domingo, março 09, 2014

A Europa e a Crimeia

Teresa de Sousa é, de há muito, uma sagaz observadora das coisas internacionais. Tenho por ela um grande respeito e leio-a sempre com atenção e proveito. Hoje, no seu habitual artigo no "Público" (ser assinante permite-nos consultá-lo a esta hora matutina), suscita uma ideia interessante, resumida no próprio título do texto: "A Europa joga o seu destino na Crimeia". A tese central é a de que, face à atual tensão, e perante o grau de implicação que os americanos parece estarem dispostos a assumir, a Europa tem, na crise ucraniana, a oportunidade "da sua vida" para recuperar a sua relevância, a ser feita através de uma atitude comum, em consonância tática com Washington. O tom das conclusões do último Conselho Europeu anima a articulista, que delas também retira virtualidades para a sobrevivência e/ou reanimação da relação transatlântica,

Muitas vezes estou de acordo com Teresa de Sousa, mas não é este o caso. Acho que a avaliação feita daquilo que resultou da reunião dos chefes de Estado e governo da UE peca por "wishful thinking". A retórica unificada que saiu dessa reunião irá - não tenho disso a menor dúvida - esboroar-se a partir do momento em que a passagem a um estádio superior de medidas "punitivas" a Moscovo (que deverão ser propostas, porque tudo indica que a Rússia não vai ceder no essencial) venha a defrontar-se com as previsíveis reações retaliatórias do "outro lado". Nesse momento, os Estados europeus constatarão que, dentre eles, alguns sentirão mais do que outros o preço de uma quebra dos mecanismos de relação político-económica com a Federação Russa. E isso não deixará de ter consequências imediatas na sua unidade decisória, muito para além da conversa bruxelense, à qual Putin colocará a questão posta por Estaline face à condenação da sua política pela Santa Sé: "Quantas divisões tem o Papa?"

Posso estar enganado, mas tenho a sensação de que a Europa comunitária, com a sombra da NATO a ajudar, acabou por meter a Ucrânia numa "grande alhada". Fê-lo por alguma irresponsabilidade induzida essencialmente pelos Estados bálticos e alguns outros países da antiga "cortina de ferro" - a "nova Europa" de Donald Rumsfeld -, como reconhece Teresa de Sousa, ao falar da "obsessão desses países em continuarem a olhar a Rússia como uma ameaça".

Sei que me arrisco a ser visto como um perigoso "realista", mas nunca tive a menor ilusão sobre a possibilidade da Ucrânia poder exercer o seu pleno direito de opção estratégica. Há "soberanias limitadas"? Claro que há, porque a geografia não se improvisa. Que o diga Cuba.

Tenho hoje a firme convicção de que a Europa perdeu um ensejo precioso de desenhar um modelo de relacionamento "possível" com Kiev, porventura menos ambicioso mas bastante mais pragmático. Um modelo à medida do país muito particular, geopoliticamente falando, que a Ucrânia é e continuará a ser. A União Europeia não percebeu, ou não quis perceber, as lições que deveria ter retirado da atitude russa na crise da Geórgia - e, em especial, da "liberdade" então recuperada por Moscovo para reatuar com maior liberdade nas suas próprias "águas territoriais", em face da então mitigada reação de Washington, secundada pelo já então ineficaz gesticular europeu. Se o tivesse feito, não se deixando seduzir por uma agenda marcadamente anti-Moscovo, talvez tivesse ajudado Putin a reconhecer as vantagens de algum reconhecimento de "respeitabilidade" no plano internacional e apostado na sua adesão, pelo menos formal, a uma ordem global mais dialogada. Não o fez, "armou" em potência e agora resta-lhe "bombardear" Moscovo com comunicados e engrossar a voz. 

Com a presente crise, que ameaça alguns dos seus interesses estratégicos essenciais - a alguém passou pela cabeça que Moscovo iria permitir a indução de riscos no seu acesso naval ao Mar Negro? -, a Rússia já mostrou que está disposta a pagar um preço forte na sua imagem. Nada que um poder essencialmente autoritário não possa comportar. Quem pode vir ainda a sofrer, no rescaldo desta crise, são os opositores internos a Putin, que cada vez mais se sentirá desobrigado de ter de fazer "de democrata". Perdido por cem...

Uma nota final. Se Bruxelas conta com a permanência da intransigência de Washington, no início de um tempo presidencial de fim de ciclo, pode muito bem vir a estar enganada: sem a ajuda prática da Rússia, os EUA não conseguirão retirar as suas tropas do Afeganistão no calendário previsto. E esse é um compromisso que Obama não pode falhar, porque é feito perante o único país que os Estados Unidos verdadeiramente respeitam: a América.

15 comentários:

Anónimo disse...

O debate ontem na Sic foi elucidativo, 3 professores universitários+Milhazes este último sabia do que estava a falar.
Sobre a Crimeia é difícil publicamente poder destoar do que diz a vox populi. Apesar de ter ido a algumas conferências de especialistas, incluindo Franck e Défraigne ainda não tenho opinião formada. Mas ao abrir o fb vejo que toda a gente já tem opinião formada.
Questões: poderia a Europa no passado ter sido mais generosa quando o cacau era desviado para uma clique.
Alguém se lembrou dos tártaros?
Uma Ucrânia recomposta não estará ironicamente agora mais perto da UE?
Se aceite o resultado do referendo na Crimeia quid da Catalunha e Escócia?

Anónimo disse...

E, afinal, qual é o valor do dinheiro? Então se os bancos "gelassem" todos os capitais que os novos capitalistas russos têm por esses bancos, fora da Russia, o que é que dava? Não afligeria no interior os sustentáculos de Putin? Ou o dinheiro é só papel timbrado sem outro valor?
José Barros

domingos disse...

Eu diria que ganhando a Crimeia (que nunca deixou de ser sua), Putin perde a Ucrânia. É a equação básica do custo/ benefício. Acho que o Ocidente não tem qualquer interesse na Crimeia, mas este incidente representa um capital de queixa valioso para polarizar o sentimento anti-russo da Ucrânia e incliná-la para a esfera europeia. Julgo que a Europa, mantendo embora alguma estridência retórica, só ganha agora em deixar correr as coisas. E O Putin também. Ou estará ele a pensar que alguém quer negociar com ele o que quer que seja? Digo eu.

Defreitas disse...

Excelente, Senhor Embaixador, Excelente ... o vosso "post".

O que me revolta é a hipocrisia ambiente nas nações europeias que engolem tudo o que os Americanos lhes "vendem". A animosidade desalmada dos media na Europa e nos EUA contra Putine reflecte também uma prática antiga. Os EUA estão tão habituados a lidar com dirigentes que se calam e se abstêm de formular criticas apropriadas sobre a criminalidade da política de Washington, que quando um Putine chega e exprime uma condenação mesmo relativamente moderada, vê-se logo catalogado de Inimigo Público N°1 !
Em 2 de Março, John Kerry condenou " o acto incrível de agressão" da Russia na Ucrânia (Crimeia) e ameaçou de sanções económicas . " No 21° século, disse ele, não se comporta como no 19° século invadindo um pais sob um pretexto inventado".
O Iraque foi no 21° século! Kerry votou a favor . Uma hipocrisia de tal amplitude deve ser saudada!

Há um facto que o grande público desconhece e que vale a pena analisar. Aquele famoso NED (National Endowement for Democrac)) criado por Reagan em 1983 destinado a promover a acção política e a guerra psicológica contra os estados em" desamor" com a politica estrangeira dos EUA, é a principal arma civil de Washington para efectuar um mudança de regime. Basta ler o site da NED para constatar que este organismo apoiou financeiramente estes últimos anos na Ucrânia 65 projectos. A filosofia de base, la voilà: Os trabalhadores e outros cidadãos serão mais bem servidos por um sistema de livre empresa, de cooperação de classe, de negociação colectiva, de intervenção minima do governo na economia e uma oposição ao socialismo sob todas as formas. A economia de mercado é assimilada à democracia, à reforma e ao crescimento, ao bem fundado dos investimentos estrangeiros na economia.

A ideia era que a NED faria mais ou menos abertamente o que a CIA fazia secretamente desde há dezenas de anos , na esperança que a má nota da CIA e as suas operações secretas seriam esquecidas.
Porque é que a NED financia 65 projectos num pais estrangeiro? Porque é que os funcionários da NED preparavam um sucessor ao presidente Ianoukovitch , legalmente e democraticamente eleito em 2010 e que propôs de adiantar novas eleições que permitiriam de o eliminar ou conservar no poder "democraticamente"?

Este presidente , que digamos à passagem, era tão corrompido como os precedentes, foi aceite pela NED enquanto aceitou as exigências da UE para os novos "acordos comerciais" e as "severas reformas económicas" exigidas pelo FMI, mas quando considerou que o preço era elevado para os Ucranianos e preferiu o acordo mais generoso da Rússia, foi imediatamente transformado num alvo para a mudança de regime.
Não se fez nenhuma publicidade na imprensa ocidental à proposta de Ianoukovitch de nomear dois oponentes ao regime para os postos de primeiro ministro e vice primeiro ministro! (Nomear um vice - primeiro ministro pode economizar uma crise de regime, por vezes !). Mas os "guias" das manifestações queriam um "putsch" ! E hoje sabe-se que este" putsch" estava financiado pela NED e os especialistas ultras (snippers) contratados, que dispararam mesmo contra os seus para provocar a massa revoltada da praça Maidan.

Uma conversa telefónica interceptada entre Urmas Paet, MNE da Estonia e Catherine Ashton , "petit" MNE da UE, revelou que Paet disse : " Claro que são os "snippers" de elite que dispararam, não os do presidente, mas os da nova coligação".
Destes manifestantes, muitos anti-semitas, o que levou o jornal "Haaretz" de Tel-Aviv de 24 de Fevereiro ( rabino Moshe Reuven Azman) a aconselhar aos Judeus de Kiev de sair da Ucrânia.

Anónimo disse...

Quem sabe, sabe!

Anónimo disse...

A Crimeia não será o Kosovo da Rússia?

Defreitas disse...

Ao anonimo das 12:58

O Kosovo fazia parte do projecto global dos EUA de cerco militar da Rússia. Projecto englobando os países do Pacto de Varsovia, um a um. A "velha" Europa de Rumsfeld, como escreve o Senhor Embaixador.Foi isto que fez dizer a Putine : Olhem bem!
"A NATO é uma organização militar, sim ou não? Sim, é uma organização militar. Aproxima-se das nossas fronteiras, sim ou não? Claro que sim. E porquê ? "
Os EUA, a NATO e a UE, mais as suas fililiais - FMI, Banco Mundial, OMC, , estas últimas impondo o fundamentalismo do mercado, constituem o Grande Poder Universal, e estão ligadas entre elas.
Os EUA esforçam-se de dominar o mundo desde há um século ou mais.
E quem ameaça a dominação dos EUA? Quem pode contestar a hegemonia do Grande Poder? Só a Rússia e a China .
O interesse estratégico da Ucrânia para a Rússia, compreende-se melhor quando se sabe que a Europa de Leste foi uma auto-estrada utilizada duas vezes pelo Ocidente para invadir a Rússia, com o custo exorbitante de dezenas de milhões de mortos Russos.
Arrancar a Ucrânia à zona de influência Russa, expulsar a frota Russa do Mar Negro e estabelecer uma presença militar americana e/ou da NATO na fronteira russa, voilà o objectivo. Tudo isto bem explicado no "post" do Senhor Embaixador.

Anónimo disse...

Sugestão: sigam o Pepe Escobar, o mais assertivo dos analistas ... http://www.atimes.com/atimes/Central_Asia/CEN-02-050314.html

Anónimo disse...

Algumas pessoas continuam a viver num passado, não compreendendo que a União Soviética e a ideologia comunista foram derrotados pelo ocidente liderado pelos EUA. Ficam agora satisfeitos com a reação da Rússia, julgando que voltam aos bons velhos tempos. Não compreendem que a Rússia, apesar dos seus esforços já não consegue ser um actor estratégico de primeiro plano, nesse nível apenas estão os EUA e a China.
Concordo plenamente que a Ucrânia tem uma soberania limitada e a UE não pode oferecer-lhe mais do que um Acordo de Associação, mas para isso a Ucrânia tem de se reformar e limpar a corrupção sistémica que nela grassa a todos os níveis.
Obviamente que não é possível aceitar a integração da Crimeia na Rússia, nem expulsar a Rússia de Sebastopol.

LBA

Defreitas disse...

Sem duvida nenhuma, a única alternativa deixada por Putine ao Ocidente é a guerra nuclear!

Cada vez que Hollande et Obama ameaçam Putine com pistolas a jacto de água plásticas, Frau Merkel em Berlim e Cameron em Londres contam mais uns pontos para a economia dos países respectivos! Só uma nuvem para os apoquentar : a falência da Ucrânia, que daria um abanão na saúde desses pobres banqueiros da UE que emprestaram milhares de milhões!

Defreitas disse...

A LBA - 17:57:

Escreve, e muito bem, que o comunismo foi vencido, assim como a União Soviética. Sem dúvida nenhuma. O problema é que, contrariamente àquilo que poderíamos esperar, o fim dos dois "empecilhos" nem trouxe a paz ao mundo nem o fim da corrupção nos países mesmo democráticos, e ainda menos a justiça social e o fim da fome no mundo. Entretanto, o mundo é muito mais rico que nunca, porque os trabalhadores nunca produziram tanta riqueza que desde o fim da segunda guerra mundial.

Penso, ao escrever estas palavras, no que escrevia George KENNAN, responsável da planificação do departamento de Estado americano em 1948. : " Possuímos cerca de 60% das riquezas mundiais, mas somente 6,3% da população mundial...Nesta situação, podemos ser o alvo de invejas . O nosso dever no futuro é ....de manter esta situação de disparidade, criando uma rede de relações que nos permitirá de fazer perdurar esta desigualdade". Départment d'Etat - Planning Study "23, 1948

Não se trata de defender a Rússia , que já não é comunista mas sim capitalista, como a China, mas de reflectir ao facto que desde o fim da segunda guerra mundial os EUA , com o pretexto da guerra fria e de anticomunismo, foram os autores de mais de cinquenta intervenções militares, algumas duma violência terrível, e começaram a forjar o seu império desde então.

Hoje, o bloco de Leste já não existe mas é o mesmo impulso imperialista que guia o governo americano, em nome da democracia e dos valores universalistas americanos.
Aquilo que chamamos a "guerra fria" foi na realidade particularmente "quente", na medida em que milhões de homens, mulheres e crianças foram exterminados, no decurso de invasões mesmo sem o aval da ONU, de "pronunciamentos" e intervenções de todo o género da CIA, cada vez que certos Estados procuravam libertar-se politicamente e economicamente dos EUA.

Ao longo deste período, os EUA apoiaram numerosas ditaduras, esmagaram governos democraticamente eleitos e movimentos de libertação, em nome da democracia e da luta contra o complot comunista internacional.
E cada vez, com o objectivo claro de liquidar todo e qualquer movimento ou governo que poderia pôr em perigo os interesses económicos das firmas americanas. Assim, a expressão da democracia "ao molho " Washington , exerceu-se a golpes de massacres de massa, esquadrões da morte, de torturas, de golpes de Estado e de corrupção generalizada.

Assim, caro LBA, não são aqueles que denunciam esta política que vivem no passado, mas sim aqueles que não vêm que os EUA não mudaram em 60 anos e continuam no mesmo estado de espírito imperialista, mesmo após a queda do comunismo e da U. Soviética. Aliás, "à la rigueur", este álibi faz hoje falta aos EUA para justificar a sua política por vezes criminosa no mundo.

Mônica disse...

Francisco
Nunca tinha lido nem na VEJA uma explicaçao tao detalhada. E eficaz.
Toamra que depois de tudo lá no final nao sobre nada para nós brasileiros.
Será que vamos sofrer tambem com esta confusao toda?
com carinho monica

Anónimo disse...

Quando tiverem os tanques russos estacionados nas vossas ruas... façam o favor de lhes ir oferecer cravos!!! Putin está mais à direita que o PP, mas isso é só um pormenor!!

São disse...

Sou uma leiga, como é público, em política e , ainda mais em diplomacia e jogos de bastidores.

Não acho Putin um modelo de virtudes,mas também não suporto a duplicidade de critérios e a hipocrisia dos EUA e da UE.

Defendem agora que a Ucrânia não pode ser dividida, mas o Kosovo foi criado artificialmente.

Não houve dinheiro para ajudar a Grécia e assim evitar tudo quanto se passou depois, mas agora aparecem largos milhões para entregar a um grupo de pessoas que derrubaram na rua um Presidente eleito com o qual a UE mantinha relações e vem actualmente acusar de corrupto.Com a agravante de ser do conhecimento geral que nesse grupo estão presentes nazis assumidos.

Os EUA tendem a achar-se arrogantemente um modelo de moral e de seriedade e, sob esse pretexto, exportam democracia à bomba e nem se coíbem de apoiar o regime de Apartheid em vigor em Israel....e depois têm o arrojo de criticar violentamente a Rússia.

Peço desculpa, mas existe aqui um jogo de sombras e equívocos em que uns nos são mostrados como bons e outros como maus.

Convém que se comece a pensar pela própria cabeça.

O que receio é ser mais uma vez a população a sofrer sob o fogo cruzado de interesses que nada se importam com ela e o seu sofrimento.

Boa semana

martinhopm disse...

Li agora 'A Europa e a Crimeia' e respectivos comentários. Não posso deixar de estar mais de acordo e de aplaudir os comentários de Defreitas. Informados, claros e com o seu quê de pedagógicos. Grande parte do público português é positivamente intoxicado pelo que lhe é fornecido pelos'media' nacionais, que de imparcialidade e transparência têm muito pouco ou quase nada. Para podermos formar uma opinião justa e imparcial sobre certos acontecimentos internacionais, mas não só, temos que procurar outras fontes de informação. E, na era da internet, isso até nem é muito difícil. Esta busca pode ser complementada por bibliografia vária. Indico como de leitura aconselhável, entre outros, «O Livro Negro da América», de Peter Scowen, «CIA, Jóias de Família», de Eric Frattini e «Confissões de um Mercenário Económico, A Face Oculta do Imperialismo Americano», de John Perkins.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...