domingo, março 29, 2020

Tulipas, moinhos e cifrões


Como os últimos dias têm deixado evidente, os Países Baixos, em matéria de dinheiros, não brincam em serviço e, manifestamente, corre-lhes nas veias um sangue de cifrões. Sei o que é discutir questões financeiras com os colegas holandeses, aliás gente sempre muito bem preparada, altamente qualificada e que sabe como levar a água ao seu moinho - água e moinhos, como é sabido, não faltam na Holanda...

Algures no primeiro semestre de 1996, durante a presidência italiana da União Europeia, os quatro responsáveis governamentais pelos Assuntos Europeus que, simultaneamente, eram os negociadores-chefes dos seus países no trabalho de negociação do Tratado de Amesterdão, foram convidados pelo ministro francês Michel Barnier (um bom amigo, o principal negociador do Brexit e hoje infetado por coronavírus) para um jantar no esplendoroso Palazzo Farnese, onde está instalada a embaixada francesa em Roma. Era na véspera de uma reunião da Conferência intergovernamental para a discussão do novo tratado.

(Uma curiosidade: a França paga à Itália o equivalente a um franco antigo pelo aluguer do palácio romano Farnese e, em compensação, o Estado italiano "despende" o equivalente a uma lira, pela utilização, como embaixada em Paris, do deslumbrante Hôtel de la Rochefoucauld-Doudeauville, com a mais bela escadaria de mármore que alguma vez vi. Já ouvi franceses a dizerem que foi um "mau negócio", porque a lira se desvalorizou muito face ao franco...)

Além do anfitrião, o ministro francês para os Assuntos europeus, estiveram no jantar os secretários de Estado dos Assuntos europeus da Suécia e dos Países Baixos, respetivamente Gunnar Lund e Michiel Patijn, e eu próprio. Curiosamente, todos havíamos estado presentes nas reuniões do "grupo de reflexão" que, durante 1995, fez sugestões para a revisão do Tratado de Maastricht, o que havia criado entre nós uma forte relação pessoal. Lund viria, anos mais tarde, a coincidir comigo em Paris, sendo aí um dos meus melhores amigos no corpo diplomático.

O jantar, além de algum "small talk", era essencialmente de trabalho, pelo que cada um suscitou as prioridades do seu país para a discussão que então se iniciava. Para o que aqui nos interessa, gostava de dizer que, entre vários outros pontos, eu insisti bastante na necessidade de uma Carta da Cidadania Europeia, a ser apensa ao tratado, a fim de destacar o valor acrescentado que, para cada cidadão, a pertença à União representava, a somar à sua própria cidadania nacional. O meu colega holandês foi aquele que me pareceu, desde o início, o menos entusiasmado com a ideia.

Acabado o jantar, eu e ele regressámos ao hotel onde, casualmente, ambos nos alojávamos, perto da Piazza Navone - o Raphael, coberto de exótica vegetação. Era uma bela noite romana e, na esplanada, tomámos uma cerveja. Porque queria, no dia seguinte, lançar a ideia na reunião formal, e pretendia evitar que ele fosse dos opositores mais vocais, voltei a tentar convencê-lo, na conversa a dois, da bondade da minha ideia sobre a Carta de Cidadania. (“For the record”, a Carta não seria aprovada nessa altura, mas, anos mais tarde, foi possível consagrar uma Carta dos Direitos Fundamentais, o que acabou por ser um salto em frente face à limitada ambição da minha anterior proposta).

Michiel Patijn era um homem muito sorridente, com uma cordialidade que encontrei em muitos outros holandeses. E existia entre nós uma forte empatia pessoal. Mas também era sempre muito frontal - uma caraterística diplomática que tem a vantagem da clareza e a desvantagem da inflexibilidade. Não lhe interessava a “minha” Carta. Ponto. Sintetizou-me então, numa frase curta, as "prioridades" do seu país para o novo tratado: "Francisco, tens de compreender: para nós, a Europa significa dinheiro!" Não podia ser mais esclarecedor. (Mais tarde, durante as longas negociações da Agenda 2000, tidas entre 1997 e 1999, fixando o quadro financeiro plurianual da União para os sete anos seguintes, tive bastas provas dessa “fixação” holandesa)

Michiel Patijn tinha um irmão, Schelto, que foi presidente da municipalidade de Amesterdão. Foi ele quem um dia convidou António Guterres a visitar a importante Sinagoga portuguesa de Amesterdão, um edifício que simboliza o refúgio naquelas terras dos muito judeus fugidos às perseguições de que foram alvo em Portugal, em especial no século XVI. Nessa visita, em que acompanhei o então primeiro-ministro português, referi-lhe a amizade que tinha com o seu irmão: “Somos o oposto nas ideias políticas: ele é de direita, eu sou socialista. Mas damo-nos muito bem!” Imagino que não divergissem quanto ao dinheiro, algo que une os holandeses, talvez mais do que qualquer outra coisa.

Os Países Baixos são hoje dos maiores “ganhadores” do processo integrador. Com a unidade europeia, ganharam a paz, um lugar geopolítico privilegiado no continente, uma ancoragem à Aliança Atlântica que lhes trouxe sempre vantagens (com o Reino Unido e Portugal, os Países Baixos foram, durante muitos anos, dos mais fiéis defensores da relação transatlântica), as suas empresas têm sabido aproveitar como poucas o mercado interno europeu e as oportunidades abertas pela globalização, o porto do Roterdão é o principal canal de acesso comercial da União e, “last but not least”, têm um regime de imposto muito atrativo para empresas estrangeiras a quem os acionistas reclamam o máximo de “otimização fiscal”, somado a um leque de acordos, ímpar na Europa, para a eliminação da dupla tributação, o que o torna no “paraíso” para fixar empresas que queiram investir em países terceiros. Ah! E vão ser, com a Alemanha, dos principais beneficiários do Brexit! 

7 comentários:

João Cabral disse...

«Corre-lhes nas veias um sangue de cifrões», senhor embaixador? Há quem diga o mesmo dos Judeus. E não foram poucos os que a Holanda acolheu. Creio que irei deixar de ler as suas divagações por uns tempos.

Portugalredecouvertes disse...

Por curiosidade fui procurar o palacete tentando descobrir a beleza da escadaria
realmente é uma obra de arte! lindíssima como se pode ver nalgumas imagens publicadas por exemplo aqui
http://peregrinations-architecturales-de-michael-mendes.over-blog.com/architecture-parisienne-en-images-l-hôtel-de-la-rochefoucauld-doudeauville-actuelle-ambassade-d-italie

Joaquim de Freitas disse...

Um dos estados fundadores da Europa económica acaba por ser, na sequência da investigação internacional dos "Paradise Papers", o reino da optimização fiscal.

Oficialmente, o "país das tulipas" não está na "lista negra" da União Europeia. No entanto, numa inspecção mais aprofundada, os Países Baixos são, de facto, os "artistas" da optimização fiscal, ou seja: evasão fiscal jurídica.
Tal como o Luxemburgo ou a Irlanda, os Países Baixos transformaram esta actividade numa verdadeira indústria.

Os Países Baixos oferecem taxas de imposto muito baixas em determinadas actividades. Facilitam a existência de empresas de caixas de correio que, na verdade, não têm negócios reais, e por vezes negociaram taxas de imposto bastante ridículas com empresas multinacionais, depois validadas em acordos fiscais. Ao fazê-lo, incentivam o acolhimento de empresas no seu território que não têm necessariamente actividade real, mas que estão isentas de impostos noutros países onde têm uma actividade real.

A Holanda é classificada como o terceiro "pior paraíso fiscal" pela ONG Oxfam, logo atrás das Bermudas e das Ilhas Caimão.

E é o "paraíso fiscal" preferido das empresas europeias, mas não só.
É também um verdadeiro eldorado para dois terços dos lucros americanos obtidos no exterior.(Eu sei J. de Freitas e os americanos !)

Vemos nas estatísticas americanas - que são particularmente boas - que, nas centenas de milhares de milhões de dólares de lucro das multinacionais americanas fora dos Estados Unidos, os Países Baixos são o paraíso fiscal número um. Só depois se vêm Bermudas, Luxemburgo, Suíça, Hong Kong, Singapura, Ilhas Caimão... de longe, a Holanda é a número um.

Muitas multinacionais americanas armazenam biliões nas suas subsidiárias holandesas, como a General Electric, Heinz, Caterpillar, Uber ou Tesla...
A investigação da Paradise Papers já revelou que a Nike também usa um dos múltiplos "mecanos" permitidos pela tributação holandesa: o CV-BV, o chamado "duplo domicílio" que torna a empresa invisível às autoridades fiscais.

Vê-se nas Bahamas, em Malta... mas estamos aqui a falar dos Países Baixos, um país fundador da União Europeia que não tem vergonha de permitir a existência de uma estrutura jurídica cujos proprietários não são identificados, é escandaloso! Os Países Baixos têm uma longa história de opacidade, especialmente através das empresas “caixas de correio” de que são campeões há anos .Encontram todas as formas de não abdicar da sua política de dumping fiscal.

Este sistema "CV BV" que devia desaparecer, segundo o comissário europeu dos Assuntos Económicos, Pierre Moscovici., tem a pele dura…

Para eles é muito lucrativo, porque conseguiram atrair uma base fiscal fictícia que é colossal em relação à dimensão da sua economia. E assim, mesmo impondo impostos de 1 ou 2%, taxas efectivas extremamente baixas, conseguem arrecadar muitas receitas. Muito mais que as “Putas de Amesterdão”, cantadas por Jacques Brel.O problema é que se trata de um roubo.

E é obviamente menos dinheiro nos cofres de países onde normalmente os impostos devem ser cobrados... A Holanda é um dos borregos da Europa..

O Senhor Embaixador tem razão. Apoio a sua frase: “corre-lhes nas veias um sangue de cifrões.”

E o PM António Costa também esteve justo na sua frase. Eu diria mais: A Holanda não tem vergonha de tratar assim a Espanha. Essa gente é capaz de disparar sobre as ambulâncias...

Anónimo disse...

Cada vez se torna mais óbvio.
Misturar Holanda com Espanha não deu, historicamente falando, e nem está a dar hoje em dia. Quer com a Espanha na mó de cima, quer vice versa, com a Holanda na mó de cima.
Misturar paraísos fiscais "universal" de uns com fiscalidade interna voraz e desenfreada de outros, não dá. Claro que dá superávit para uns. Para outros dá (insuperável) deficit.
Insistir em misturar o imiscível não resulta: uns com produtos industriais de topo (viaturas, aviões, comboios electrónica...), no mesmo espaço económico protegido, com outros a trocar por sapatinhos ou vinhitos,
Conseguir ganhar, despudoradamente, com a "tragédia" grega, é obra.
Arruinar, esmagar com um sorriso, a indústria rival, a transalpina, também é obra. Radical.
Obrigar os outros a resolver os seus gigantescos erros como foi isso de convidar migrantes muçulmanos. Agora fiquem com as sobras, os improdutivos, óbviamente não integráveis.
Dormir, e obrigar outros a cohabitar com um óbvio rival em questões decisivas como a indispensável energia.
Por cá foram-se as águas territoriais com os seus peixitos.
E agora, sem a economia das tascas e do aluguer do Sol à beira mar, como é que vai ser paizinho ?.
...
Cada vez se torna mais óbvio que ESTA UE e ESTE Euro têm que voltar ao estirador, mas para um estirador comum.

Anónimo disse...

Talvez tenha interesse em ler este artigo: https://www.socialeurope.eu/what-europe-needs-to-know-about-the-dutch-tax-haven

Joaquim de Freitas disse...

Tem interesse, se o Senhor Embaixador permite, de traduzir, para os incrédulos ...


"A partir deste dia 1 de Janeiro, os Países Baixos detêm a Presidência da União Europeia. Esta é uma boa ocasião para colocar os holofotes sobre um segredo holandês bem guardado: os Países Baixos são um dos maiores paraísos fiscais da Europa, na verdade do mundo.

Enquanto o ministro das Finanças, Jeroen Dijsselbloem –o tal amigo dos Portugueses, mais conhecido como líder do Eurogrupo – denuncia rotineiramente a "falta de vontade" da Grécia em reformar o seu sistema fiscal, a empresa mineira canadiana Gold Eldorado evita pagar impostos na Grécia através do seu próprio país.

Enquanto os Países Baixos lamberam bancos cipriotas em 2013 por lavagem de dinheiro (russo), os oligarcas foram convidados em 2013 e 2014 para a embaixada holandesa na Ucrânia para um seminário de escritórios de advogados privados holandeses sobre como evitar impostos através dos Países Baixos.

Recentemente, a Comissão Europeia decidiu que as reduções fiscais especiais holandesas para a Starbucks são ilegais ao abrigo das regras europeias em termos de auxílios estatais.

Estes não são eventos isolados. Um importante pilar do complexo político financeiro holandês é atrair capital estrangeiro com um rico menu de benefícios fiscais e subsídios.

Os Países Baixos têm acordos fiscais com muitos países. Em particular, os direitos de autor que não são tributados.
As empresas pagam custos de royalties fabricados a empresas de abrigo fiscal, baixando artificialmente os seus lucros.

Quaisquer royalties são praticamente destributadas e – quando regressam à empresa-mãe – não são tributadas no país de origem porque já foram tributadas (ainda que a uma taxa zero).

Vice-versa, os lucros de subsidiárias estrangeiras (formalmente) não são tributados no regresso à sede holandesa.

É relativamente fácil encontrar uma empresa de acolhimento nos Países Baixos. Só precisa de uma caixa de correio. (Os Rolling Stones e os U2 têm escritórios no Herengracht em Amesterdão, embora nunca sejam vistos lá.)

As empresas de abrigo fiscal também são convenientes para a arbitragem regulamentar.

Lehman Brothers ( antes da sua falência) utilizaram estas facilidades e poderiam ser rastreados até à Holanda.

Luís Lavoura disse...

Francisco, tens de compreender: para nós, a Europa significa dinheiro!

Olha, e para Portugal, que raio significa a Europa? Para Portugal, a Europa sempre significou, principalmente e antes de tudo, uma fonte de dinheiro!!!

Os amigos maluquinhos da Ucrânia

Chegou-me há dias um documento, assinado por algumas personagens de países do Leste da Europa em que, entre outras coisas, se defende isto: ...