segunda-feira, abril 20, 2020

Cartas antigas


Não tenho por hábito guardar nada. Porém, durante alguns anos - no governo, nas embaixadas - alguém, quase sem que eu desse conta, guardava por mim toda a imensa correspondência pessoal: o que chegava e o que partia, com fotocópias de quase tudo. Eu tinha uma confiança cega nessas pessoas, e nunca me arrependi.

Essa montanha de coisas jaz em dossiês cujo estado físico exterior cada vez mais me repugna. Por um lado, não queria que tudo aquilo fosse para diretamente o lixo, sem eu previamente verificar se, lá pelo meio, não haveria algo que, de facto, ainda me pudesse interessar. Mas o interesse potencial que eventualmente pudesse ter nessas coisas nunca tinha sido suficiente para me estimular a vencer a preguiça de ir folhear aqueles milhares de páginas.

No passado fim de semana, aproveitando o sol e o confinamento, fiz uma tarde de busca da parte desses arquivos (outra grande parte anda lá por Vila Real) correspondente ao tempo em que andei pelo governo - mais de cinco anos! Percebi então a verdadeira utilidade das máscaras da moda. Conseguir abrir aqueles dossiês, de onde caem aranhas secas, traças feitas fósseis e uma poeira que imagino muito pouco sã, só se consegue, sem espirrar, com a cara tapada. E no jardim.

Encontrei alguma coisa interessante? Pouca, confesso! Lá estavam muitas (não todas, claro!) cartas recebidas e cópia das minhas respostas, quando era o caso, que as minhas amigas e dedicadas secretárias - Ana Cristina, Irene, Sabrina, Aida, Antónia, terei falhado alguém? - iam pacientemente arquivando. Ali estão coisas de gente que já morreu, de outra que ainda por aí anda, alguns de quem me mantenho próximo, outros que deliberadamente se afastaram (eu nunca me afastei de ninguém, creio). Pessoas a pedirem emprego (para si ou para os seus), algumas a queixarem-se de supostas injustiças, outras a quererem um “jeitinho” para uma promoção ou colocação, amigos a zangarem-se comigo por falta de atenção, outros a darem-me novidades da sua vida (quando isso se fazia por carta) e muita, imensa, correspondência burocrática. Também alguma correspondência “dura” com outros membros do governo, mesmo ministros! Nunca me tinha dado conta de ser tão refilão!

A nostalgia nunca me ataca, pelo que, no destino definitivo daquilo, fui impiedoso e drástico. O lixo vai fazer desaparecer quase tudo nos próximos dias. Mas guardei ainda algumas coisas, por graça.

Ontem, relembrei a uma amiga uma carta, muito formal, que ela me tinha dirigido, há precisamente 22 anos, a cortar “relações políticas”, em nome do partido de oposição que ela representava, como protesto por algo que eu teria dito numa entrevista a um jornal. A resposta imediata dela, numa SMS, foi: “Que divertido! Bons tempos!”. Eram, mas estes, apesar de tudo, também são.

1 comentário:

Anónimo disse...

Como é possível?! Não guardo nada que não use há mais de 1 ano. Papel, livros, roupa,....

O futuro