domingo, abril 05, 2020

“By appointment”


A sua primeira visita a Portugal tinha sido a convite do Bloco de Esquerda. Se isso não dizia tudo, dizia bastante. Jeremy Corbyn nem parecia ser um mau homem mas, desde o primeiro instante que apareceu e se fez ouvir, toda a gente percebeu que era, em absoluto, “unelectable”. Nada que a esquerda britânica não tivesse experimentado já no passado, com gente igualmente estimável, embora de qualidade muito superior, como Michael Foot.

Alguns dos meus amigos, mais “esquerdalhos”, virão logo à carga: “Mas então, a esquerda britânica, para chegar ao poder, tem obrigatoriamente de ser titulada por figuras da sua “direita”, como Tony Blair?“.

Para quem é democrata e não vive com os pés bem assentes no ar, a resposta é dada sempre pelo eleitorado. Corbyn, que teve à sua frente um dos momentos mais desastrosos do Partido Conservador, saído de líderes tão medíocres como Cameron ou May, conseguiu perder uma das oportunidades de ouro do Labour, em décadas, pela sua clamorosa incapacidade na gestão do processo do Brexit. Pior era impossível! Pusilânime, equívoco, roçou frequentemente o oportunismo mais primário.

Era evidente que Corbyn nunca seria primeiro-ministro do Reino Unido. Agora, no seu currículo, pode registar um milagre: ter sido o principal responsável pela eleição de uma figura tão caricata como a que está hoje em Downing Street. Se os conservadores dominam largamente os Comuns, é graças a ele, “by appointment to Boris Johnson”.

2 comentários:

Anónimo disse...

Também parecia evidente a muita gente que o Trump nunca seria Presidente dos EUA. Deste ao menos safamo-nos, mas foi líder do Labour o que também podia parecer que não era evidente, depois do Blair e do Brown.
Devo dizer que a palavra esquerdalho me irrita. Da ideia que é uma vergonha ser de esquerda. E os direitalhos? Não foi a direita que causou a crise de 2008 e perverteu o capitalismo estabelecendo a ganância como único valor do capitalismo de gestor, que sacificou a economia à especulação financeira? A democracia cristã desapareceu. Gostava de saber se alguém no CDS leu a encíclica com s actual doutrina sócia da Igreja do Bento XVI.
Fernando Neves

Jaime Santos disse...

O problema de Corbyn não é ser de Esquerda, é ser um extremista pouco inteligente. Cinicamente, manteve-se afastado da campanha pela permanência na UE, a posição oficial do seu Partido, decidida democraticamente, porque sempre foi um euro-céptico, posição respeitável quando assumida, o que não foi o caso.

Terá pensado que com a vitória do Brexit tramava Cameron e os Tories, mas como o eleitorado do Labour é de todos o mais heterogéneo, quem se tramou foi ele e não sabemos ainda se não terá tramado o Partido por muitos e bons anos...

De facto, como a maioria dos seus eleitores e dos militantes do Labour são remainers, mas a maioria das circunscrições do Partido se situavam em áreas de maioria leave, Corbyn não teve outro remédio senão titubear sem que o Partido pudesse decidir se apoiava a saída directa se um novo referendo, depois de renegociado um qualquer unicórnio com a UE.

Ainda se safou em 2017, mas perante a hecatombe das europeias e a previsível fuga dos remainers para os LibDem, acabou por aceder à estratégia de Starmer e de outros de apoiar o dito referendo. Claro, não agradou a ninguém e teve o lindo enterro que se viu. A culpa é dele, por muito que outros queiram culpar Starmer, com o fel a escorrer-lhes pelos beiços porque os militantes do Labour finalmente perceberam que ter alguém fiel a princípios socialistas não vale nada se não se estiver no poder...

O Labour deveria ter-se entendido com May (a culpa também foi dela de só demasiado tarde ter querido envolver o principal Partido da oposição no processo de saída) para acautelar um soft Brexit. Agora, levaram com as fantasias de Johnson em cima... By appointement...

Curiosamente, este terá percebido, como Trump, que um vírus, contrariamente ao eleitor comum, se está nas tintas para as fanfarronadas... Esperemos que não tenha cometido um erro que lhe pode ser (literalmente) fatal. Agora, que inúmeros Britânicos já morreram desnecessariamente por causa da estratégia desastrosa de Johnson e dos seus peritos, isso é por demais evidente.

O que isto mostra é que, contrariamente às ideias tolas de uma certa Esquerda e de uma certa Direita, no final a razão triunfa sempre sobre a vontade. Nem que seja sobre ruínas...

Tarde do dia de Consoada