um país cuja diplomacia respeito muito, mas cujos princípios práticos eu não respeito muito, que é o Reino Unido. O Reino Unido era contra as organizações, contra as estruturas, porque tinha a noção de que as estruturas institucionais têm uma vocação para ser uma espécie de um monstro que se auto-alimenta. E esses monstros adoram esse tipo de linguagem redonda de que falávamos, que não tem por onde se pegar. Quando estive como secretário de Estado, e ia ao Parlamento Europeu responder a deputados, o secretariado-geral do Conselho preparava-me as respostas e eu raramente respeitava o que ali estava. Eles ficavam desvairados, porque saía da langue de bois e saía daquele mecanismo de palavras redondas – ‘eventualmente’, ‘no caso de’ e tal.
Que nunca se compromete.
Nunca se compromete e, chegando ao fim, aquilo dá para tudo. A linguagem europeia é um perigo. Agora, a Europa trata de coisas muito sérias e trata outras de forma pouco séria. Quando fui secretário de Estado dos Assuntos Europeus, eu era soberanista, basicamente, porque tinha a noção de que sendo Portugal um país cujos interesses médios dificilmente se projetavam no processo de decisão europeia, queria ficar com a maior quantidade possível de cordelinhos na mão. Porque países como a Bélgica, a Holanda ou o Luxemburgo têm interesses iguaizinhos. Nós não. Estávamos à margem fisicamente, geograficamente, financeiramente, legislativamente e até mentalmente. Portanto eu dizia: ‘Quanto mais tarde partilhar a minha soberania, melhor’. Mas depois sou apanhado por algumas pessoas que se mostraram mais abertas – e aí são mais os políticos do que os diplomatas. O meu antecessor no lugar de secretário de Estado dos Assuntos Europeus, o Vítor Martins, é muito mais europeísta do que eu. Quando cheguei, dei-me conta de que herdava uma teoria com a qual convivia mal, e sou eu próprio que começo a europeizar-me e a perceber ‘se calhar eles é que têm razão’.
Converteu-se?
Fiquei, digamos, na soleira do federalismo. Mas nunca dei o passo verdadeiramente para a Europa federal. E acho que neste momento não há condições para isso. O cidadão português, quando vota, vota num deputado que elege um governo e a quem pede responsabilidades é a esse deputado e a esse governo. Não é a Bruxelas. E por isso estar a tomar decisões a nível europeu para depois o governante português dizer ‘Peço desculpa, eu não fui ouvido nem achado’ cria um problema de deslegitimação dos poderes nacionais.
Encontrei nestes textos várias referências a leituras e à aquisição de livros.
Aqui não há livros. Estão lá em baixo. A minha mulher, que é baixinha, entra no escritório e não me vê, tem que espreitar por trás das pilhas de livros. Eu tenho uma tese sobre a sexualidade dos livros, acho que os livros se multiplicam. De vez em quando saem daqui umas carradas para a biblioteca de Vila Real, onde já estão uns milhares. E há em Vila Real, na casa onde o meu sogro viveu, uma cave com 100 caixotes – não são 99 nem são 101, contei-os outro dia, são 100 – por abrir. Fotografias, discos, alguns dossiês, se calhar contas antigas. E livros e livros e livros. E também aquilo a que o Jaime Gama chama ‘não-livros’. Como Pássaros da Moldávia, aqueles coffee table books que na vida diplomática nos oferecem muito, e esses a Biblioteca de Vila Real não quer [risos]. Vivo atulhado de livros, vivo a comprar livros todos os dias. Será até ao final da vida. A única coisa a que eu não tenciono resistir é a comprar livros.
O problema é que é muito mais rápido e fácil comprá-los do que lê-los.
Até lhe digo mais: comprar um livro é uma coisa que dá um prazer às vezes superior à leitura!
Imagino que seja útil para um diplomata ter uma certa cultura livresca. Se vai à Rússia não pode dizer que não leu o Guerra e Paz.
É verdade. Mas não sei se as novas gerações são capazes de acompanhar isso. Havia uma cultura média, a que o meu pai chamava ‘cultura de almanaque’, que as pessoas tinham e que nos permite estar à mesa… Há uma história que se conta de uma mulher de um diplomata que ficou ao lado de um escritor, e perguntou-lhe: ‘O que é que está a escrever?’. E ele: ‘Uma autobiografia’. ‘Que interessante! E é sobre quê?’
[risos] Tem de haver um mínimo?
Exato. Não sei se hoje esses mínimos são cumpridos. A minha geração, que acabou o seu curso nos anos 60, princípios de 70, tinha uma espécie de curiosidade renascentista sobre tudo.Às vezes um bocadinho pela rama. Mas íamos a todas: cinema, literatura, semiologia, depois apareceu a linguística… Isso, para uma conversa social, é um mundo ideal. Não faço ideia se as novas gerações são capazes disso. Mas se calhar eu também sou incapaz de manter uma conversa com alguém que… Às vezes vejo os cartazes daqueles festivais de música e daquela lista de bandas não conheço ninguém. Fico angustiado. Outro dia veio cá aquele grupo, Coldplay. Quando pus no Twitter, fui insultado por não saber o que era o Coldplay.
Tal como há temas preferenciais nesses encontros sociais – como o vinho ou o novo filme que está no cinema – também há temas proibidos? Estou a pensar, por exemplo, no futebol e se o golo foi ou não fora de jogo.
Há um tema proibido socialmente, e não apenas na carreira diplomática: as questões religiosas. Também é de evitar as questões políticas, assim como conversas muito fracturantes. E algumas grosserias, algumas anedotas mais ‘pesadas’. A vida diplomática é muito parecida com a vida social da média-alta burguesia. A conversa é à volta dos livros que estão, dos filmes que estão, às vezes de coisas mais levezinhas. Há uma história que por acaso não conto aí, de uma bielorrussa lindíssima que eu conheci num jantar no Quirguistão e em que ela diz: ‘Eu quero ficar ao lado do embaixador de Portugal, que eu quero discutir um grande, grande escritor português’. E eu: ‘Claro, com certeza’. E pensei: será o Lobo Antunes, o Saramago?
E quem era o escritor?
Paulo Coelho. [risos] E posso garantir-lhe uma coisa: o Paulo Coelho foi durante todo esse jantar um grande escritor de língua portuguesa. Assumi a cem por cento. Devemos evitar atitudes muito radicais e confrontacionais. Embora às vezes a parte política seja mais complicada. Mas há um ponto interessante: a diplomacia é uma espécie de esperanto global muito marcado pela cultura europeia, que é aquela que define todas as regras do protocolo, o funcionamento das embaixadas, etc. E isso também nos ajuda a circular com alguma comodidade. Apanhando os códigos, estamos à vontade em qualquer sítio.
Sendo obviamente um meio requintado, com regras de etiqueta e de comportamento muito específicas, não há às vezes tendência para um certo snobismo?
Um certo…?
Snobismo.
Claro! Sim, sim, sim. A carreira [diplomática] é um espaço para cultivo da snobeira. Quem é à partida snob sente-se na carreira como peixe na água. Para já, porque permite alimentar e sustentar o seu sonho de convivência social, e portanto encontra ali o terreno ideal para isso. Depois, porque isto também é muito permeado por aristocracias, particularmente em países monárquicos. E porque ainda subsistem – acho que cada vez menos – aqueles momentos de solenidade do uso da casaca, do uso do fraque – se é de manhã com colete claro, se é à noite com colete escuro –, do uso do smoking, das condecorações, essas coisas todas. Há quem cultive essas coisas, e de certa maneira cultiva também o snobismo que vem atrás de tudo isso. A carreira antiga estava mais próxima desses rituais. Há um livro do embaixador Paulouro das Neves que tem o título ideal para isso: Rituais de Entendimento. São rituais de entendimento, mas também de comportamento. Não podemos, por exemplo, ter um tipo de agressividade que possa ser desagradável. Ou melhor: podemos ter agressividade, desde que ela seja estudada. Eu tenho hiatos de agressividade propositados. Por exemplo, receber um embaixador estrangeiro que na véspera disse umas coisas desagradáveis sobre Portugal. Ele começa a justificar-se, eu levanto-me e ponho-o na rua. ‘Pode continuar absolutamente a dizer de nós o que quiser como disse ontem. E não venha dizer que não disse, que eu tenho três testemunhas. Agora, da sua atitude nós vamos tirar consequências nas relações com o seu governo’. E ponho-o na rua. Passado duas semanas, ele estava a dizer bem de Portugal por todo o lado.
O diplomata pode ter de lidar hoje com Sócrates e amanhã com Passos Coelho, como foi o seu caso. A cor política muda alguma coisa na relação?
Tive 21 ministros dos Negócios Estrangeiros e 15 primeiros-ministros, creio eu. Nós temos que aprender uma coisa muito simples: somos funcionários do Estado, e eles também têm que aprender que nós somos funcionários do Estado e não funcionários do governo de turno.
Nem do partido.
Nem do partido. E temos que aprender que quem tem legitimidade política são eles. E perante isto, há duas coisas a fazer. Em primeiro lugar, perante alguma coisa que nos mandem fazer e sobre a qual nós tenhamos dúvidas, dizer: ‘Eu não concordo, por isto, por isto e por isto’. Ele diz: ‘Muito obrigado, mas de qualquer forma vai ter que fazer’. E eu faço. E assim eu resolvi todos os problemas da minha vida. Aconteceram-me duas ou três coisas na carreira em que me senti verdadeiramente dissociado. Uma delas, que é a principal, foi a Cimeira das Lajes. Ninguém me pediu para fazer nada, mas senti-me profundamente ofendido com a utilização do nome de Portugal para uma acção baseada naquilo que era uma evidente mentira. E não é só mentir, porque a gente está sempre a falar da mentira das armas de destruição maciça. Trata-se de falta de respeito pela vontade multilateral, que é um elemento fundamental da atitude portuguesa no plano internacional desde o 25 de Abril. Portugal associou-se a uma acção de natureza unilateral sem mandato das Nações Unidas.
Sentiu isso logo na altura ou a posteriori, depois de conhecermos as consequências?
Senti isso no dia. Senti isso na coreografia que levou à organização da cimeira. Senti-me envergonhado de ver o governo português envolvido numa ação daquela natureza, porque era uma acção de sabujice internacional relativamente aos americanos. Temos uma excelente relação com os Estados Unidos, é um dos elementos identitários mais fundamentais da nossa política externa. Mas temos que saber defender nesse quadro os princípios e valores que Portugal tem aculturado ao longo de quase 50 anos de democracia. Fugir disso rompendo com uma prática internacional vai contra os princípios constitucionais portugueses. Mas não disse uma palavra. Digo isto agora porque estou a fazer uma espécie de ponto de situação sobre a minha carreira. Depois, nos dois anos que estive em Paris, entre 2009 e 2011, procurei aumentar os consulados, aumentar o número de professores para os estudantes da comunidade portuguesa, dar mais meios para os leitorados, etc. E de repente vem a troika e dizem-me: ‘Há menos dinheiro. Vamos cortar pessoal, vamos baixar salários, vamos cortar professores, vamos reduzir os consulados. Você vai ter que ficar embaixador de Portugal em Paris e também na UNESCO, para poupar. E vamos vender a casa’.
Tudo o contrário do que andava a defender, portanto…
Como o Thomas Moore, eu sou ‘a man for all seasons’ [um homem para todas as ocasiões]. Tenho que fazer isso, porque é essa a minha função como servidor público. O meu pai era funcionário do Estado, na Caixa Geral de Depósitos. Eu fiz concurso para a Caixa Geral de Depósitos, entrei e telefonei-lhe: ‘Sou seu colega’. O meu avô da parte materna era funcionário público, era juiz, na minha família são todos funcionários públicos. Tenho um grande, grande orgulho em ter sido funcionário público. E um diplomata também serve uma entidade. Não estamos ali por nós próprios, estamos ali pelo nome de Portugal. Ainda por cima é muito cómodo ser diplomata português no estrangeiro. Somos um país muito bem aceite, visto como um honest broker no quadro internacional. Somos um país antigo. E somos um país que projecta uma imagem positiva.
Sem desprimor, se calhar somos um bocadinho como o Belenenses ou a Académica…
Se calhar.
Não ameaçamos ninguém e por isso todos simpatizam connosco.
Exatamente. E como nós não temos grandes interesses, podemos dar-nos ao luxo de ter grandes princípios. Tem razão, a circunstância de sermos um país que não é muito agressivo, que não tem agendas muito tensas, torna-nos um bocado um Belenenses ou uma Académica. Toda a gente nos acha simpáticos. E se vir, sempre que procuramos eleger alguém para qualquer coisa é raro perdermos. Já perdemos, mas é raro. Porque temos amigos em todo o lado.Na América Latina, na África, na Ásia. Acabámos por nos reconciliar com as antigas colónias mais depressa do que outros impérios fizeram. Temos com alguns países da América Latina melhores relações do que eles têm com Espanha. E eles inclusivamente utilizam-nos como uma espécie de plataforma na relação com a Europa para fugir à tutela espanhola.
Insistindo um pouco na questão da cor política, toda a gente sabe o que o PS pensa de Cavaco Silva ou de Passos Coelho. Cada vez que Cavaco faz uma declaração, cai-lhe o PS todo em cima. Falámos no Belenenses mas o que se passa nos partidos é mais parecido com um Benfica-Sporting. Há um lado quase tribal, de claque. Para um diplomata ligado a um partido como é isso?
Nunca tive o mais pequeno problema. Cavaco, aliás, foi quem me fez a prova oral de Economia Política para a entrada para o Ministério. Fui adjunto de Durão Barroso para as questões de cooperação. E ele sabia, quando me contratou, o que eu era politicamente. No Ministério toda a gente sabia de onde eu vinha. E o Barroso não hesitou em ter-me no gabinete.
Ele também vinha da mesma área, na realidade…
Mas prevaleceu a noção de que eu tinha capacidade profissional para aquelas questões. E trabalhei com ele durante três anos sem o mais pequeno problema. No Ministério, até chegar a embaixador, e foram vinte e tal anos, não estive mais à vontade com gente do PS do que do PSD. Parece estranho mas é verdade. Acho que as pessoas até valorizavam a circunstância de eu vir de outra área política e apreciavam mais a minha lealdade em função disso. Pode-nos dar mais prazer representar uma pessoa do que outra, mas representei gente bastante à direita sem grandes problemas.
Mas reconhece que a política está a ficar… há pouco usei a palavra tribalizada.
Está. Se calhar, com esta fragmentação do espectro partidário e com a possível projeção da necessidade de novos modelos de alianças que possam comportar partidos que saem um bocadinho do mainstream, isso pode vir a tornar-se mais evidente. Eu praticamente não vejo telejornais, vejo muito pouca televisão, mas noto uma crispação na vida política muito forte. Por isso mesmo, quando lancei este livro, deu-me um grande agrado ver lá amigos do PSD, do CDS e de diferentes áreas, porque eu cultivo um bocadinho isso. Aliás, o livro foi apresentado pelo Jaime Nogueira Pinto e pelo Zé Ferreira Fernandes, e tem o prefácio do Jaime Gama. Eu não tenho mais amigos à esquerda do que à direita. Pelo contrário, se fizer bem as contas, se calhar tenho mais à direita do que à esquerda. Mas sim, sinto uma crispação na vida política, sinto que discurso às vezes resvala para elementos de natureza quase insultuosa. Mas depois consolo-me quando passo a fronteira do Caia e vejo o que se passa em Espanha. E veja o que se passa em França. Apesar de tudo fico mais sossegado.
Há um bocado falou-me do Quirguistão.
Sim.
Já esteve em muitos sítios estranhos, ou pelo menos onde não foram muitos portugueses.
Já estive em mais de 100 países, mas isso também significa conhecer muito pouco. Significa conhecer o aeroporto, o hotel, o centro da capital… Mas tive a oportunidade de conhecer quase toda a antiga União Soviética – os cinco países da Ásia Central, os países do Cáucaso, os bálticos – e é interessante perceber a identidade de cada uma daquelas repúblicas e até a relação que cada uma tem com Moscovo. Ganha-se imenso em ir lá. Referiu o caso do Quirguistão. Eu vivia em Viena, e fui numa missão que a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa arranjou para embaixadores que quisessem ir. Estávamos num tempo de vacas magras e paguei do meu bolso. Só andando de país em país é que se percebe a diferença entre um e outro. Quase todos são ditaduras, e quase todos são, no fundo, subprodutos do mundo soviético. O diplomata tem – e eu tive essa sorte – a possibilidade de andar um bocadinho por aí.
Mas não são sítios para fazer turismo, imagino.
Acho que apesar de tudo a Ásia central dá para fazer turismo. Ir ao Uzbequistão, ir a Samarcanda, vale a pena. Mas depende das cidades. Uma das coisas que eu sempre achei no mundo soviético e mesmo na Europa de Leste é que faltava-lhes tinta. Havia uma espécie de uma obsessão para se manterem no cinzento e nos tons escuros, quando a cor muda tudo. Acho muita graça a visitar aqueles países, embora a vida daquela gente seja uma tragédia. Um dia, no Tajiquistão, tivemos uma reunião com o Governo e disseram-nos: ‘A oposição pode ter os jornais que quiser’. Depois fizemos uma reunião com a oposição, e confirmaram. ‘Sim, podemos ter os jornais que quisermos. Mas não nos vendem papel’. É assim. Ou uma outra história passada no Turquemenistão, com uma senhora de uma organização não-governamental que defendia presos políticos e tinha o marido na cadeia. Veio falar connosco, com um ar muito triste, mas com uma grande dignidade. E à saída disse: ‘Os senhores têm uma representação aqui, não é? Seria possível essa representação falar com as embaixadas ocidentais e dizer que vim ver-vos hoje aqui? É eu amanhã vou ser presa, naturalmente’. Aprende-se muito mais a amar a liberdade quando se tem este tipo de experiências.