quinta-feira, abril 23, 2020

“Olha quem ele é!”



Há uma semana, ao ver o “J’Accuse!”, um belo filme de Roman Polansky, numa cena em que surge muita gente a assistir a um espetáculo musical, descortinei, por instantes, o rosto inconfundível do realizador, como figurante silencioso no seu próprio filme.

Lembrei-me então das muitas vezes em que Alfred Hitchcock fazia essa aparição nos seus filmes, o que, muito provavelmente, terá levado outro génio da realização, e seu confessado admirador, François Truffaut, a proceder de idêntica forma.

É um “vício” antigo de alguns realizadores deixarem nas suas obras essa marca curiosa, as mais das vezes silenciosa. Scorsese, Spielberg, Godard e alguns outros fizeram essa graça. E alguns até “trocaram”: estou a lembrar-me de ver Truffaut com um papel nos “Encontros imediatos...”, de Spielberg.

No dia seguinte, num canal de cabo, “comprei“ o “Parque Mayer”, de António-Pedro de Vasconcelos, que não tinha conseguido ver na estreia.

Faço parte de quantos gostam muito do cinema que o público gosta de ver. Digo isto porque há uma escola de atitude que adora filmes que ninguém vai ver. Está no seu pleno direito. Em toda a minha vida, creio ter visto todas, repito, todas as longas-metragens portuguesas - desde as mais populares àquelas que apenas são vistas pelos amigos do autor e pelos que detestam as dos outros, sendo que estes dois últimos universos geralmente coincidem. Sinto-me, assim, à vontade para dizer que gosto muito de quase toda a filmografia de António-Pedro de Vasconcelos. Desde o “Perdido por Cem” até este belo “Parque Mayer”.

Porque não conhecia alguns dos atores deste filme (problema de quem não vai muito ao teatro), estive muito atento, no fim, à enunciação do elenco. E o meu espanto foi encontrar, na base da lista, o nome do António-Pedro, na personagem de “Ministro”. Dei voltas à cabeça e não consegui descortinar nenhuma figura similar que tivesse visto no filme - e não é fácil ele passar despercebido. Lá fui eu, de comando em punho, à procura de APV, em toda a película. Não o descortinei.

No dia seguinte - para grandes males, grandes remédios! -, porque a curiosidade é um “defeito” que nunca curei, telefonei ao realizador: “Olha lá! Onde é que tu entras no filme, que não te consegui encontrar?”. O António-Pedro riu-se e recomendou-me que fosse rever uma cena à saída do prostíbulo, em que um figurante passa ao lado de duas das principais personagens do filme. Assim era, um instante APV. Falei-lhe então da “mania” de Hitchcock e de Truffaut. Ele notou que também Charlie Chaplin tinha feito um papel na “Condessa de Hong-Kong”. Não me recordava.

Nessa mesma - mesma! - noite, a RTP 1 passou a “Condessa de Hong-Kong”, uma comédia (tardia) de Chaplin, com Marlon Brando e Sophia Loren. Diga-se: um filme menor, que parece uma peça de Feydeau, com portas a abrir e a fechar, com excelentes atores a fazerem um “frete” a um génio em decadência. Aproveitei para rever o filme e, claro, como o APV tinha avisado, nele surge, a certo ponto, o velho Chaplin, por duas vezes, no papel de um camareiro. Mas mais: o “resto” da família, desde Geraldine a umas netas sem graça, também por ali acabam por figurar, metidas “a martelo”.

Voltando à “vaca fria”: recomendo que vejam o “Parque Mayer”! É um belo filme, ao mesmo tempo uma excelente homenagem a uma certa Lisboa, que se enfarpelava para ir ver as revistas, se divertia nos seus subentendidos e trocadilhos, e que, antes das sessões (duas sessões por dia, três aos fins de semana), ia jantar ao Chico Carreira ou ao Manel, arriscava um “vai um tirinho, ó freguês!” e, em tempos pouco abonados, batia palmas com “bilhetes de claque”, como eu próprio fiz, algumas vezes. Noutras noites, já mais “profundas”, acabava-se no Galo, lembram-se?

1 comentário:

Luís Lavoura disse...

Isso de os cineastas figurarem nos seus próprios filmes é, ao fim e ao cabo, o mesmo que os pintores que figuram nas suas próprias pinturas, como fez por exemplo Velazquez n'As Meninas.

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