quarta-feira, abril 29, 2020

Respeito pelo outro


Faço parte dos portugueses que, embora confinados em casa já para além dos 40 dias que associamos à ideia de quarentena, não estão deprimidos com a situação em que atravessam. A mim, basta-me pensar em quantos vivem em casas minúsculas, com crianças, em ambientes marcados por tensões e carências, para logo me sentir na obrigação de estar feliz.

Por essa razão, quando leio, nesse “muro das lamentações” são as redes sociais, pungentes relatos de gente que, como eu, tem a sorte de poder ter acesso a um quotidiano de relativo conforto, a clamar por “liberdade” e quase a invocar o direito de resistência para incumprirem com o que lhes é recomendado, apetece-me dizer alto algumas inconveniências.

A pandemia, na sua aparente “democraticidade” - porque o vírus pode afetar qualquer um - é um fator potenciador das desigualdades. Como referi, nem todos temos o mesmo conforto, nem todos temos garantido, no final do mês, o salário depositado na conta. Muitos ficaram, de um instante para o outro, sem emprego. As condições sanitárias em que vivem, às vezes em ambientes de convívio familiar e social muito precários, não permitem garantir um mínimo de precauções de higiene, que limitem os riscos de infeção. Os que, trabalhando, se deslocam em transportes públicos, regressando ao final do dia ao espaço familiar, que garantias de isolamento e proteção têm? Penso, às vezes, nos milhares de estrangeiros que enxameavam a restauração hoje fechada: como estarão a viver, eles que sobreviviam em camaratas de miséria, para mandarem, no final do mês, uns euros às famílias no Nepal, no Brasil ou no Bangladesh?

Sabemos que cada um vive a sua própria realidade e que não é legítimo impormos a nossa perspetiva aos outros. Acho, contudo, que é nestas alturas, em que as tensões nos põem à prova, que o pior e o melhor de cada um de nós vem ao de cima. Temos visto casos de gente preocupada com a sua vizinhança, com sentido de entreajuda e procurando ter gestos de cuidado solidário. Como também por aí se observam atitudes de egoísmo, de falta de cuidado, de desprezo pelas condições sanitárias mais elementares.

Todos prezamos a nossa liberdade, todos estamos – nem vale a pena confessar – fartos destas semanas de “prisão domiciliária”, desejosos de regressar às nossas rotinas. Mas é nestas ocasiões, em que estamos todos no mesmo barco, embora uns em camarotes e outros em camaratas, que temos obrigação de sermos estritamente iguais no respeito cívico a todos exigido.

14 comentários:

Anónimo disse...

Quanto a esses trabalhadores do Nepal e Bangladesh ao que se sabe o Governo nada fez, ou pouco. Durante muito tempo deixaram-nos ser explorados, escravizados e o Governo olhou para ao lado.

Joaquim de Freitas disse...

Pois, aqui está um texto que só posso aprovar e felicitar o Senhor Embaixador por tê-lo escrito num vector como este jornal. Desculpe, não sei se me lê, no Facebook, mas tenho escrito exactamente a mesma coisa e quase nos mesmos termos, porque finalmente miséria só se escreve duma maneira. E como vivo nas mesmas condições que o Senhor, no meio das minhas árvores e à "l'aise", penso nas mesmas vítimas do COVID19, que são duas vezes vítimas: primeiro das condições inconfortáveis nas quais vivem com os seus, segundo na insegurança material do amanhã, devido à crise económica que galopa, e à condição de "laissés pour compte" duma sociedade injusta que os obriga a venir de longe procurar o mínimo vital, num país que também tem os seus "laissés pour compte" , não o esqueçamos.

Finalmente, explorados onde nasceram e explorados onde quer que vão, porque o sistema injusto que domina o mundo, assim o quer e assim se justifica desde há um século.

Anónimo disse...

Muito bom texto Sr. Embaixador, com bom senso e humanidade
ainda em tempo de pandemia, diria que se poderia fazer "uma campanha ao ar livre"
ou seja como estamos caminhando para dias mais quentes, poderíamos contar com o sol para nos "alimentar" em vitamina D e ajudar a higienizar as superfícies,
- relativamente aos artistas, porque não utilizar os belos campos de futebol que estão quase todo o ano "às moscas" e que nos custaram, e continuam a custar, tanto dinheiro ?! Afinal eles são reproduções dos antigos teatros romanos onde se faziam excelentes encenações! E a ventilação, o espaço entre espetadores fica plenamente garantido
e pode outro lado, podem cobrar pela entrada dos espetadores
- nos restaurantes, privilegiar e valorizar os espaços exteriores, terraços, esplanadas, pátios, jardins e zonas ajardinadas de proximidade, com utilização de guarda-sóis e de toldos, sendo que durante a pandemia as câmaras municipais poderiam facilitar o uso dos passeios e o aumento da área de esplanadas, sobretudo para os restaurantes mais pequenos que têm pouco espaço no seu interior com dificuldades para responder aos critérios de abertura, e eventualmente, fechar mais algumas ruas ao trânsito de modo a proporcionar mais espaço exterior
- nas creches e escolas, manter as crianças e os jovens em atividades no exterior, o mais possível, inclusive algumas aulas poderiam ser dadas nos jardins e relvados das escolas,
isto porque dizem que o contágio é facilitado se estivermos em ambientes fechados

Anónimo disse...

Sr. anónimo das 23:46
que eu saiba, todos os trabalhadores têm direito por lei, (no mínimo) ao salário mínimo
sejam eles portugueses ou originários do Nepal ou do Bangladesh
e têm os outros direitos, como medicina no trabalho, férias, subsídios de férias e de Natal, e toda a listagem dos direitos que proporciona o código do trabalho português
a lei foi feita para todos

Luís Lavoura disse...

quando leio gente que, como eu, tem a sorte de poder ter acesso a um quotidiano de relativo conforto, a clamar poclamar por “liberdade”r “liberdade”, apetece-me dizer alto algumas inconveniências

Portanto, para o Francisco, "liberdade" significa somente "ter acesso a um quotidiano de relativo conforto". Desde que se tenha "acesso a um quotidiano de relativo conforto", perde-se o direito de "clamar por “liberdade”".

Muito interessante, em particular vindo de uma pessoa que no seu passado (juventude) clamou por liberdade, quando até tinha "acesso a um quotidiano de relativo conforto".

Chego à conclusão (não inesperada) que para o Francisco a falta de liberdade não é aquilo que verdadeiramente interessa, o que interessa é quem impõe essa falta de liberdade.

Luís Lavoura disse...

por aí se observam atitudes de desprezo pelas condições sanitárias mais elementares

Aquilo a que o Francisco chama "condições sanitárias mais elementares" depende muito da pessoa e das suas crenças pessoais. Se se acredita que o vírus se transmite muito facilmente através do ar de uma pessoa para outra (o que é falso), então qualquer proximidade com outra pessoa se torna numa violação das "condições sanitárias mais elementares". Uma pessoa que num transporte público vá sentada ao lado de outra não corre risco nenhum de ser contaminada, a não ser que a outra pessoa tussa, espirre ou fale na direção dela. No entanto, par muita gente sentar-se ao lado de outrém é uma violação das "condições sanitárias mais elementares".

Temos que ter em conta que, muito mais que uma epidemia, estamos em presença de uma paranoia. Muitas pessoas são paranoicas em relação àquilo que consideram ser (mas não são) as "condições sanitárias mais elementares".

Luís Lavoura disse...

Os que, trabalhando, se deslocam em transportes públicos, regressando ao final do dia ao espaço familiar, que garantias de isolamento e proteção têm?

Têm uma garantia de proteção muito simples: (1) usar luvas, (2) lavar essas luvas com água e sabão frequentemente, (3) não tocar com as mãos enluvadas na cara. São tudo coisas que qualquer pessoa pode fazer.

O vírus transmite-se quase sempre através do contacto com superfícies, não através do ar. Se uma pessoa seguir essas 3 regras, estará em geral perfeitamente protegida.

Se a pessoa tiver muito receio de que tussam ou espirrem para cima dela, pode arranjar uma viseira.

Dalma disse...

Muito boa lição Sr. Embaixador!

Anónimo disse...

Belo texto, senhor Embaixador

Lúcio Ferro disse...

Será o Titanic? Nada vai ser como dantes e, como diz, a pandemia potencia as desigualdades. Quero ver, espero estar para ver, quando tivermos uma vacina, a quem esta será distribuída e a quem será negada.

Anónimo disse...

Luís Lavoura às 09.37,

As suas 3 regras, passam a 1:
-usar luvas descartáveis-

"Se a pessoa tiver muito receio de que tussam ou espirrem para cima dela, pode arranjar uma viseira."

Temos de interromper a cadeia de transmissão do vírus, usando todos máscaras, em locais fechados.

Vá a um hospital de viseira. Depois conte como correu...

Anónimo disse...

"Dr." Lavoura para ministro da saúde, já!
Mas que vírus, senhores.

Lúcio Ferro disse...

Olhe lá, caro Francisco, tenho uma vaga impressão de que já tinha comentado este texto. Pode ser só impressão. De qualquer das formas, reafirmo o que anteriormente julguei ter escrito: isso de estarmos no mesmo barco é uma falácia. Uns estão em iates, outros em barcos a motor, outros em barcos a remos e outros no Titanic. Boa sorte.

Anónimo disse...

Muito bem! Parabéns, Senhor Embaixador! Até que enfim que alguém fala verdade e acaba com um estupido coro de lamentações de quem tudo tem. Quem esta nos hospitais, nas prisões ou perdeu o emprego, a conversa e a musica é outra, como muito bem assinalou.

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