quarta-feira, abril 01, 2020

Foi assim...


No longo corredor do terceiro andar da embaixada “portuguesa” (os angolanos nunca diziam “de Portugal”, sei lá bem porquê!) em Luanda, nesse ano de 1984, ia uma imensa agitação (um grande “restolho”, como se diz na minha terra). O Júlio Vasconcelos, um colega diplomata, aflorou à porta do meu gabinete: “O António está furibundo com um telegrama que chegou de Lisboa”.

O António era o António Pinto da França, o magnífico embaixador que nos tinha saído em rifa, que muito ajudaria a dar cor e graça aos dias dessa cidade com guerra à volta, com recolher obrigatório, praticamente sem lojas abertas e com uma vida tensa e muito difícil. “Mas o que é que diz o telegrama?”, perguntei. Aparentemente, anunciava que António Macedo, uma figura grada do PS, que constava ter uma ligação privilegiada com o MPLA, vinha a Luanda, enviado por Mário Soares, numa missão de “diplomacia paralela”, com vista a tentar atenuar as então difíceis relações bilaterais.

Mas o telegrama, assinado pelo secretário de Estado Eduardo Âmbar, dizia mais: pedia que, dado o “estado frágil de saúde” de Macedo, este ficasse instalado na residência e que o embaixador o acompanhasse nas diligências.

Quando entrei no gabinete de António Pinto da França, este estava numa imensa agitação. “Ó Francisco, você não acha um topete esta vinda do Macedo? Então vem para aqui fazer “diplomacia” partidária e pedem-me para o acompanhar! E nem posso ir de férias, que já estavam autorizadas pelo secretário-geral! E as obras, que foi tão difícil arranjar gente para as fazer? Já tinha mandado o pessoal da residência de férias...”

Havia pouco que dizer, para além de um: “Pois é, é uma chatice!”. Mas o António Pinto da França continuava inconsolável: “Não esperava isto do Jaime Gama, francamente! A favorecer uma operação de “diplomacia paralela”!”. Aí, entrei eu na especulação: “Não será por acaso que o telegrama é assinado pelo Âmbar...”. O embaixador largou o cachimbo e, tendo-me como expert nas tricas socialistas, interrogou-se: “Você acha?”.

Ainda eu não tinha iniciado a minha exegese imaginativa sobre mundo do Rato, quando o bigode do Tavares, o nosso simpático homem das comunicações, aflorou à porta do gabinete: “Senhor embaixador. Chegou outro telegrama. É do secretário-geral...”. “Dê cá, Tavares, dê cá!”, disse o António, talvez com uma vaga esperança de que tudo afinal se revertesse.

Aí, foi a “débacle”! António Pinto da França, homem pouco dado a humores irados, deu um berro: “Só me faltava mais esta!”. À sua volta, expectantes, continuavam os seus quatro colaboradores mais diretos: o José Stichini Vilela, ministro-conselheiro, o Fernando Andersen Guimarães, cônsul-geral, chamado do seu andar de trabalho ao improvisado “gabinete de crise”, o Júlio Vasconcelos e eu.

“Vocês querem saber quem é que vão mandar para cá como Conselheiro Cultural? O Reis Caldeira!”. Era, de facto, a “cereja em cima do bolo”! O embaixador tinha-se batido longamente para ter uma pessoa encarregada da área cultural, tendo mesmo adiantado sugestões de nomes. O Reis Caldeira - e eu até era, provavelmente, aquele que melhor o conhecia - era uma figura muito polémica na carreira diplomática, autor de um “infamous” livro sobre as intrigas da casa. “E o João Aurora nem uma palavra teve para comigo, antes de tomar esta decisão! Não lhe perdoo!” O João Aurora era o embaixador João Sá Coutinho, conde de Aurora, secretário-geral do ministério, o “chefe” da carreira.

A confusão já ia longe demais. O tabaco do cachimbo do agitado António Pinto da França estava espalhado pela secretária, sobre a papelada verde dos telegramas recebidos (os expedidos, como regra universal no MNE, eram imprimidos num papel róseo, da cor das paredes do palácio). A sua fúria, que já se tinha refletido no modo brusco como reagira à Luísa, a secretária, que lhe lembrara, a destempo, que o seu carro já estava à porta do prédio, para o levar ao almoço na residência, aconselhava a que fosse introduzida alguma acalmia na situação. Foi o que decidi fazer.

“Já imaginou se tudo isso fosse verdade? Que vinha por aí o Macedo e que tinha de passar a aturar o Reis Caldeira?” O embaixador olhou-me, esbugalhado, num súbito silêncio, feito de uma imensa perplexidade. Viu então a cara do Fernando Andresen Guimarães abrir-se num sorriso de cumplicidade revelada, o Zé Stichini deu uma gargalhada de quem percebia o que se passava e só o Júlio Vasconcelos ficou com um ar espantado, porque eu o tinha mantido “fora-de-jogo”.

”Hoje é o dia um de abril. Esses telegramas foram inventados por mim. E até chegaram cifrados! Deu-me uma imensa trabalheira, ontem à noite...”

Era assim o nosso grupo de Luanda, de outros tempos. Desse “team” diplomático só eu e o Fernando Andresen estamos hoje “por cá” para nos lembrarmos da história daquele dia um de abril de 1984. 

2 comentários:

Anónimo disse...

Bons e saudáveis tempos! Já não há disso hoje em dia! Bela prosa!
P.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Isso é que foi um primeiro de abril em grande. Adorei!

Genial

Devo dizer que, há uns anos, quando vi publicado este título, passou-me um ligeiro frio pela espinha. O jornalista que o construiu deve ter ...