segunda-feira, janeiro 29, 2024

A NATO e a Revolução de Abril


Com o seu papel catalizador da reação ocidental à ação russa na Ucrânia, a NATO tem andado muito na baila. A possibilidade do regresso de Trump à presidência americana está a provocar algumas interrogações sobre o futuro da aliança de que Portugal faz parte desde 1949, em especial se se olhar para aquilo que foi o seu comportamento perante a segurança europeia, durante o seu primeiro, e até agora único, mandato. Logo veremos, até porque não há nada que, pela nossa parte, possa ser ser feito no sentido de alterar o rumo que as coisas vierem a ter.

Nestes 50 anos do 25 de Abril, deixo memória de um episódio que julgo curioso, ligado à NATO, passado entre agosto e setembro de 1974. Repito: há cerca de meio século.

Eu era então adjunto da Junta de Salvação Nacional, no palácio da Cova da Moura, ao fundo da avenida Infante Santo. Mal eu sabia que, 20 anos depois, e por um período de mais de cinco anos, passaria a tutelar aquele edifício, onde hoje continua a situar-se a sede da Secretaria de Estado dos Assuntos Europeus.

Pela pequena sala que nesse tempo partilhava com o então major, mais tarde general, José Manuel Costa Neves, que era chefe de gabinete de um dos membros da Junta, o general Galvão de Melo, passavam, com regularidade diária, muitos quadros superiores do MFA, vários elementos da sua Comissão Coordenadora, alguns deles membros militares do Conselho de Estado. Spínola já estava como presidente da República em Belém, Costa Gomes ocupava o andar térreo do palácio, que era o centro da manobra político-militar, desde 25 do mês de abril anterior.

Aqueles eram dias muito intensos, marcados pela emergência das primeiras grandes conflitualidades que atravessaram o MFA, com as diversas correntes militares a tomarem posições e a medirem forças, que haveriam de se tornar bem contrastantes na crise do 28 de setembro, dia que aliás não tardaria muito. 

O gabinete que eu partilhava fervilhava de conversas políticas. Eu, jovem oficial miliciano, por estar conjunturalmente incorporado nessa geografia de debate, passei a ter involuntário acesso a processos de discussão e decisão que estavam muito acima do meu estatuto militar e político. Mal me conhecendo, o José Manuel Costa Neves tinha optado por fazer plena confiança em mim e isso credibilitava-me para poder testemunhar trocas de impressões que, muitas vezes, tinham elevada confidencialidade e grande delicadeza. Tenho a plena consciência de nunca ter traído essa confiança.

Num desses dias, sentado à minha secretária, constatei que o tema da NATO era objeto de uma troca de impressões entre o José Manuel Costa Neves e outro elemento da Comissão Coordenadora do MFA. Comentavam que um outro oficial, que também integrava a Comissão Coordenadora e tinha assento no Conselho de Estado, anunciara a intenção de suscitar, numa próxima reunião desse Conselho, a questão de Portugal poder vir a abandonar a NATO, tese que defendia. 

Recordo que, ao tempo, o Conselho de Estado era um órgão político e para-constitucional da maior importância e visibilidade, no qual o presidente da República se apoiava. Os meus dois interlocutores estavam preocupados com o impacto que essa iniciativa do seu colega poderia viria a ter. À época, eu era uma espécie de "pré-diplomata": iria fazer concurso de ingresso na carreira diplomática nos meses subsequentes. Conhecedores da minha propensão para as questões internacionais, perguntaram a minha opinião sobre o assunto. Dei-lhes total razão, elencando motivos pelos quais considerava, não apenas inoportuna mas mesmo altamente delicada a abertura de uma discussão do tema, à luz dos nossos interesses estratégicos e da imagem de serenidade que a Revolução portuguesa se esforçava por projetar no exterior. 

Fiz-lhes ver duas coisas. A primeira é que era óbvio que a ideia da saída de Portugal da NATO seria amplamente derrotada no Conselho de Estado, onde estava muito longe de existir qualquer maioria nesse sentido. A segunda é que o simples facto de ser um membro da Comissão Coordenadora do MFA, um militar, a suscitar a questão, facto que logo chegaria ao conhecimento público, iria criar uma polémica que o equilíbrio de tensões correntes dentro das Forças Armadas bem dispensaria. Além disso, no mundo internacional, que então olhava para Portugal com grande atenção, o surgimento desse debate pela mão de um oficial superior iria colocar uma imensa dúvida sobre as intenções políticas do MFA.

"Tu é que podias falar com ele", disse-me a certo passo o José Manuel Costa Neves. Explicas-lhe isso mesmo que agora nos disseste. Pode ser que o convenças!". O outro militar concordou.

Fiquei um pouco perplexo. De certo modo, era um atrevimento um jovem oficial miliciano, como eu era à época, ir arguir junto de um oficial superior, então com fortes responsabilidades político-militares, as implicações geoestratégicas que uma questão daquela delicadeza poderia ter. Mas voluntariei-me para a tarefa.

Note-se que o ambiente no seio do MFA era então muito diverso daquilo que se pode imaginar. Eu, como muitos outros milicianos que por ali andavam, tinha grande à-vontade e tratava por tu algumas figuras cimeiras da Revolução, as quais, acredite-se ou não, e salvo algumas notórias exceções, alimentavam para connosco uma atitude de grande camaradagem, marcada por uma imensa informalidade, bem distante da rigidez hierárquica que imperava nos quartéis de onde vínhamos. 

E assim se planeou uma conversa entre mim e esse oficial superior, logo para o dia seguinte. Recordo-me que ela veio a ter lugar no gabinete que pertencia ao coronel, depois general, Franco Charais, membro da Comissão Coordenadora, que estava ausente de Lisboa nesse dia. Lembro-me bem do local porque eu próprio vim a ocupar esse belo gabinete, revestido a azulejos, como subdiretor-geral dos Assuntos Europeus, entre 1994 e 1995, antes de ingressar no governo.

Já não tenho bem presentes os pormenores da conversa que tive, mas ela terá espelhado o contraste entre um miliciano que pretendia mostrar-se realista (à época, eu estava longe de ser um moderado, mas era forçado pela razão a ser realista), que desenvolveu uma teoria favorável a equilíbrios geopolíticos que considerava importante preservar na conjuntura, perante um oficial, membro da um órgão de grande influência e visibilidade política, que então defendia uma postura de insensato radicalismo, próxima daquelas que alguma extrema-esquerda proclamava pelas ruas e paredes do país. 

Uma das peças do meu argumentário terá sido decisiva para frear o fulgor extremado do militar: lembrei-lhe que ele iria ficar numa clara minoria no seio da Comissão Coordenadora do MFA e, a partir dessa sua tomada de posição, passaria a ter menor audição junto desses seus pares, o que se tornava mais grave por se tratar de alguém que havia sido escolhido para o Conselho de Estado. Para além do facto de estar a atuar "sem rede" no âmbito do seu próprio ramo militar, porque ambos sabíamos que esse setor da Comissão Coordenadora do MFA era esmagadoramente desfavorável à sua posição. O homem ouviu-me com atenção, discutiu apenas alguns pontos e, para o que agora interessa, nunca chegou a suscitar a questão no Conselho de Estado. Eu tinha feito o que me tinha sido solicitado, que, neste caso, coincidia precisamente com o que pensava. A missão estava cumprida.

Uma nota final. Esse militar, depois de uma postura algo radical que ainda duraria alguns meses, acabaria por reverter por completo essa sua atitude política. Veio mesmo a ligar-se a uma deriva contra a Revolução, por meios sediciosos. É a vida! 

5 comentários:

manuel campos disse...


Há uns 60 anos havia um conjunto de gente que achava que eu era assim a modos que comunista.
Veio o 25 de Abril e um número significativo deles logo veio dizer que eu, que entretanto continuava a pensar e dizer o que sempre tinha pensado e dito, era assim a modos que fascista.
Cinquenta anos depois um número razoável desses, que ainda andam por aí (felizmente), voltou a achar que eu sou assim a modos que comunista.
O lado bom é que já não deve dar tempo a que eu volte, continuando a dizer as mesmas coisas, a ser assim a modos que fascista.
Mas já não garanto nada.

PS- A expressão "a modos que" é equivalente a «parece que» segundo o "Ciberdúvidas/ISCTE".
E é compatível com a expressão «tipo...», que anda por aí há tempos entre os mais novos e irrita um santo, estamos ao pé de gente mais nova e e em cada três palavras sai um "tipo..." a completo despropósito.
É que eu tenho um trauma: uma neta minha a acabar a licenciatura está nesse "clube", estou sempre numa de "tipo o quê?".


manuel campos disse...


Desabafo já não muito matinal mas às três da manhã ainda vim aqui...

Abro aqui uns jornais online, politica nacional nem quero saber, qualquer fonte das que eu conheço pessoalmente é muito mais útil para mim que os jornais todos juntos, ao longo do dia me chegarão conversas sérias e não fofocas vagamente twitterianas ou facebookeanas que fazem as alegrias dos que só vêem tristezas.

E leio coisas sobre "ecossistemas laborais", em que os trabalhadores se têm que adaptar a um mundo de gig economy, trabalhadores freelancers, prestadores de serviços variados, crowdsourcing e desenvolvedores multifuncionais, segundo li quando tentei perceber que conversa era aquela de "ecossistemas" aplicados aqui, logo eu que acho que consigo perceber o mínimo, não percebi nada.

E porque as coisas estão assim e o dia está catita, vou almoçar a Carcavelos como previsto já e, lá pelas quatro da tarde conto andarmos a passear a pé no Guincho para apanhar ar (e se apanhamos ar naquele sítio em alguns dias, até somos levados por ele).
Um bom dia a todos.

Nota- Desenvolvedor é tipo o developer inglês.
Encontrei também nas Ciberdúvidas alguém que põe a dúvida com graça e, referindo-se ao meio informático, diz que "...onde se fala e escreve numa espécie de crioulo do inglês, umas vezes por inexistência de palavra adequada, outras por pedantismo, outras ainda por simples ignorância."
Com graça e carradas de razão.

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Miguel Felix António. Esta historieta é para ser contada sem nomes, desculpe lá! Este é um ano para comemorações, não para sublinhar as divisões.

Anónimo disse...

o miliciano exagerou na arguência e o homem acabou do outro lado.
não é dificil saber quem ele era.

Miguel Félix António disse...


Meu caro Embaixador,
Manda quem pode, obedece quem deve!
Um abraço.

Isto é verdade?