quarta-feira, abril 22, 2020

Leonardo

 

O sorriso era a sua imagem de marca. A simpatia era o seu estilo natural. A rapidez e o brilho da sua inteligência eram a evidência que se impunha, de imediato, a quem o conhecia. O patriotismo era o seu ADN.

Leonardo Mathias, que agora nos deixa, tinha a imensa qualidade daquelas pessoas que conseguem dar a impressão de que tudo o fazem, por mais complexo que seja, é sempre levado a cabo com facilidade, com leveza, sem a angústia dos afogueados.

Interrogou-me sempre muito essa atitude e um dia percebi porquê: porque o Leonardo era feliz naquilo que fazia, tinha a sorte de adorar a profissão que desempenhava, sabia dela extrair o essencial para poder sentir-se satisfeito no seu trabalho. Tinha imensa confiança em si próprio e, felizmente, tinha toda a razão para isso.

Um dia, não há muitos anos, senti coragem para lhe dizer uma verdade que já tinha partilhado com alguns amigos: ele tinha sido um dos meus modelos na carreira - e eram só dois ou três. Era “assim” que se devia ser diplomata: fruir os aspetos lúdicos da vida, saborear as coisas e as pessoas, saber olhar uma mulher bonita, dizer uma boa graça, degustar um bom vinho e um bom jantar, e, ao mesmo tempo, saber sempre concentrar-se no essencial, ter a apurada perceção do interesse nacional, a firmeza no terreno negocial, a agudeza do argumento “espetada” com o sorriso da razão que é a nossa, muito “my country, right or wrong”. O Leonardo era assim e eu tentei ser também assim.

Nunca tive a sorte de poder trabalhar diretamente com Leonardo Mathias, e essa é uma mágoa eterna que sinto. Convidou-me a ir para Bruxelas, onde foi um excelente embaixador junto das instituições comunitárias, provando que a carreira tinha gente qualificada, ao contrário do que alguns à época ainda pensavam, para garantir que os diplomatas podiam fazer esse lugar como ninguém. Por opções pessoais, não pude aceitar esse seu convite e não apreciou que lhe tivesse dito que não. Disse-mo, mas sempre com um sorriso, o seu.

Vou contar duas histórias de Leonardo Mathias.

Ao tempo em que era secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, com André Gonçalves Pereira como ministro, em 1981, o embaixador britânico, Hugh Byatt, procurou-o, com urgência, para poder obter luz verde para que aviões britânicos, em trânsito para irem apoiar as suas forças armadas, na guerra das Falkland/Malvinas, pudessem escalar território português. Leonardo exigiu que o pedido fosse feito à luz da “velha Aliança”, de que os ingleses só se lembram nos discursos. O britânico reagiu, Leonardo insistiu e Londres acabou por aceitar. Era a História a impôr-se, na cabeça do diplomata feito político.

O outro episódio passou-se em Israel, durante a presidência portuguesa das instituições comunitárias, em que Leonardo Mathias era nosso enviado especial para a região. Perante uma qualquer diatribe do interlocutor local, ele atirou-lhe à cara uma realidade pouco conhecida: Israel tinha fornecido, a pedido dos americanos, treino à guerrilha independentista da FNLA, de Holden Roberto, que combatia as tropas portuguesas. E deixou claro que, em Lisboa, isso não era esquecido.

Era assim Leonardo Mathias. Frontal e patriota. Era conservador, e aí divergíamos, mas nunca tivemos o menor dissídio. Tínhamos alguns “azares” (acordámos não lhes conferir o estatuto dignificante de “ódios”) comuns. Nos últimos anos, éramos parceiros de uma tertúlia almoçante, na qual ele me tinha introduzido. Cada vez falava menos, mas, ao vê-lo, aquele sorriso aberto e cordial fazia sempre o meu dia.

Vou ter muitas saudades do meu amigo Leonardo Mathias. Deixo um beijo à Teresa e um abraço de pesar ao Marcello e a toda a sua Família.

4 comentários:

Anónimo disse...

Grande artigo. Obrigado.e agora o que me resta dizer?
Abraço
Fernando Neves

Octogenário disse...

Honrava a memória do pai, um enorme português.

Miguel Félix António disse...

Excelente retrato de um grande senhor - que acumulava ser um excelente diplomata - detentor de uma enorme sabedoria que, todos os que com ele privaram, puderam testemunhar.

Carlos disse...

Tive a grande honra e o enorme privilégio de com ele e sob a sua orientação servir na Embaixada de Portugal em Paris

Pela primeira vez estou totalmente de acordo com um seu texto

Carlos Chaves

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