quarta-feira, março 12, 2014

A dívida

Pensar pela própria cabeça tem um preço. Mas eu estou disposto a pagá-lo.

Há semanas, publiquei num jornal económico um artigo que alguns amigos, que muito respeito, consideraram inconveniente. Nele falava da sensível questão da reestruturação da dívida, procurando tocar nesse quase "tabu". Em síntese, eu dizia isto: "A menos que um perdão parcial venha a ser admitido, associado a uma renegociação de taxas e maturidades, Portugal ficará esmagado por um peso financeiro incomportável. E os primeiros a não beneficiarem dessa situação seriam os nossos credores externos, que não tirariam vantagens de uma economia asfixiada. Eles sabem isso bem. É, contudo, desejável que o assunto só surja à discussão num quadro europeu bastante mais sereno e estável. Mas deixemo-nos de ilusões: cedo ou tarde ele emergirá, dependendo o “timing” do modo como os mercados vierem a ler o grau de abertura do BCE para apoiar as economias europeias sujeitas a uma maior pressão". 

Ontem surgiu na praça um "manifesto", assinado por muitas personalidades respeitáveis e de grande relevo, que propõe a abertura de uma reflexão sobre a reestruturação da dívida pública portuguesa. A iniciativa é do meu amigo João Cravinho, uma pessoa por quem tenho uma imensa estima e grande consideração política. 

Ora bem: eu não concordo com a oportunidade da divulgação do "manifesto". Porquê? Porque apesar de, no essencial, o meu artigo assentar nos exatos pressupostos subjacentes a esse corajoso e bem construído texto, a questão do "timing" continua para mim a ser relevante. De facto, continuo a pensar que é "desejável que o assunto só surja à discussão num quadro europeu bastante mais sereno e estável". E esse tempo, no meu entender, ainda não chegou. Pelo que temo que o peso conjugado das personalidades envolvidas possa vir a ter consequências negativas para a imagem externa do país, por colocar prematuramente a questão no terreno.

Tenho este "azar" de, por vezes, "remar contra a maré". Não o faço por gosto, mas apenas porque é o que penso. E eu, certo ou errado, só digo o que penso.

Em tempo: veja-se o que sobre isto diz Pedro Santos Guerreiro

terça-feira, março 11, 2014

11 de março

Faço parte de uma tertúlia de antigos militares - profissionais e milicianos - que têm como caraterística (quase) comum terem estado "implicados" no 25 de abril. Como a data vai celebrar 40 anos, já se pode presumir a idade média dos convivas... Reunimo-nos "quando o rei faz anos", em almoçaradas de geometria variável e - vale a pena notar! - sem uma necessária identidade de pontos de vista políticos. No que me toca, estou a recuperar de quase uma década de abstinência forçada a esses encontros.

Ontem, tivémos mais uma "sessão de trabalho", desta vez à volta de uma lampreia, de que alguns, menos dados ao ciclóstomo, se "desenfiaram". Muitas histórias, menos sobre o passado e mais sobre o presente a que temos direito, com boa disposição e camaradagem, sendo anotadas as habituais faltas à chamada na "parada". A vida separou-nos e as agendas nem sempre são fáceis de conjugar. Mas é sempre um gosto encontrar esses amigos.

A meio do almoço, perguntei a um dos organizadores - um general que foi meu superior hierárquico, há quatro décadas - se era propositado o facto do repasto não ter lugar no dia 11 de março, uma data bem significativa (mas também bem divisiva) desse ano "quente" de 1975. Ninguém se tinha lembrado disso! Olhámos em volta e demos conta que, precisamente, um terço dos presentes tinha tomado assento, na noite desse dia marcante, naquela que foi a mais famosa Assembleia da história do Movimento das Forças Armadas. Incluindo o autor destas linhas.

Os acontecimentos de 11 de março foram interpretados, à época, como um salto em frente no processo revolucionário. Na realidade, vistas as coisas em perspetiva, o seu saldo acabou por se revelar uma vitória pírrica para o MFA, que, a partir dessa data, agravou as suas divisões internas, a caminho de um beco com traumática saída.

segunda-feira, março 10, 2014

Contenção

Devo confessar que estou espantado com a "contenção" israelita nos dias que correm. A experiência ensinou-me que, quando a atenção do mundo se encontra focada numa determinada região do mundo, o Estado israelita tem por imparável tropismo proceder a ações militares pontuais no seu "near abroad", assim atenuando os (já de si sempre limitados) custos políticos a pagar por essas aventuras. Verdade seja que a procissão, pela Ucrânia, ainda vai no adro...

domingo, março 09, 2014

A Europa e a Crimeia

Teresa de Sousa é, de há muito, uma sagaz observadora das coisas internacionais. Tenho por ela um grande respeito e leio-a sempre com atenção e proveito. Hoje, no seu habitual artigo no "Público" (ser assinante permite-nos consultá-lo a esta hora matutina), suscita uma ideia interessante, resumida no próprio título do texto: "A Europa joga o seu destino na Crimeia". A tese central é a de que, face à atual tensão, e perante o grau de implicação que os americanos parece estarem dispostos a assumir, a Europa tem, na crise ucraniana, a oportunidade "da sua vida" para recuperar a sua relevância, a ser feita através de uma atitude comum, em consonância tática com Washington. O tom das conclusões do último Conselho Europeu anima a articulista, que delas também retira virtualidades para a sobrevivência e/ou reanimação da relação transatlântica,

Muitas vezes estou de acordo com Teresa de Sousa, mas não é este o caso. Acho que a avaliação feita daquilo que resultou da reunião dos chefes de Estado e governo da UE peca por "wishful thinking". A retórica unificada que saiu dessa reunião irá - não tenho disso a menor dúvida - esboroar-se a partir do momento em que a passagem a um estádio superior de medidas "punitivas" a Moscovo (que deverão ser propostas, porque tudo indica que a Rússia não vai ceder no essencial) venha a defrontar-se com as previsíveis reações retaliatórias do "outro lado". Nesse momento, os Estados europeus constatarão que, dentre eles, alguns sentirão mais do que outros o preço de uma quebra dos mecanismos de relação político-económica com a Federação Russa. E isso não deixará de ter consequências imediatas na sua unidade decisória, muito para além da conversa bruxelense, à qual Putin colocará a questão posta por Estaline face à condenação da sua política pela Santa Sé: "Quantas divisões tem o Papa?"

Posso estar enganado, mas tenho a sensação de que a Europa comunitária, com a sombra da NATO a ajudar, acabou por meter a Ucrânia numa "grande alhada". Fê-lo por alguma irresponsabilidade induzida essencialmente pelos Estados bálticos e alguns outros países da antiga "cortina de ferro" - a "nova Europa" de Donald Rumsfeld -, como reconhece Teresa de Sousa, ao falar da "obsessão desses países em continuarem a olhar a Rússia como uma ameaça".

Sei que me arrisco a ser visto como um perigoso "realista", mas nunca tive a menor ilusão sobre a possibilidade da Ucrânia poder exercer o seu pleno direito de opção estratégica. Há "soberanias limitadas"? Claro que há, porque a geografia não se improvisa. Que o diga Cuba.

Tenho hoje a firme convicção de que a Europa perdeu um ensejo precioso de desenhar um modelo de relacionamento "possível" com Kiev, porventura menos ambicioso mas bastante mais pragmático. Um modelo à medida do país muito particular, geopoliticamente falando, que a Ucrânia é e continuará a ser. A União Europeia não percebeu, ou não quis perceber, as lições que deveria ter retirado da atitude russa na crise da Geórgia - e, em especial, da "liberdade" então recuperada por Moscovo para reatuar com maior liberdade nas suas próprias "águas territoriais", em face da então mitigada reação de Washington, secundada pelo já então ineficaz gesticular europeu. Se o tivesse feito, não se deixando seduzir por uma agenda marcadamente anti-Moscovo, talvez tivesse ajudado Putin a reconhecer as vantagens de algum reconhecimento de "respeitabilidade" no plano internacional e apostado na sua adesão, pelo menos formal, a uma ordem global mais dialogada. Não o fez, "armou" em potência e agora resta-lhe "bombardear" Moscovo com comunicados e engrossar a voz. 

Com a presente crise, que ameaça alguns dos seus interesses estratégicos essenciais - a alguém passou pela cabeça que Moscovo iria permitir a indução de riscos no seu acesso naval ao Mar Negro? -, a Rússia já mostrou que está disposta a pagar um preço forte na sua imagem. Nada que um poder essencialmente autoritário não possa comportar. Quem pode vir ainda a sofrer, no rescaldo desta crise, são os opositores internos a Putin, que cada vez mais se sentirá desobrigado de ter de fazer "de democrata". Perdido por cem...

Uma nota final. Se Bruxelas conta com a permanência da intransigência de Washington, no início de um tempo presidencial de fim de ciclo, pode muito bem vir a estar enganada: sem a ajuda prática da Rússia, os EUA não conseguirão retirar as suas tropas do Afeganistão no calendário previsto. E esse é um compromisso que Obama não pode falhar, porque é feito perante o único país que os Estados Unidos verdadeiramente respeitam: a América.

sábado, março 08, 2014

Serviço público

O defeito deve, com toda a certeza, ser meu.

Ontem, assisti na televisão a um espetáculo comemorativo do aniversário da RTP. Foi um momento deprimente, uma sucessão barata de "flashbacks" de segunda ordem, feita de improvisos e de graças gastas, que a falta de reação do público presente muitas vezes viria a "premiar" devidamente. A boçalidade de alguns dos humoristas, com uma linguagem e uma '"elegância" ao nível de "stand-up comedy" de Fernando Rocha, parece provar que já se atingiu por ali o estádio de algum "quimbarreirismo". É uma pena que nem toda a geração pós-Herman José dê pelo nome de Ricardo Araújo Pereira. Mas, aparentemente, cada geração do humor português só pode ter um génio.

Hoje, tive a desdita de assistir a um episódio do Festival RTP da canção. Sei que posso ser considerado masoquista, mas deu-me para ouvir algumas das canções concorrentes. Quem não assustiu, não pode acreditar! Em face de algumas das canções apresentadas, nas suas inenarráveis letras (volta, nacional-cançonetismo, estás amplamente perdoado!) e no modo "gritado" como foram exibidas, com uma coreografia indigente, um espetáculo de Ruth Marlene pode ser considerado um momento sublime. Fomos entretanto esclarecidos que foi a RTP que escolheu os autores convidados para elaborar as canções. Se este é o nível de recrutamento possível, na música portuguesa, para a nossa representação na Eurovisão, então fica claro que continuaremos no terreno dos Homens da Luta, grupo "musical" que tanto nos prestigiou internacionalmente no passado.

É com uma programação a este nível que a RTP demonstra o seu elevado sentido de serviço público.

sexta-feira, março 07, 2014

A prescrição da política

A coima de um milhão de euros a que Jardim Gonçalves havia sido condenado por virtude da sua gestão danosa no BCP não vai ser paga, por prescrição, devida ao protelamento conseguido com interposição de sucessivos recursos.

Aqui, não há dúvida nenhuma, há um "consenso" interpartidário muito claro: não fazer nada!

quinta-feira, março 06, 2014

Kissinger

 
Em tempos de crise, é importante ouvir vozes experimentadas. Podendo não se concordar, em absoluto, com todas as premissas e, mais ainda, com algumas das receitas sugeridas, Henry Kissinger, num artigo no "Washington Post", ajuda-nos a "ler", de forma serena e avisada, a crise uraniana. Será ouvido na Casa Branca? E no Kremlin?
 
Leiam-no, com proveito, aqui

Conversas

Patrick Buisson foi conselheiro especial de Nicolas Sarkozy. Descobriu-se agora que o cavalheiro, uma figura oriunda da extrema-direita, que misteriosamente tinha caído nas boas graças do antigo presidente, gravava todas as conversas mantidas com ele. A revelação está a provocar o natural escândalo. E, uma vez mais, há dois "tempos" nesta história.

O primeiro é a atitude "de Estado", a rejeição indignada deste atentado à esfera privada, ainda por cima, de um chefe de Estado e do seu círculo íntimo. E, pelas televisões francesas, logo se viu o país político a reclamar "decência", "privacidade" e respeito pela "intimidade pessoal". E punição exemplar.

Chegou depois, mesmo logo de seguida, o segundo e espectável momento: o "voyeurisme" guloso do conteúdo das conversas, às vezes travestido de clamor pelo "interesse público", que é uma coisa que o jornalismo moderno identifica com "o interesse que temos em vender isto ao público". A ilicitude primeira do ato passa imediatamente para segundo plano, ao se deparar com comentários saborosos sobre figuras políticas, intimidades do serralho, mais aquilo que não se sabe e estará ainda para vir, no seio das centenas de horas de gravação que parece existirem.

Enfim, um "déjà vu". Nada que as escutas telefónicas que a nossa Justiça é tão useira em "preservar" não nos tenha já ensinado e que pendor coscuvilheiro de alguma imprensa a que temos direito nos não tenha também já ensinado. Porque, como diria o grande Eça, "Portugal é a França traduzida em calão".

quarta-feira, março 05, 2014

Desobediência civil?

O casal de turistas franceses com quem me cruzei hoje de manhã numa rua de Lisboa estava abismado, naquela surpresa que sempre marca as visões caricaturais dos visitantes breves: "Tinham-nos dito que Lisboa era uma cidade calma, mas é sempre assim? Com poucos carros e pessoas nas ruas? É muito estranho! Nem parece uma capital!"

(A França é um dos "mercados emissores" de turistas para Portugal que mais tem crescido nos últimos anos. Esse crescimento fez-se mesmo a contraciclo da crise, como vi acontecer ao tempo em que eu estava em Paris. Detesto explicações baseadas no "achismo" impressionista, mas a crise pode ter feito interessar os franceses por um país barato, amável para o estrangeiro, geograficamente próximo, com bastante segurança e usos e costumes pouco distantes dos seus, além de uma oferta hoteleira e cultural diversificada - do Minho ao Douro, de Coimbra a Lisboa e ao Algarve vai um mundo de diferenças, muito pouco vulgares num território tão pequeno.)

De facto, a manhã desta quarta-feira apresentava uma cidade quase silenciosa, como que parada no tempo, sem engarrafamentos, com lugares para estacionamento, cadeiras vagas nas esplanadas. Cá por mim, gosto muito desta Lisboa quase "de agosto", com um sol de Inverno que faz as delícias de quem transporta consigo mais peso do que aquele que a OMS recomenda (longo eufemismo para gordos, se não repararam).

Ao franceses evitei explicar que o português procura reagir à crise com uma atitude sofisticada. Muitos municípios (que o "memorando de entendimento" mandava reduzir drasticamente e que um silencioso "consenso" entre o PSD e o PS conservou intocados, "à cause des mouches") deram tolerância de ponto no Carnaval e, por artes e arranjinhos, muitos lisboetas devem ter conseguido prolongar a ponte. O governo bem tenta estender as horas de trabalho do funcionalismo, mas o pessoal público, diabolizado pelo discurso oficial e com os bolsos aliviados pelos cortes e pelo fisco, entende dever dar a volta ao texto, não respeitando quem o não respeita. Os privados, verdade seja, também já perceberam "the name of the game" e há por aí muita empresa a meio gaz e bastante comércio encerrado.

Será isto uma subtil forma de desobediência civil, uma resposta profunda aos custos da austeridade? Não, em Portugal é... assim! Este, porém, constitui um imenso segredo nacional (embora lá fora já haja disto umas "vagas" suspeitas), pelo que não quis partilhá-lo com os assombrados turistas franceses. Deixemo-los regressar ao reino dos queijos e das baguettes com esta imagem de um país que, lá por França, se dizia ser habitado por gentes "toujours gais", mas que agora parece terem migrado melancolicamente para dentro de si mesmas.

Oi, Mônica!


Cara Mônica

Neste Carnaval, o meu post vai para si. Salvo alguns leitores do blogue, as pessoas não a conhecem. E é pena. O espírito deste blogue deve-lhe muito. Tempos houve em que você o frequentava com regularidade e em que, com uma simpatia única, nele deixava algumas notas, às vezes de estranheza perante realidades que pouco lhe diziam. Mas sempre terminando "com carinho, Mônica". Isso criou em alguns dos leitores habituais uma relação afetiva consigo. Nunca esquecerei uma frase que um dia aqui escreveu, num tempo de alguma angústia que (já então) me atravessava sobre a situação que o meu país vivia: "tenha um bom fim de tarde sem pensar em Portugal. Pode? Porque acho que está certo. Mas fazer o quê?".

Espero que goze bem esse magnífico Carnaval, símbolo maior de um país que sabe viver o dia a dia com um otimismo felizmente incurável. Conheço mal o seu Carnaval de Minas Gerais. Quando por aí andei, seduziam-me mais coisas como o Bola Preta do Rio, o frevo de Pernambuco ou o trilho elétrico da Bahia. Por cá, Mônica, o Carnaval é diferente, embora às vezes transformado num "genérico" do vosso, com meninas de bumbum ao léu, só que a tremerem de frio sob a chuva, fingindo que está calor.

Deixo-lhe uma foto de um outro nosso Carnaval, bem diferente e bem mais genuíno, que sobrevive no nosso nordeste, em Trás-os-Montes. É herdeiro de uma tradição muito antiga, "avozinho" de rituais que os seus antepassados (não os meus, que foram sempre muito sedentários e por aqui ficaram) levaram para o Brasil e que vocês, com maestria e criatividade, transformaram naquilo que é hoje o esplendor da Sapucaí.

Para si, Mônica, um abraço com carinho do

Francisco

(Sobre a Mônica disse um dia aqui isto.)

terça-feira, março 04, 2014

A propósito da Ucrânia

É talvez uma presunção da minha parte (com a idade, estas coisas tendem mais a acontecer...) mas apetece-me fazer aqui um link para um texto que publiquei há quase dez anos, que agora reli e que, no essencial, corresponde àquilo que ainda hoje penso. Chama-se "As Novas Fronteiras da Rússia".

segunda-feira, março 03, 2014

Guiné Equatorial

Como quase sempre acontece nas questões políticas com dimensão externa, alguma opinião nacional acordou tardiamente para a questão da adesão da Guiné Equatorial à CPLP. E, como também é hábito, fá-lo em registo de algum escândalo, sempre fácil de assumir por quem não tem responsabilidades de Estado mas que gosta de "ficar bem" no mercado da simpatia e das ideias corretas.
 
Valeria a pena, contudo, deixar assinalados três factos simples, à luz do que se lê pela imprensa - que é tudo quanto eu próprio sei sobre o assunto.
 
O primeiro facto é que, durante a anterior cimeira ministerial de Luanda, foi aprovado um "road map" de medidas que a Guiné Equatorial deveria levar a cabo, antes de poder ser considerada a sua possível adesão. Portugal terá sido mesmo o país que exigiu a introdução nessa lista de condicionalidades de uma moratória na aplicação da pena de morte. Se algum "pecado" existe, ele assenta no momento em que o "road map" foi fixado.
 
O segundo facto é que, no plano formal, a Guiné Equatorial estará a cumprir aquilo que lhe foi exigido, pelo que, a confirmar-se essa evidência, se torna agora difícil travar o processo da sua adesão.
 
Finalmente, convém ter presente que Portugal não é "dono" da CPLP. Nesta matéria, desde há muito que está praticamente isolado na sua resistência a nela aceitar a Guiné Equatorial. Ora a CPLP, para quem o não tenha percebido, é uma organização que agrupa esmagadoramente países "do Sul", onde predomina uma cultura de Direitos Humanos mais compreensiva e menos exigente que na generalidade dos países do Norte - com o Brasil a ser disso um exemplo claro.

E, já agora!, o mínimo de bom senso deveria fazer refletir sobre o que aconteceria à CPLP se Portugal, que a "federa" na sua particular qualidade de antigo poder colonial, utilizasse o seu direito de veto para se opor à vontade conjugada dos restantes sete membros da organização.

Em tempo: era bem mais "popular" escrever aqui uma opinião diferente desta, não era?

domingo, março 02, 2014

"Events, dear boy, events!"

Perguntado um dia sobre aquilo que, como primeiro-ministro, mais temia, Harold Macmillan cunhou uma frase que ficou célebre: "Events, dear boy, events!". A doutrina divide-se sobre quem era o interlocutor na ocasião, mas isso não retirou pertinência à frase. De facto, são os acontecimentos, essas explosões da realidade no quotidiano, que marcam a nossa vida, pessoal ou coletiva, e podem determinar mudanças essenciais no seu curso.

Lembrei-me disto há pouco, ao ver as notícias sobre a Ucrânia e o agravamento da tensão internacional. Não sei se é a ingenuidade ou se é o cinismo que me levam a não recear que estejamos na soleira de um conflito bélico internacional. Mas um mínimo de realismo leva-me a pensar que o momento que atravessamos poderá vir a ter consequências significativas na vaga de confiança que vinha a atravessar, nos últimos meses, as economias europeias. E isso não será indiferente para Portugal, que tem vindo a ser um feliz "free ryder" dessa onda positiva, que muito tem contribuído para uma melhoria da conjuntura que "puxa" pela economia do país.

Se acaso tudo se desregular, se a crença na estabilidade europeia for abalada, a fragilidade da nossa recuperação pode vir a ser evidenciada - e isso não são boas notícias para todos nós, para Portugal mas também para os portugueses, aqui divergindo duma luminária política que, em matéria de melhorias, há dias criava uma dualidade patética entre essas duas entidades.

Imagino que o dr. Passos Coelho deve estar preocupado com aqueles acontecimentos e atento aos efeitos que eles podem vir a projetar na nossa vida político-económica interna. É que, se as coisas correrem mesmo mal na economia, a política virá logo atrás. Na hipótese de isso acontecer, de a conjuntura política começar a degradar-se de novo, ele poderá então utilizar, sabe-se lá para quem, a célebre réplica explicativa de James Carville, na campanha de Clinton: "It's the economy, stupid!" 

Alain Resnais

E lá se foi Alain Resnais! Recordar-me-ei sempre da dificuldade de compreensão - que, ao tempo, me pareceu insuperável - que me assaltou quando vi "O ano passado em Marienbad", filme onde me encontrei, pela primeira vez mas para sempre, com Delphine Seyrig. Depois, embora anterior, "Hiroshima, mon amour" reconciliou-me mais com esse tipo de "escrita" fílmica não linear, embora Resnais nunca fosse - nem de longe! - um meu realizador de culto. Por essa razão, nunca acompanhei com muita atenção a sua restante obra. Olhando para a filmografia publicada, verifico que dele pouco mais vi do que "Muriel", "La guerre est finie", o medíocre "Je t'aime, je t'aime" e, depois, o magnífico "Providence". Depois disso, "Mon oncle d'Amérique" é talvez a sua derradeira obra que conheço. 

Concedo que Resnais talvez devesse ter merecido um esforço maior da minha parte, mas cada um é como é e eu sou bastante mau cinéfilo, muito errático e incoerente nas minhas escolhas e, com os anos, cada vez mais incapaz de continuar além de um segundo bocejo ou de forçar a minha atenção face a "propostas" que me incomodem minimamente o quotidiano. Com esta minha teimosa e assumidamente "inculta" atitude, tenho "saído a meio" de imperdíveis obras-primas (no cinema, na literatura, na música, nas artes plásticas), mas tenho assim ganho tempo para fazer outras coisas que mais me divertem. É que só temos uma vida, sendo esta, aliás, a última.

sábado, março 01, 2014

"Um Novo Rumo para a Europa"


Tenho o gosto de organizar e coordenar esta Conferência que pretende refletir sobre outros caminhos para a Europa e, muito em particular, sobre o modo como Portugal aí deve atuar no futuro.

Sem qualquer exceção, todos são bem vindos a esta Conferência.

As idades da diplomacia

Ontem, o meu querido amigo Mário Vilalva, sem a menor dúvida um dos grandes embaixadores do Brasil e um dos melhores que o seu país desde sempre deslocou para Lisboa, contou-me uma deliciosa definição dos três tempos dos diplomatas no estrangeiro.

Assim, um jovem diplomata, acabado de chegar a um posto, quase sempre procura conhecer as melhores discotecas e locais de convívio da gente mais nova. Com os anos, chegado o período intermédio da sua carreira, ao tempo de conselheiro, o diplomata tem como preocupação fundamental coletar a lista dos melhores restaurantes. Um dia, passa a embaixador. Chegado ao seu posto, que lista procurará estabelecer, em prioridade? A dos melhores médicos locais!

A brincar, a brincar, as coisas são mais ou menos assim. No meu caso, cuidei em nunca abandonar os meus vícios de conselheiro...

sexta-feira, fevereiro 28, 2014

A sofisticação da História

Ao tempo do Estado Novo, tinha por hábito ler com atenção um determinado jornalista do "Diário de Notícias", que escrevia sobre política internacional. Era um homem estudioso, que caprichava em opinar sobre regimes políticos existentes em lugares recônditos do mundo, relativamente aos quais elaborava juízos definitivos, muito maniqueístas, colocando-os com grande simplicidade nas prateleiras dos "bons" ou dos "maus" da História.

Porque eu vivia num ambiente que era, em absoluto, simetricamente oposto ao daquele jornalista, quando ele "dizia mal" de algum líder ou regime, ele passava, de imediato, a cair-me no goto. E vice-versa. Era o tempo da Guerra Fria, e, no nosso caso, das guerras coloniais, o que autorizava a ditadura a zurzir tudo quanto soasse a favorecimento de regimes democráticos, com o "terceiro-mundismo" ou o apoio da União Soviética a serem o cúmulo da diabolização. Mesmo algumas atitudes dos Estados Unidos, quando acaso lhes dava para favorecer democracias, não escapavam ao crivo severo do escriba do jornal da avenida que ironicamente já se chamava da Liberdade. Ele era o "fiel" da minha balança ideológica, vista ao espelho. Era tudo tão fácil!

O mundo mudou. Já não há dois sistemas a polarizar as simpatias. O comunismo acabou, mas as democracias não fazem, nem de longe, o pleno do mundo. A tendência em geral prevalecente na opinião pública é, assim, mostrar simpatia pelos movimentos que possam pôr em causa os ditadores ou mesmo os líderes autoritários.

Foi assim no Egito. Todos "estivemos" na praça Tahrir, todos nos sentimos aliviados com a saída de Mubarak, todos saudámos as eleições livres. Depois, ao olharem-se os resultados, alguns de nós perguntaram-se se aquela imensa vitória islamista não poderia vir a ter consequências complicadas. Mas, c'os diabos!, era o voto, era a democracia, era a vontade do povo. Com o tempo, viu-se que essa vontade conduzia a uma radicalização islamizante com tons preocupantes, num afastamento da laicidade pública, a qual tinha, apesar de tudo, algumas vantagens para a vida coletiva de uma sociedade religiosamente tolerante. E, entre alguns de nós, a simpatia por um regime que estava a aproveitar a sua chegada democrática ao poder para criar uma hegemonia totalizante começou a esmorecer. Um dia, os militares reimpuseram o poder das armas. Entre nós, alguns suspiraram de alívio. A outros, começou a preocupar a nova ordem ditatorial, os generais que aí estão de novo. E, um destes dias, quando estes exercerem a violência e a repressão que lhes está na massa do sangue e na ponta das armas, alguns de nós (embora já não todos nós) "voltarão" à praça Tahrir. É a vida!

Porque é que me lembrei disto hoje? Porque, ao olhar para o simplismo com que o mundo ocidental está a reagir face à situação na Ucrânia, me dou conta de que ainda não se interiorizou que estas coisas já se não pintam a preto e branco e que a História, nos dias que correm, é uma coisa muito mais sofisticada. Na Ucrânia, na Síria, na Líbia e por aí adiante.

quinta-feira, fevereiro 27, 2014

Joaquim Paço d'Arcos

Há duas figuras nas letras portuguesas que sempre achei depreciadas pela crítica e pelo "consenso" público: Joaquim Paço de Arcos e Pedro Homem de Melo. Dir-se-á que é o facto de ambos terem sido figuras conservadoras, "de direita", não ajuda a que sejam reconhecidas por um mundo literário onde, diga-se o que se disser, a esquerda continua a prevalecer. Será o caso de Agustina Bessa Luís a exceção a confirmar a regra? Pode haver aqui alguma ponta de verdade, mas há que convir que, mesmo entre os seus pares ideológicos, estes dois nomes foram sempre tratados com alguma sobranceria, sendo a ambos negada ostensivamente a ascensão ao patamar superior da literatura portuguesa. Estou longe de ser um especialista, mas, como simples leitor, e em ambos os casos, isso parece-me injusto.

No caso de Pedro Homem de Melo, Vasco Graça Moura já pôs os "pontos nos is" no prefácio que há muitos anos fez à recolha da obra completa do poeta que a Imprensa Nacional editou. Recordo-me que ofereci esse livro ao meu pai, que tinha uma veneração pela poesia de Homem de Melo a que não era seguramente alheia a sua dedicada escrita sobre o mundo minhoto ("Havemos de ir a Viana..."). E que, ao ouvi-lo declamar alguns poemas, decidi comprar outro exemplar para mim.

Ontem, ao final da tarde, estive numa sessão que o Círculo Eça de Queiroz organizou para celebrar a reedição, num só volume, das "Memórias da minha Vida e do meu Tempo", de Joaquim Paço d'Arcos. Fernando Pinto do Amaral faz uma magnífica evocação do autor e da importância do livro. Guilherme Oliveira Martins complementou-o com sábias evocações. Dois homens de esquerda a saudarem um autor conservador, um excelente prosador, um escritor com uma forte sensibilidade e uma perceção muito rara das idiossincrasias da sociedade portuguesa. Sem alguns dos seus romances, uma certa Lisboa da viragem da metade do século passado é mais difícil de entender. Com estas "Memórias", ao longo dos anos, aprendi muito sobre um certo Portugal. Devo isso a Joaquim Paço d'Arcos e a minha presença na sessão de ontem teve também muito a ver com esse facto.

quarta-feira, fevereiro 26, 2014

Quadra para Maria Luís

Tu queres limpo ou cautelar?
pergunta o mendigo ao pobre.
Quero é ver a troika a andar!
Ficarei com o que sobre.

Augusto de Ataíde (1941-2014)

A título pessoal, só conheci de modo muito superficial Augusto de Ataíde, cuja morte acaba de ser anunciada. 

Augusto de Ataíde fez parte de uma geração de políticos que Marcelo Caetano fez emergir na sua breve passagem pelo poder, a maioria dos quais saídos do viveiro universitário em que o sucessor de Salazar se movia melhor e em que foi cultivando a sua gente. Trabalhou no governo de Caetano nas áreas da Juventude e Educação e, a exemplo de outras personalidades dessa geração política, aportou por alguns anos ao Brasil, na sequência do temor às sequelas do 25 de abril. No seu pacífico regresso ao país da democracia, reintegrou-se na vida universitária e, tal como outras figuras académicas conservadoras, normalmente juristas, com raízes sociais na aristocracia ou com laços com a alta burguesia, foi cooptado por importantes grupos privados para integrar a teia dos seus lugares de representação institucional. A política em liberdade não parece tê-lo seduzido.

Um dia, há já alguns anos, caiu-me nas mãos uma biografia de Augusto de Ataíde. Não era um texto político, relevava do memorialismo pessoal e familiar, com a curiosidade de se centrar muito na sociedade açoreana, um microcosmos a que sempre atribuí uma graça especial. Sem ser uma obra excecional foi, contudo, para mim, uma curiosa revelação, não apenas por me ajudar a compreender melhor o ambiente de um certo Portugal do Estado Novo de província mas, muito em particular, por expor, com uma candura que só pode merecer o nosso respeito, uma séria crise na sua família, que muito terá marcado a existência do autor. Não tinha a menor ideia pessoal sobre Augusto de Ataíde, desde a sua saída da cena política. Com a leitura de "O Percurso Solitário", nome do seu livro, dei-me conta de estar perante um homem de bem, sendo embora alguém que sempre esteve num quadrante que nunca foi o meu. Mas, no que me toca, tenho sempre pena ver desaparecer pessoas de bem, venham elas de onde vierem.

Coluna

Não gostei muito da frase: "como é que escolhes os mortos que destacas no blogue?". Aquele meu conhecido, por ocasião do lançamento do livro de um amigo, ontem ao final do dia, pode não ter sido muito feliz na expressão utilizada. Mas eu compreendo a sua questão. Não há uma lógica subjacente à seleção das pessoas cujas breves notas obituárias por aqui faço. Umas vezes são pessoas amigas, conhecidas ou que o acaso me fez contactar, outras são apenas figuras com maior ou menor destaque à escala nacional ou global. Quase sempre, contudo, é alguém "que me diz alguma coisa".

É hoje o caso de Mário Coluna. Do quinteto maravilha do Benfica de 1966, já tinham desaparecido Torres e Eusébio. Dessa equipa, também se foram Germano, Morais e Jaime Graça. Agora partiu Coluna, que era o eixo dessa seleção que me deu algumas fortes alegrias - e eu teimo sempre em ser grato a quem me faz feliz. Por isso, na morte de Mário Coluna, quero aqui deixar-lhe a minha singela homenagem.

terça-feira, fevereiro 25, 2014

Mala diplomática


A cena passou-se num país com o qual as nossas relações bilaterais não estavam a ser fáceis, nos anos 80 do século passado.

Era sábado e o encarregado de negócios de Portugal, que chefiava a missão diplomática na ausência do embaixador, havia sido chamado de urgência pelo ministro dos Negócios Estrangeiros local.

A conversa começou tensa. O ministro colocou sobre a mesa uma carta, da qual saíam três notas de 100 dólares: "Esta carta ia ser enviada pelo vosso cônsul na cidade de X para a família, em Portugal. Contém dinheiro em "cash", o que vai contra todas as regras. Além do mais, pressupõe ser produto da obtenção de divisas estrangeiras por meios ilegais, porque, como é sabido, há neste país um controlo muito forte da circulação de moeda estrangeira e não temos registo do cônsul ter adquirido os dólares no banco central. Exigimos uma explicação urgente por parte da Embaixada."

O nosso diplomata foi apanhado de surpresa. De facto, era uma situação estranha mas, pensou, era importante falar primeiro com o cônsul e obter a sua versão do assunto. A posse de moeda estrangeira era muito vulgar no país, até porque os diplomatas eram pagos em dólares e havia serviços e aquisições locais que exigiam essas divisas. Já o seu envio por carta parecia muito imprudente. Mais para ganhar tempo do que por qualquer outra razão, inquiriu: "E esta carta ia pelo correio?".

Nesse instante, notou que o ministro hesitou um pouco, antes de esclarecer: "Não, ia na mala diplomática para Lisboa".

O nosso encarregado de negócios teve então um lampejo, recuperou o comando da conversa e retorquiu firmemente ao ministro: "A Embaixada está totalmente disponível para prestar todos os esclarecimentos sobre este assunto mas, antes que isso aconteça, as autoridades do seu país vão ter de explicar a razão pela qual violaram a nossa mala diplomática, contra todas as regras internacionais. E, ainda hoje, vou fazer chegar uma nota de protesto por este acto que, de forma ostensiva, infringe as regras da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas".

O ministro não estava à espera da resposta e foi apanhado de surpresa. Voltou à carga com a ideia da necessidade de obter uma posição sobre a questão dos dólares na carta, mas o encarregado de negócios foi definitivo: "Antes de obtermos, da vossa parte, uma explicação sobre a razão pela qual a nossa mala diplomática foi violada, não diremos rigorosamente nada sobre o seu conteúdo. Aliás, peço, formalmente e desde já, a devolução do resto da correspondência que seguia na mala diplomática, a maioria, aliás, de natureza oficial. Não sei se se dá conta que isto é de uma extrema gravidade, senhor ministro! Os senhores violaram a mala diplomática portuguesa! Isto pode vir a ser um escândalo!".

O interlocutor começou a ter consciência de que a sua posição abandonava um terreno confortável e mostrava-se já um tanto embaraçado. O nosso diplomata saiu da reunião entre o satisfeito e o preocupado, mas sem plena certeza sobre o que se seguiria.

No dia seguinte, o conteúdo da mala diplomática chegou, discretamente, à nossa Embaixada. A carta do cônsul vinha junta... sem os 300 dólares. O encarregado de negócios não chegara a mandar a nota de protesto, até porque, para o fazer, necessitava de uma autorização de Lisboa, que nem sequer obtivera. O "bluff" compensou, ou melhor, custou 300 dólares ao pobre cônsul. E o assunto morreu...

Cenas da vida diplomática, como diria o Lawrence Durrell.

Nota: há bem mais de quatro anos, publiquei esta história no blogue. Hoje, ao ler uma notícia no "Jornal de Negócios", lembrei-me dela.

segunda-feira, fevereiro 24, 2014

Vitória

Uma vitória do Vitória de Guimarães sobre o Benfica "dava-nos jeito", daqui a horas. Vai ser difícil, mas em futebol tudo é possível.

Num domingo de março de 1966 - nesse tempo, o futebol era sempre e só ao domingo - um animado grupo de sportinguistas de Vila Real, no automóvel do Chico Menezes, que a vida castrense haveria de alcandorar ao comando do RI13 muitos anos mais tarde, zarpou pelo Marão, a caminho de Guimarães, para ir assistir ao jogo do Vitória com o Benfica. Uma derrota em Guimarães da agremiação de Carnide facilitaria, nesse ano, a conquista do campeonato pelo Sporting. Ambas as coisas acabariam por acontecer.

Depois de uma almoçarada "das antigas" numa pensão das Taipas, lá estivemos nós - eu, o Chico e o Fernando Menezes, o Olívio Carvalho, o Mourão, o Zé Macário e um outro amigo (o carro era imenso) que tinha um primo que nos arranjou os bilhetes - no recém construído "Dom Afonso Henriques", a mostrarmo-nos mais vimaranenses que os locais, deliciados a ver Costa Pereira encaixar três secos do Vitória. Ainda me recordo da animação no regresso, com pousio para uma jantarada regada a verde tinto, no Príncipe, em Amarante, no clássico largo do Arquinho, criando lastro para as muitas curvas que nos esperavam, serra acima, até à vista de Parada de Cunhos. Nesse tempo, a Brigada de Trânsito, que por lá tinha uma daquelas casinhas amarelas no cruzamento para a Régua, era bem mais complacente... Guardo uma foto do Macário desse grupo divertido, no alto da Penha, comigo, elegante e bem novo, de fato e gravata!

Curiosamente, essa seria a mesma equipa do Benfica, dirigida por Bela Guttmann, que emprestaria a Portugal o quinteto maravilha que, meses mais tarde, nos iria emocionar no Mundial de Inglaterra. Uma equipa que já tinha tido, dias antes, uma humilhante derrota por 5-1 na Luz, frente ao Manchester United. A mesma que também eu teria o ensejo de ver perder de novo, dessa vez para o Braga, a Taça de Portugal, duas semanas após a visita a Guimarães, na única vez que fui ao velho "28 de maio" (anos mais tarde crismado "1º de maio"). É curioso constatar que, numa época que veio a consagrar a sua mítica linha ofensiva no quadro da seleção, o Benfica perdeu tudo quanto podia perder, no plano nacional e internacional. É assim o futebol.

Pois é! E porque, como acima disse, no futebol tudo é possível, uma vitória do Guimarães, logo à tarde, em terras de Carnide, vinha mesmo a calhar. Um pouco de brio, ó gentes do Vitória!

Em tempo: razão tinha eu! Como se comprovou, em futebol, tudo pode acontecer! Desta vez, o Vitória de Guimarães não fez jus ao seu nome! Mas com um golo daqueles nada havia a fazer! Nem Afonso Henriques se aguentaria...

domingo, fevereiro 23, 2014

Coliseu dos Recreios

O modelo das eleições primárias, através do qual um partido escolhe o seu candidato a um determinado cargo através de uma auscultação de um universo mais alargado do que a sua direção política, não tem uma tradição em Portugal. Os EUA já há muito vão por aí e a França começa a testar o modelo.
 
Ontem, durante o congresso do PSD, assistiu-se já a um curioso e atípico "ensaio". Aproveitando o sopro de otimismo que as últimas estatísticas económicas insuflaram no partido, uma revoada de antigos líderes entendeu por bem dar à costa. Se, no caso de Marques Mendes, alguma discrição foi seguida, se Luis Filipe Meneses deixou apenas palavras sobre o passado, já Marcelo Rebelo de Sousa e Santana Lopes aproveitaram habilmente o ensejo para se exporem ao seu eleitorado potencial, numa pouco subliminar pré-prova para as presidenciais.
 
No caso de Marcelo, a sua dualidade de comentador/político, depois da moção de Pedro Passos Coelho o ter excluído da preferência da direção do partido, obriga-o a um exercício, muito inteligente, através do qual, com humor e fidelidade oficiosa q.b., procura tocar a simpatia que sabe que por ele tem uma grande parte da massa "laranjinha" (como ele gosta de dizer) - o que, contudo, pode ser algo diferente de o querer como presidente da República. Veremos se a "performance" foi suficiente para poder gerar o início de uma "vaga de fundo" que o faça "regressar à terra", já que nestas coisas da política nada é "irrevogável", como ele bem sabe.

Já Santana Lopes é um caso diferente. Desde há uns anos, agora ajudado pelo papel na Misericórdia de Lisboa, tem procurado construir uma imagem diversa do perfil "playboy" e pouco "statesmanlike" que os portugueses antes dele haviam fixado, modelo que o seu efémero e patético governo havia ajudado a instalar, de forma indelével, na memória coletiva. O modo pausado como fala, as constantes referências religiosas que pontuam o seu discurso, o registo "humano" e de atenção para com os desprotegidos da sorte que marca uma em cada duas das suas atuais palavras, desenham um retrato que tem pouco a ver com aquilo que sobre ele ainda predomina no imaginário coletivo.

Portugal é um país de memória muito curta. Se para aí estiverem virados, os portugueses podem facilmente vir a esquecer a "vichyssoise" de Marcelo e as "trapalhadas" de Santana. Uma coisa é certa: ambos não deixarão, no momento oportuno, de lembrar ao PSD a "fuga" de Durão Barroso para Bruxelas, se e quando o declinante presidente da Comissão Europeia, esgotadas que sejam as ambições por outras alternativas, entender que não tem outra escolha senão tentar regressar a Portugal via Belém.

A procissão presidencial ainda vai no adro. Mas os vários andores começam a engalanar-se. O pessoal das confrarias começa a vestir as opas, os anjinhos do costume já agitam as asas e os fiéis estão a alinhar-se nas respetivas bermas. Só falta a música, mas ela não tardará.

"A Europa dos cidadãos"

Com comentários de Maria Flor Pedroso e Jorge Wemans, caber-me-á intervir, em 22 e 23 de março, num debate organizado pelo Movimento Católico de Profissionais "Metanoia", a ter lugar em Lisboa.
 

A outra banda

Sempre gostei muito do termo alfacinha "a outra banda". Quando ouço a expressão, utilizada a propósito do outro lado do Tejo, sinto uma imediata simpatia, porque a ligo implicitamente a quem tem uma vida mais dura, mais exigente, que nos deve merecer grande respeito. Ontem estive na "outra banda". Tinha chegado a Lisboa, cerca das seis da manhã, depois de uma ida-e-volta relâmpago, de mais de mil quilómetros, para participar num debate, lá bem no norte, em Chaves. Dormi umas horas e rumei para a "outra banda", inserido num exercício de idêntica natureza.
 
É a Europa, Portugal nela e o que se deve fazer para interessar os portugueses por essa temática que esteve no centro dessas duas conversas, com algumas dezenas de pessoas cada. Nestes dois dias, ouvi muito. Testemunhos desencantados de quem perdeu a esperança numa Europa na qual já acreditou, mas igualmente teimosas profissões de fé num projeto que, não obstante o facto de já ter tido melhores dias, nem por isso deixa de ser, para muitos, uma grande e entusiasmante aventura. E dúvidas, muitas dúvidas, algumas que somei às minhas. E porque a Europa não é uma ideia neutra, ela surge cada vez mais ligada, nos discursos comuns, às questões políticas caseiras, que quase sempre a poluem de algum desânimo.
 
Com o tempo, aprendi que o destino da ideia europeia, da sua popularidade, é isso mesmo, essa permanente dependência das agendas nacionais, das conjunturas, dos altos e baixos da vida dos povos. Para mim, contudo, e sem a menor sombra de dúvida, a Europa continua a ser o lugar geométrico onde se concentra o essencial das esperanças num futuro melhor para Portugal. Mas, às tantas!, isso talvez se fique a dever ao facto das minhas ideias também serem, muitas vezes, de uma "outra banda". 

sábado, fevereiro 22, 2014

"Preparemo-nos! Ide!"

Na sua imperdível crónica no "Diário de Notícias", Ferreira Fernandes falou ontem de Bernard-Henry Lévy, o filósofo francês que estimulou Nicolas Sarkozy à invasão da Líbia e que, recentemente, surgiu, no alto da tensão ucraniana, a estimular publicamente em Kiev os opositores ao regime a rebelarem-se pela força.

A França é muito dada à gestação deste tipo de "guerrilheiros da palavra", de corajosos combatentes com os mortos dos outros, prenhes de gesticulação mediática e com uma avaliação das consequências das lutas ao nível das batalhas de soldadinhos de chumbo. Lévy é um filósofo de algum mérito, com uma expressão mediática constante, uma exagerada exposição da sua figura física e do seu verbo. Veste-se daquilo que os brasileiros qualificam de "esporte fino", isto é, bons fatos com camisa branca aberta até ao terceiro botão, a mostrar o peito, cabelo ondulado e esvoaçante graças à eficácia da laca. Lá o vi, há semanas, no "Flore", em Paris, preponderando numa corte de admiradores.

Na minha terra, em Vila Real, há um exemplo clássico destes estrénuos lutadores com as forças alheias, que o meu pai me recordava sempre. No início dos anos 60, aquando de uma das primeiras incorporações para a guerra colonial, ficou famoso o discurso jingoísta de um capelão do Regimento de Infantaria 13, o qual, voltando-se para os militares em parada, a dias de partirem para o braseiro de Nambuangongo e similares, terminou a sua alocução com uma frase que ficou histórica: "Rapazes! Preparemo-nos para a guerra. Ide!"

sexta-feira, fevereiro 21, 2014

"Aqui havia uma casa"

Na minha infância, nas estantes da sala, havia um livro com um título que sempre me intrigou: "Aqui havia uma casa". A autora era Ilse Losa. Só anos mais tarde li o livro. Retratava a comoção de uma refugiada que regressa à sua casa de infância, que abandonou por virtude da guerra, e só encontra o espaço vazio no lugar onde nascera. Há dias, lembrei-me deste título.

No início da passada semana, numa montra em Londres, vi um sobretudo a um preço convidativo. Era um saldo. Entrei, negociei e comprei. Era necessários uns arranjos. Estaria pronto no dia seguinte.

Só pude voltar três dias depois. Entrei na rua e procurei a loja. Não a encontrei. Teimodo, pensei para comigo: "aqui havia uma casa" de roupa! Podia ter-me enganado mas, por outras referências na área, concluí que estava no lugar certo. De súbito, notei um espaço vazio, uma loja abandonada. Devia ser ali. Perguntei na vizinhança, mas ninguém se lembrava da loja. Mas que distração minha! Então eu não tinha o talão?! Claro que sim, só que o endereço nele indicado era... fora de Londres.

Pelo endereço, cheguei a um telefone. Começou uma longa saga. A certo passo, apareceu na linha alguém que sabia da loja desaparecida. Tinha sido um espaço alugado apenas para a época dos saldos. Fechara na véspera! E o meu sobretudo? Era difícil saber o seu paradeiro. "Talvez daqui a uns dias apareça", disse-me um cavalheiro, que me deixou um número de telemóvel e me pediu uma morada para onde "tentaria que o sobretudo fosse enviado". Tudo muito vago. Eu partia nessa noite para Lisboa; não podia ser ainda nesse dia? "Sorry! No way!"
 
Chegado a Lisboa, bombardeei a empresa com emails. Sem resposta. O meu único interlocutor respondeu, numa chamada telefónica, que... deixara de trabalhar na empresa. Mas que sabia que o assunto estava a ser tratado. Comecei a ver o caso mal parado. Sobretudo, vi o sobretudo cada vez mais longínquo.
 
"To make a long story short": o sobretudo (só espero que seja o mesmo!) apareceu ontem! Uma semana depois. Um amigo cuidou de o ir buscar. Agora está em Londres, o que não dá jeito nenhum. Se alguém souber de um portador, ficaria agradecido. A sério!

Em tempo: o sobretudo vem pelo correio. Obrigado pela gentis ofertas dos benévolos portadores.

quinta-feira, fevereiro 20, 2014

Cova da Moura


É uma sensação curiosa voltar a um local que conhecemos bem, que nos foi íntimo, e olhar em volta, notar as diferenças, as novas caras que agora o ocupam, o novo discurso que as atravessa. Aconteceu-me esta tarde, na mesma sala que a fotografia mostra, sentado àquela mesma mesa.

Não estive presente no momento retratado, em fins de abril de 1974, naquela que creio que foi a segunda aparição pública da Junta de Salvação Nacional (havia estado na primeira, na noite de 25 de abril, na RTP). Trata-se da sala de reuniões do palácio da Cova da Moura, que até então fora o Secretariado-Geral da Defesa Nacional e que se tornaria a sede da Junta. Na foto há muitas caras conhecidas, mas noto o meu amigo João Paulo Guerra, então repórter do "Rádio Clube Português".

Algumas semanas mais tarde, eu viria a ser chamado a trabalhar com a Junta, como assessor. Nessa qualidade, várias vezes estive naquela sala, na altura sob a alçada do gabinete do general Costa Gomes, que herdou o gabinete de António de Spínola, quando este se mudou para o palácio de Belém, depois de entronizado presidente da República.

Cerca de 20 anos depois, e por mais de cinco anos, em funções governativas, tive o gosto de vir ocupar esse mesmo gabinete, com esta mesma sala a servir-me para muitas reuniões, em especial para os encontros semanais da Comissão Interministerial dos Assuntos Comunitários (CIAC) - um exercício de coordenação com representantes de todos os ministérios envolvidos na vida europeia (apenas o Ministério da Defesa não tinha razão para estar regularmente presente). Um dia, Jaime Gama e eu decidimos atribuir àquela sala o nome de Ruy Teixeira Guerra, uma homenagem simples a um grande embaixador, um precursor da política de integração europeia de Portugal.

Passaram mais 20 anos. Regressei hoje uma vez mais àquela sala, para um debate, com um convidado estrangeiro, sobre o acordo comercial entre a UE e os EUA. Verifiquei que alguém, entretanto, se lembrou - bela lembrança! - de nela colocar, numa moldura, a fotografia que recorda a célebre reunião da Junta de Salvação Nacional. Sabe sempre bem regressar a um lugar que nos diz muito.  

Poesia

Fui há pouco ouvir Helder Macedo apresentar o livro "Ritornelos", onde se acolhem poemas de Joana Emídio Marques. É o seu primeiro livro de poesia. Deixo aqui um texto:

Beirute
e  já não há carne que possa chamar um nome,
fico a vê-la 
ir pela estrada de pó
que não leva à cave-escombro sem interior
mas aos hologramas que atravessam os olhos
e abrem neles um grande buraco.
Beirute morre
ou serão os hologramas
que a comandam e arrancam a carne à desolação?
Ele atravessa Beirute
sem ver senão o que paira nos lábios do que não responde.
Já não há carne que possa evocar um nome
nem sequer Beirute.

Ele atravessa Beirute
e não vê o corpo que carrega.
Só ela sabe que Ele veio dessa vez
a única vez.
E carregou-a nos braços
depositou-a no sono.
Só ela sabe que Ele veio dessa vez
tomar-lhe a carne
espalhá-la pelas ruas de pó
pela face dos que fogem
pela boca dos que gritam
Beirute
Beirute.

E já não há carne
a que se possa chamar um nome.
Só Deus atravessando uma palavra,
carregando-a nos braços
devolvendo-a ao sono, anuncia:
Beirute

O nome é Beirute. Podia ser Kiev. Dedico este poema a um amigo ucraniano, Roman Chlapak.

(A imagem que ilustra este post é um quadro de um autor ucraniano. Parece ser uma imagem da Primavera. Por ora, por lá, ainda é Inverno. Porém, mais cedo ou mais tarde, haverá Primavera na Ucrânia)

quarta-feira, fevereiro 19, 2014

Pela calçada


Os ambientes já andavam serenos demais.

O ping-pong cautelar/saída limpa não tem um "appeal" suficiente. Isaltino afinal (ainda) não saiu do xilindró. O Dux (ainda) não entrou para lá. Os Mirós (ainda) não foram vendidos. Que fazer?

Pronto! Está resolvido o problema! A Assembleia Municipal de Lisboa decidiu o fim da calçada portuguesa, em determinados locais, para facilitar a mobilidade. Ora aí está o tema para o "Prós e Contras"!

Estava a ver que não aparecia um novo polarizador de emoções! Este país de conversas de café necessita deles como de pão para a boca...

As vítimas da Ialta

Ialta é uma cidade ucraniana. Em 1945, no belo palácio Livadia, os destinos do mundo que iria resultar do segundo grande conflito mundial ficaram traçados. É uma triste ironia pensar hoje, olhando para os acontecimentos de Kiev, que a Ucrânia emprestou um dia o seu território para um "arranjo" geopolítico que é hoje parte da sua tragédia nacional.

Euroceticismo

Há dias, e durante algumas horas, prestei um testemunho, com objetivo histórico e académico, sobre a minha experiência diplomática. Foi muito interessante refletir em voz alta sobre cada uma das diversas fases desse percurso. Dei-me conta de que, ao ser inquirido, de forma conhecedora e informada, sobre determinadas temáticas, fui levado a aprofundar algumas perceções e a dar-lhes um significado diferente. O tempo ajuda muito a isto.

Uma das matérias que estiveram em evidência nesse exercício foi a questão europeia e, muito em particular, o modo como a diplomacia portuguesa se colocou perante o processo integrador. Já um dia fiz um boquejo escrito sobre a atitude das Necessidades nesse contexto, ressaltando que a escola soberanista prevaleceu fortemente, frente a uma certa pulsão europeísta minoritária. Já ouvi alguns opinarem que esse foi um confronto entre uma "direita", tributária da cultura tradicional da "casa", e uma "esquerda", titulada por alguns "jovens turcos" que apostavam na bondade intrínseca das instituições comunitárias, como âncora essencial para o "salto em frente" do país saído do 25 de abril, num tempo pós-imperial. As coisas, porém, não são tão simples e esquemáticas como isso. Alguma "esquerda" foi e é fortemente soberanista, talvez por razões diversas das de alguma direita. E outra "direita" tinha e tem uma atitude muito pró-europeia, nalguns pontos por motivos que divergem da "esquerda". Ainda falaremos mais disto por aqui um dia.

Hoje, quero apenas deixar registada uma consagrada historieta. Um alto funcionário de um importante ministério técnico-político português afirmava-se sempre abertamente crítico da opção integradora, entendendo que os interesses portugueses ficariam muito melhor defendidos se permanecêssemos fora do "clube" de Bruxelas. As suas ideias não prevaleceram e, um dia, numa reunião técnica, veio à baila a necessidade de Portugal fazer mais algumas concessões em matéria de soberania, então resistidas por certos setores. Implicitamente, o homem sentiu-se vingado e logo se saiu com esta:

- Então não foram os meus amigos que quiseram entrar na grande "orgia" que é a Europa? E agora não querem tirar as calças?

Concedo que a frase não é de extrema elegância, mas ficou na memória desses primeiros tempos de Portugal na CEE. Diz quem assistiu que foi um grande momento...

terça-feira, fevereiro 18, 2014

Vitor Gaspar

Acabei de ler a longa entrevista de Maria João Avillez a Vitor Gaspar, que agora saiu em livro. Não me trouxe grandes surpresas, mas deu-me alguma informação que não tinha. Sem qualquer ironia insultuosa, várias vezes me lembrei, ao longo do texto, da frase de Salazar - "sei o que quero e para onde vou".

Vitor Gaspar mostra, com uma transparência de que talvez ele próprio não tenha total consciência, a arquitetura cristalina do seu pensamento. Compete a um decisor político fazer escolhas, hierarquizar valores. Vitor Gaspar fá-las sob a lógica de um determinismo que a si próprio se impôs, porque não se permite pensar "fora da caixa", porque isso violentaria o modelo que, para si, considera sagrado, por inelutável e inescapável. O capítulo em que fala da construção da TSU é, talvez, o mais paradigmático exemplo dessa distanciação a que se obrigou. Diz também muito do entrevistado o modo como aborda a indignação social que o anúncio da medida gerou, que vai muito para além da surpresa: sente-se, no fundo do rebuscado discurso, como que um indizível impulso de "mudar de povo", para utilizar o termo de Brecht. Uma última nota: o país, a Pátria, Portugal surgem sempre na "narrativa" do antigo ministro quase que como uma mera dimensão geográfica, produto de um acidente histórico, despido de qualquer afetividade, como se o esgrimir do sentimento nacional pudesse poluir o rigor da aplicação do modelo. É impressionante!

(No meu tempo de culto marxista, cuidava em "corrigir-me", sempre que notava em mim uma deriva "mecanicista", isto é, a crença na causalidade mecânica, histórica ou social; ao ler este discurso, constato que esse desvio "marxiano", porque não marxista, faz parte integrante do estado a que hoje chegou a ideologia liberal, embora "ao invés").

Saí deste livro - um livro indispensável, um serviço público para a compreensão dos atores políticos contemporâneos do país e daquilo que os orienta, que ficamos a dever à boa escrita de Maria João Avillez - com um sentimento de imensa preocupação.

França

Começam agora a conhecer-se melhor os pormenores do entendimento que impediu o ataque de uma coligação de potências ocidentais ao poder militar sírio. Uma “oportuna” proposta russa, que abriu a porta à entrega das armas químicas detidas pelo regime de Damasco, deu então aos Estados Unidos o pretexto de que Obama necessitava para não ficar na História como mais um presidente americano responsável por uma acção armada sem mandato legitimador.

O “Le Monde” trazia, há dias, interessantes revelações sobre a decepção que este recuo de Washington trouxe ao governo francês, o qual, desde o início, se havia revelado o mais empenhado e entusiasta proponente de um ataque militar, tal como depois se assumiria como o maior “falcão” na negociação nuclear com o Irão. E é interessante constatar que o recorrente alheamento alemão e o conjuntural anti-belicismo britânico transformaram Paris no “enfant chéri” dos americanos, como há uma semana se observou no tapete vermelho que a Casa Branca estendeu a Hollande.

Mas, que diabo! Não é a França que está na soleira de uma crise de défice, que ameaça o cumprimento das metas europeias, já para não falar da observância dos objectivos do Tratado Orçamental? Não terá a França outra coisa mais em que pensar do que empenhar-se em dispendiosas operações militares, como já foram a Líbia e está a ser o Sahel, sendo óbvio que essa nova “drôle de guerre” não seduz um único eleitor interno? É o resgate da memória de uma potência decadente que leva Paris a envolver-se desta forma no seu tradicional “Proche Orient”?

Ao afirmar a sua centralidade no tabuleiro político-militar global, a França demonstra que, independentemente dos líderes de turno, tem a perfeita noção de que a sua força simbólica no mundo resulta da preservação de um vasto conjunto de sinais, onde não é descurado o seu aparelho diplomático, a atenção às Forças Armadas e uma aguda percepção da importância das suas alianças e fronteiras estratégicas. A França percebe que, na barganha económico-financeira a que não poderá furtar-se no quadro continental, esta sua relevância à escala internacional não deixará de ser contabilizada. E ponderada.

Os países com História e com laços que dela derivam têm a obrigação de não descurar o conjunto de projecções que deixaram na memória colectiva internacional, de aproveitarem, se possível ainda com maior acuidade, todos esses “nichos” de afirmação potencial, que os tornam relevantes aos olhos da comunidade global, que lhe oferecem uma capacidade de interlocução em diversos tabuleiros, da cena diplomática à projecção militar. Dir-se-á, com realismo, que nem todos são a França, que o poder de outros Estados com evidentes debilidades não se assemelha ao de uma das maiores economias do mundo. Assim é, mas há países que já deram provas que, no quadro internacional conseguem “to punch above its weight”, para usar uma expressão historicamente cunhada. Felizes os Estados cujas lideranças têm a lucidez para perceber que é na área externa, onde hoje se joga muito do seu destino, que é necessário manter uma presença activa, mobilizada e consciente dos seus interesses estratégicos. E, a contrario, infelizes os outros.

Artigo que hoje publico no "Diário Económico"

segunda-feira, fevereiro 17, 2014

Helicópteros

No sábado, à conversa com o meu amigo Benjamim Formigo, numa almoçarada alentejana no dia em que deixou de poder cantar o "When I'm Sixty-Four", veio à baila o nome de um amigo comum, Arlindo Ferreira, um homem de abril, militar da Força Aérea há anos desaparecido, cuja amizade nos faz muita falta. 

O Arlindo era um dos mais hábeis pilotos portugueses de helicópteros. Nunca esquecerei uma noite, em Luanda, há muitos anos, quando ele, que adorava helicópteros, me descreveu os riscos dos acidentes com esse tipo de aeronaves. Tendo ouvido, depois disso, muitas histórias sobre a gravidade dessas ocasiões, mesmo por parte de outros experientes pilotos, sempre que posso escapar a uma viagem dessas faço-o.

Desconfio imenso de helicópteros. Evito andar neles, sempre que posso. Há uns anos, no Rio de Janeiro, vieram perguntar-me se eu me não importava de prescindir do meu lugar, a acompanhar uma importante personalidade política portuguesa, numa viagem a uma plataforma petrolífera "off-shore". Ainda estou hoje para saber se o entusiasmo esfusiante com que acedi ao pedido não foi mesmo mal interpretado. É que tive menos boas experiências na Noruega, num "voo tático" da RAF durante um exercício da NATO, rasando cumes, e em Angola, numa interminável viagem de ida e volta de Luanda a Cabinda, em que eu aguardava um tiro a qualquer momento. E não me senti nada confortável em outras viagens - por cá, nos Estados Unidos, no Congo, na Itália, no Tajiquistão, no Brasil, na Coreia do Sul, em Israel, entre alguns poucos locais mais onde as fiz, às vezes, penso agora, podendo tê-las evitado. 

Daquela vez, porém, era inescapável. Tratava-se de uma viagem da OSCE (Organizaçāo para a Segurança e Cooperação na Europa) à Geórgia, em 2003. O programa incluía uma deslocação à secessionista Abcázia, uma zona de onde, depois de violentos combates em 1992/3, centenas de milhares de cidadãos georgianos tinham sido expulsos. Já na véspera, eu não me conseguira furtar a uma ida de helicóptero à fronteira (belíssima) que separa a Geórgia da Chechénia e do Daguestão, onde frequentemente ocorriam incidentes.

Entre a Geórgia e a Abcásia (a Geórgia considera a Abcásia território seu, embora esta tenha declarado a sua "independência", reconhecida em 2008 por Moscovo, seguida até hoje por apenas mais quatro Estados), existe uma imensa "terra de ninguém", repleta de ruínas de zonas urbanas e rurais fustigadas por bombardeamentos. A operação internacional de "manutenção da paz" na Abcásia era então levada a cabo pelas Nações Unidas (a missão acabou em 2009, por pressão de Moscovo), que mandou helicópteros buscar-nos perto da "fronteira" geórgio-abcase, na localidade de Poti, onde tínhamos chegado de avião, idos de Tbilisi. Quando saí do avião e me encaminhei para os helicópteros fui surpreendido por encontrar aparelhos russos Mi-24, ao serviço da Ucrânia, utilizados pela ONU. Desde sempre, nunca fico sossegado quando me é dado ter de viajar em meios aéreos da antiga União Soviética. Preconceito? Talvez seja.

Ao entrar com os meus colegas num dos dois imensos helicópteros que nos iam levar a Sukumi, capital da Abcásia, numa viagem de muitos largos minutos, pude verificar que eram aparelhos antigos, com mostras de excessivo uso no equipamento do seu interior. Vi a minha perplexidade partilhada nas caras dos meus companheiros de viagem. Para me entreter, e porque estava curioso para fotografar as zonas devastadas pelos combates, em especial o célebre vale de Kodori, que no passado fora palco de grandes lutas, preparei a minha máquina, já que tinha conseguido um lugar com boa visibilidade. Mas nada correria como eu tinha previsto.

Mal o helicóptero levantou, a direção que seguiu foi bem diferente: avançou para dentro do Mar Negro, como se dirigisse para sul, ao invés de oeste. Devo ter feito uma careta de espanto, quiçá de desagrado, o que levou um imenso e loiro militar ucraniano, no meio do barulho infernal que nos obrigava a usar uns grandes protetores de ouvidos, a fazer com a mão um gesto que podia representar a deslocação de um avião. Não percebi nada e era impossível trocar palavras naquele vasqueiro. Algum tempo depois, sempre a sobrevoar o mar, lá nos aproximámos de Sukhumi, idos do Sul, como se viajássemos da Turquia para Norte.

Já fora do aparelho, o militar ucraniano aproximou-se de mim, sorridente e perguntou, num inglês macarrónico: "ficou surpreendido por não voarmos sobre a terra?". Eu respondi que sim, embora não confessasse que era por causa das fotografias frustradas, que nunca são de bom tom em zonas de conflito. Foi então que ele me explicou o significado do gesto "aéreo" que antes me fizera. Cerca de dois anos antes, um helicóptero das Nações Unidas tinha sido abatido por um míssil terra-ar, provocando nove mortos, e, por essa razão, os voos faziam-se agora por um trajeto bem longe da costa. Fiquei "ciente", como se diz na minha terra... Já não bastava andarmos em helicópteros do tempo da URSS e ainda havia o risco de levarmos com um míssil. Claro que, até ao termo da viagem de regresso, não pensei noutra coisa.

Não gosto de helicópteros, pronto!

domingo, fevereiro 16, 2014

São Valentim?

Sexta-feira passada foi dia de São Valentim. A propósito, veio-me à memória a história que um amigo português, residente em Londres, me contou um dia. Ao aproximar-se a data do "dia dos namorados", que também se ligava com um fim de semana, decidiu oferecer-se, bem como à sua mulher, uma estada e um passeio pela zona sudoeste da Inglaterra, por Cornwall. Desafiou um casal amigo, também português, a juntar-se-lhes. No "Michelin", ele havia descoberto um hotel que parecia muito simpático, numa pequena localidade, já próxima do cabo mais ao sul do Reino Unido.

Cornwall era uma região onde ainda nenhum dos quatro viajantes tinha ido. Esse meu amigo, contudo, já se deslocara bastante pela Inglaterra. Durante os meses que haviam antecedido a chegada da mulher a Londres, tinha passeado sozinho, quase todos os fins de semana, por várias zonas do país. Porém, esse "sozinho" era um conceito que a mulher nunca "digerira" por completo, porque sempre alimentou uma suspeita residual sobre todo aquele afã turístico fora de Londres, a montante da sua chegada. Coisa de mulheres ciumentas, claro!

Nesse tempo sem GPS dos anos 90, as pequenas cartas das localidades que os Guias Michelin traziam eram de grande utilidade, para evitar perdas de tempo. A localidade onde iam alojar-se não era grande e o meu amigo havia-se dado ao cuidado de decorar o caminho que, desde a entrada no pequeno burgo, era preciso fazer para chegar ao hotel. E, por essa carta, até ficou a saber que o hotel ficava à esquerda, no fundo de uma determinada rua.

A viagem foi agradável, com uma conversa divertida, entre casais que, não sendo íntimos, se davam bem. Chegados à localidade, esse meu amigo, que conduzia, começou a cortar à esquerda e à direita, nas esquinas das várias ruas, recordando-se com precisão do mapa para que tinha olhado com atenção, na véspera. Os companheiros de viagem estavam surpreendidos com tanta destreza. A mulher ia em silêncio. A certo passo, o meu amigo teve um derradeiro momento de "glória", ao anunciar: "o nosso hotel fica na segunda rua do lado direito; ao fundo da rua, à esquerda". E ficava mesmo.

O casal acompanhante estava siderado! Como é que ele tinha "dado" com o hotel, conduzindo, rua a rua, sem hesitação, sabendo mesmo de que lado da artéria se situava o hotel? Não, não era possível que ele nunca tivesse ido àquela localidade! O meu amigo, para gozar o momento, ia adiando a revelação do truque que tinha utilizado. Foi então que a mulher, ainda no hall do hotel, de cara muito fechada, lhe disse: "Com que então nunca cá tinhas vindo?" E disparou para o quarto, amuada, antes que ele tivesse tempo de revelar o engenhoso método de orientação utilizado. As explicações que depois lhe tentou dar caíram em saco roto.

Esse dia de São Valentim havia ficado, em definitivo, estragado. O ambiente do jantar a quatro ressentiu-se também. Ao café, os dois maridos encostaram-se ao bar a tomar um whisky, tendo comentado entre si o incidente. Foi aí que o companheiro de viagem do meu amigo, críptico, se saiu com esta: "Será que a sua mulher foi influenciada pelo nome português desta zona?". O meu amigo hesitou um leve segundo, antes de se juntar ao companheiro numas boas gargalhadas, cuja razão não revelariam nunca às mulheres. É que, em português, Cornwall, traduz-se por Cornualha...

O outro 25

Se a manifestação dos 50 anos do 25 de Abril foi o que foi, nem quero pensar o que vai ser a enchente na Avenida da Liberdade no 25 de novem...