quinta-feira, dezembro 03, 2020

Giscard


Quando emergiu para a grande política, era uma espécie de personagem “à americana”, num género que, depois de Kennedy e de Trudeau, seduzia muitos europeus. Tinha o vigor de uma nova geração, renovadora da V República, coveira assumida da IV. Falava bem (falava inglês, hélas!), com um discurso competente, ágil nas contas, sedutor na eficácia apregoada. Era, ao seu modo, um liberal, ideia mais velha do que antiga e que confere sempre um ar desempoeirado a quem, ciclicamente, a proclama. Mesmo em França, onde o liberalismo foi sempre um receita garantida para o insucesso político. Depois de o ter usado como degrau para as suas legítimas ambições, como ministro da Economia e Finanças, Giscard acabou por provocar um De Gaulle já em declínio, a quem deixou o seu, para sempre tido como oportunista, “oui, mais”. Após demarcar-se do gaullismo (o seu verdadeiro inimigo de estimação), mas conseguindo domesticá-lo por algum tempo em seu proveito, veio a derrotar, na primeira corrida à presidência, François Mitterrand, lançando-lhe, com genial precisão, o magnífico “vous n’avez pas le monopole du coeur”. Cavalgou, entretanto, a conhecida atitude francesa de tentar dominar o processo integrador querendo mostrar o país como mais europeísta do que os outros. Com Helmut Schmidt, com quem fez um dos “tandem” franco-alemão, foi o “inventor” do Conselho Europeu, nesse tempo uma estrutura ainda fora dos tratados. Giscard foi uma figura indiscutivelmente brilhante, uma estrela no firmamento político francês, mas parece também pacífico que era um homem deslumbrado consigo mesmo, ao mesmo tempo que projetava um modo aristocrático, quase monarquista, de afirmação política, um elitismo snobe e distante. A questão dos diamantes que lhe terão sido oferecidos pelo facínora centro-africano Bokassa perseguiu-o sempre e, de certo modo, contribuiu para acelerar o seu fim político. Teve um único mandato presidencial, somando, na derrota que Mitterrand lhe inflingiu em 1981, muitas culpas próprias, conjugadas com uma conjuntura internacional que lhe foi adversa. Manteve sempre o seu prestígio público e viria a ser recuperado para presidir à Convenção Europeia, em que desenhou o Tratado Constitucional, ideia que acabou por morrer na praia, mas que acabaria por ressurgir travestida daquilo que ficou conhecido como o Tratado de Lisboa. Giscard, recorde-se, foi contra o “timing” da abertura da Europa a Espanha e Portugal. Perdeu. Como, mais tarde, foi bastante culpado pelo modo agressivo como a Turquia se sentiu rejeitada na aproximação que pretendia ao projeto. Nesse caso, Giscard, mas não só, contribuiu para que perdêssemos todos. Escreveu, além obras estimáveis e bem construídas, um livro desagradável e desnecessário, a rescender a decadência pessoal, insinuando, numa ficção inconveniente, uma sua hipotética relação com a princesa Diana. Em Paris, Giscard era vizinho da nossa embaixada. Goste-se ou não dele, temos de reconhecer que foi uma grande figura da política francesa. E europeia. Morreu ontem. De Covid.

quarta-feira, dezembro 02, 2020

Pé ante pé


Vale a pena olhar para trás, observar com atenção o percurso que foi fazendo, num ritmo de quem só dava um passo após ter firmado bem o anterior, depois de ter a certeza do que tinha acabado: de fazer, de dizer, de escrever. Foi assim a obra de Eduardo Lourenço.

O perfil físico, a voz beirã, o humor amalandrado, a gargalhada contida, a forma, só aparentemente hesitante, de expressar, em palavras simples, ideias originais, como que presumiam uma quase modéstia. À medida que o fui conhecendo, fui criando, de Eduardo Lourenço, a imagem de um sábio sereno, que se foi ele próprio construindo, quase sem precisar de se impor, uma figura que foi entrando pela alma deste país um pouco pé ante pé, nela acabando por se firmar como o melhor ilustrador daquilo que somos.

Lourenço, ao contrário de alguns bonzos, nunca parou para pensar. Foi pensando ao longo do caminho, sobre o que esse caminho lhe trazia à razão, porque viu sempre Portugal como uma entidade mutante, na consciência clara de que a mudança faz parte da natureza das coisas. E aí, ao contrário desses outros, que se agarram à identidade como a um padrão do império, assentava a sua genialidade.

Devo a Lourenço muitas coisas. Desde logo, a Europa. Foi com ele que comecei a refletir o quanto este retângulo geográfico com gente, para além de uma história, de uma língua, talvez de uma idiossincrasia comum, necessitava da Europa para cumprir mais uma etapa do seu destino, depois da aventura trágico-marítima do império.

Lourenço ensinou-me a perceber a riqueza de conseguirmos ser, com dupla e não contraditória lealdade, portugueses e europeus. Com ele percebi que a Europa nos completava e que, com alguma assumida sobranceria, devíamos também ter a ousadia de pensar que, sem nós, a Europa também seria outra coisa.

Fez-me também perceber que ser português é isto mesmo – a soma do que outros já foram, em nome daquilo a que chamamos Portugal, com o que hoje realmente somos, sem complexos nem gongóricas vaidades. Mostrou-me que esse é o outro lado, simples mas verdadeiro, de um país que é um sobrevivente da História, por entre os escolhos dos seus fracassos e das caravelas que deixaram de existir. Um país que sempre foi mais rico, como entidade histórica com boas razões para ser orgulhosa de si mesma, quando teve pelas suas ruas gente que nem sequer tem de chamar-se a si mesma de portuguesa para nos ajudar a ser o melhor que somos.

Eduardo Lourenço parte com uma imensa glória: ter ensinado o um país a ver-se ao espelho.

terça-feira, dezembro 01, 2020

Em Paris, com Eduardo Lourenço (3)


Ao tempo em que dirigia a delegação em Paris da Fundação Calouste Gulbenkian, João Pedro Garcia organizou um interessante ciclo de conferências sobre a Europa. Figuras portuguesas e francesas diversas intervieram nessas jornadas, sempre muito concorridas, nos tempos em que a antiga residência de Gulbenkian na avenue d’Iéna acolhia esses eventos,

Um dia, coube a vez a Marcelo Rebelo de Sousa de dizer o que pensava da Europa. Ao tempo, o atual presidente da República era um conhecido comentador televisivo. As suas charlas dominicais, sobre tudo e sobre todos, eram acompanhadas pelo país, mesmo por aqueles setores que com ele não concordavam.

Coube a Eduardo Lourenço, ao tempo administrador não executivo da Fundação, fazer a apresentação de Marcelo Rebelo de Sousa. Fê-lo com imensa graça, trabalhando a figura académica, política e mediática de Marcelo. A certo ponto, saiu-se com esta tirada lapidar: "Hoje em dia, em Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa é como aquelas figuras que, numa vila ou numa cidade pequena, estão à janela, a ver as pessoas passar na rua e vão comentando cada uma delas. Só que, no seu caso, ele acaba, por vezes, por ver “passar” nessa rua o cidadão político Marcelo Rebelo de Sousa e, claro, não se faz rogado e também faz comentários sobre ele”. Marcelo, como todos nós, riu-se imenso.

Em Paris, com Eduardo Lourenço (2)


Tenho boa memória, mas não a suficiente para me lembrar do nome do intelectual caribenho que, num final de tarde, na casa antiga da Fundação Calouste Gulbenkian, na avenue d’Iéna, em Paris, fez parelha com Eduardo Lourenço, num debate sobre uma determinada temática, organizado pelo diretor da Delegação, João Pedro Garcia. 

A sala estava cheia, quer pelo interesse no intelectual francófono, um homem já idoso, com voz forte e presença imponente, mas também para ouvir Lourenço, que os portugueses “viciados” nas sessões da Gulbenkian e muitos “lusófilos” muito apreciavam. Prometia ser uma bela sessão.

Começou o homem do Caribe. E fê-lo lindamente, de improviso, arrebatando a sala. Passou mesmo o limite de tempo que lhe era destinado. A seu lado, Eduardo Lourenço ouvia-o com visível interesse. Sentado em frente a ambos, na primeira fila (alguma vantagem haveria em ser embaixador...), notei que Lourenço passou os dedos, por mais de uma vez, por algumas folhas que tinha diante de si.

E chegou o momento de Eduardo Lourenço falar. Começou por referir-se ao que tinha acabado de ouvir, citando dois livros do orador, elogiando a sua notável prestação. E, depois, no excelente francês que era o seu, disse mais ou menos isto: “Eu tinha-me preparado para vos falar sobre o tema que, a ambos, hoje aqui nos convocou. Tinha mesmo escrito um texto, para vos ler. Mas ao ouvir o que, de magnífico, nos trouxe o meu colega de painel, surgiram-me novas ideias e decidi dispensar a leitura desse texto. E, tal como ele fez, vou-vos falar livremente sobre o assunto.”

E falou. Durante bem mais de meia hora, de improviso, num francês de estilo, a que o sotaque beirão dava uma nota curiosa, Eduardo Lourenço encheu a sala de erudição e encheu-nos, a todos os portugueses que por ali tinham o privilégio de estar, de um imenso orgulho por termos como compatriota uma figura daquele calibre. 

Em Paris, com Eduardo Lourenço (1)


Um dia, ao tempo que era embaixador em França, decidi organizar um jantar em honra de Eduardo Lourenço. Por uma qualquer razão, estavam também nesse jantar, recordo bem, Vasco Graça Moura e Guilherme de Oliveira Martins.

O jantar estava marcado para as oito e meia, mas o convidado principal atrasou-se. Já se aproximavam as nove horas quando, afogueado, o Eduardo chegou, pedindo imensas desculpas. E explicando a razão do atraso.

Tinha ido a um estúdio de cinema, em Saint Denis, na periferia de Paris, onde Manuel de Oliveira estava a filmar uma obra, ali tendo construído, em cenário, uma rua do Porto. E apanhara imenso trânsito no regresso, de táxi.

Perguntei a Eduardo Lourenço o motivo da deslocação ao local das filmagens. Fora para estar com Oliveira? Alguma curiosidade de ver a rodagem o filme? 

Íamos na sala, a caminho da mesa de jantar, quando o Eduardo me puxou pelo braço, baixou a voz e fez uma confissão: “Vou-lhe contar por que é que fui!” E deu uma gargalhada marota, de que quem o conhecia se lembra bem. “É que eu sabia que o Oliveira tinha no filme a Jeanne Moreau e a Claudia Cardinalle. Ora dei comigo a pensar que esta era uma boa oportunidade de, por uma vez, conhecer aquelas duas mulheres, duas belezas do meu tempo. E, como tinha algumas horas, meti-me a caminho e fui ao estúdio”. “E esteve com elas?”, perguntei-lhe, já meio invejoso. “Qual quê! Quando lá cheguei já tinham saído. Acabei por pagar uma conta calada de táxi e, ainda por cima, chego atrasado ao seu jantar. Desculpe-me, sim?”

Lourenço

No aparente consenso nacional que rodeava a sua figura, é necessário notar que certas ideias de Eduardo Lourenço foram sempre bastante incómodas para alguns. Porém, por estas horas, eles acham mais prudente manterem as garras recolhidas. Ouçam-se, com atenção, alguns silêncios.

Eduardo Lourenço

 


1º de Dezembro

Há oito anos, a pedido do "Expresso", no dia 1° de dezembro de 2012, escrevi este texto. Reproduzo-o agora, concordando comigo:

O conceito de independência nacional tem-se transmutado ao longo do tempo. A crescente interpenetração das economias, a livre circulação dos capitais e a prevalência dos modelos de segurança coletiva, bem como de formas institucionalizadas de gestão multilateral das soberanias, tudo isso relativiza os modelos tradicionais de independência.

É evidente que a afirmação da independência depende muito da nossa capacidade de controlar o nosso destino imediato, pelo que, na crise económico-financeira atual, perdemos conjunturalmente muita independência. Mas essa perda é, a prazo, recuperável.

Nos dias que correm, a multiplicidade de certas ligações internacionais (pertença ao projeto europeu, participação na NATO, influência na CPLP, capacidade de afirmação nas Nações Unidas) acaba por conferir a Portugal um conjunto maior de garantias para a sua própria sobrevivência como Estado, de afirmação da sua identidade própria como país e de objetivação da sua vontade política. Estamos muito distantes do país tutelado pela Inglaterra que existia até ao final dos anos 20 do século passado ou do Portugal “coincé”, orgulhosa e teimosamente só, da ditadura salazarista, sem força para "mandar cantar um cego" fora das frágeis fronteiras de um império com pés de barro.

Todos somos hoje, pelo mundo, menos independentes e mais dependentes uns dos outros, embora com alguns a serem mais iguais do que outros, pela força natural das coisas. A atenção quase obsessiva que, há semanas, todos dedicámos às eleições americanas – nós, como os russos, os chineses ou os israelitas – é a prova provada da nossa dependência inescapável do futuro de um país que, queiramos ou não, dá hoje as cartas de um jogo em que todos procuramos arrebanhar o maior número possível de trunfos. A luta política internacional contemporânea é centrada na tentativa de cada Estado tentar reduzir, ao mínimo possível, as suas dependências. Mas nenhum Estado, nem mesmo os EUA, é hoje independente – do terrorismo, do petróleo ou dos golpes da natureza.

Portugal tem nove séculos e está aí “para as curvas”. Esta nossa "nonchalance” com a nossa independência, este gosto por dizermos mal de nós próprios (que se suspende quando outros dizem mal de nós à nossa frente, como se viu no caso “finlandês” ou na reação às diatribes de um responsável checo) e do nosso futuro, a snob ideia de “finis patriae” ou a autoprovocação com a diluição ibérica, tudo isso não passa de uma demonstração inequívoca de que estamos suficientemente seguros da nossa identidade para nos podermos dar ao luxo de brincar com ela, mesmo à beira do precipício.

Tenho imenso orgulho em ser português, até porque, por exclusão de partes, não sinto tentação de ser americano, francês ou espanhol. Por esse mundo fora, passo o tempo a encontrar gente que nos identifica como uma entidade com sustentação garantida na sua memória histórica, gente que olha para nós com surpresa quando algum português, neste jeito “self-deprecating” que alguns de nós usamos, se inflige masoquistamente alguns qualificativos negativos. Vejam-se os portugueses da diáspora e o modo como olham o seu país, talvez porque, no país dos outros, sabem bem como os fatores nacionais são explorados.

Querem um exemplo indireto deste orgulho na portugalidade?: o futebol. O hiperbolizar das glórias na ponta de uma chuteira, podendo não ser a mais nobilitante forma de ser patriota, é um sintoma de uma saudável “doença” nacional, que prova que o país “está lá”, no verde e vermelho da bandeira que a todos nos cobre... até aos nostálgicos monárquicos, agora num país sem coroa (embora também sem muitas coroas...).

Se há coisa que a integração da Europa trouxe aos europeus foi a necessidade de se mostrarem diferentes uns dos outros, o orgulho das regiões (e, em alguma Espanha e na Escócia, a vontade de ir mais longe), o sublinhar das identidades antropológicas, o “small is beautiful”, a pulsão pela subsidiariedade ao nível daquilo que nos distingue. Os países estão aí para ficar e nenhum “template” europeizante vai diluir a sua importância.

Portugal é uma ideia moderna e as dificuldades que atravessamos talvez nos tenham feito perceber que estamos num barco, que sendo mais um cacilheiro do que um paquete de luxo, é, no entanto, a única embarcação disponível para evitar um naufrágio. E o passado, onde crises bem maiores já nos ocorreram, vai provar que não temos vocação para “morrer na praia”, embora talvez tenhamos de fazer um esforço para nos convencermos de que não podemos, no futuro, passar tantos dias a gozar férias nela.  Não estou, por isso, minimamente preocupado com o futuro de Portugal como entidade autónoma no plano internacional.

segunda-feira, novembro 30, 2020

Um pedido de desculpas


Depois do que temos visto nos últimos tempos por aí, acho que o país já devia ter formulado um pedido de desculpas a António Marinho Pinto, por ter frequentemente considerado populistas muitas das suas posições. 

É que, como sempre deixei bem claro, não obstante o seu estilo arrebatado, António Marinho Pinto foi e é um democrata, insuspeito de pôr em causa os valores constitucionais, intolerante perante o racismo e a xenofobia, defensor dos Direitos Humanos e das liberdades.

Entre o "populismo" de Marinho Pinto e o extremismo filo-fascista que marca o discurso e a prática política de algumas figuras que atazanam os dias da nossa vida democrática vai uma imensa distância.

domingo, novembro 29, 2020

Cooperação para o Desenvolvimento

 


Santarém e o Brasil


Foi interessante e bastante divertido o debate promovido em Santarém, na redação do semanário “O Mirante”, sobre as relações entre Portugal e o Brasil, a pretexto dos 500 anos da morte, naquela cidade, de Pedro Álvares Cabral.

Sob a moderação de Joaquim Emídio, com a participação do jornalista do “Expresso” Henrique Monteiro e do editor Manuel S. Fonseca, falou-se sobre História, sobre literatura, (de raspão) sobre o Acordo Ortográfico, sobre música, sobre futebol, sobre as migrações, sobre as perceções mútuas e também sobre diplomacia - embora muito pouco sobre política, o que é sempre saudável.

Agradeço a Joana Emídio, diretora executiva desse excelente jornal que é “O Mirante”, o seu amável convite para fazer parte desta charla de fim de tarde.

Israel, o Irão e a arma nuclear

Na passada semana, durante o programa “Observare”, na TVI 24, ao selecionar o chamado “prémio guerra”, destaquei um bombardeamento israelita feito, dias antes, à Síria, num setor onde, segundo alguns meios americanos, Damasco beneficiaria de cooperação militar iraniana. Essas ações foram levadas a cabo em áreas dos Montes Golan, grande parte dos quais é hoje ocupada por Israel, à revelia de resoluções das Nações Unidas, que sempre reconheceram esse território como sendo sírio.

Na ocasião, referi que me parecia que este podia ser um sinal de que Israel poderia ser tentado, nos próximos tempos, isto é, até ao final da administração Trump, a efetuar algumas ações militares contra o Irão.

Ora parece haver hoje fortes indícios de que Israel poderá estar por detrás do assassinato do cientista iraniano, que estaria ligado ao programa nuclear iraniano, ocorrido imediatamente depois. Não quero “ser bruxo”, mas...

O mundo vive preocupado com a possibilidade do Irão poder vir a ter acesso à arma nuclear. Por essa razão, no termo da administração Obama, juntamente com três países europeus (Reino Unido, França e Alemanha), os EUA chegaram a um acordo com o Irão sobre a matéria. Com Trump, Washington dissociou-se desse acordo, estando para saber-se se Biden irá retomá-lo.

Israel protestou sempre contra esse acordo feito com o Irão. A legitimidade política de Tel-Aviv nesta matéria é, contudo, muito limitada. Toda a gente sabe que Israel tem armas nucleares, que não é por acaso que o país não subscreve o Tratado de Não-Proliferação Nuclear e que, até hoje, continua a impedir a Agência Internacional de Energia Atómica de controlar o seu território. 

Israel não quer que o Irão tenha a bomba nuclear, mas não dispensa ter a sua.

“Observare”


Esta semana, por razões excecionais, não tivemos o “Observare”, o programa de relações internacionais, na noite de sábado da TVI 24.

Regressamos ”às lides” para a semana, com novidades.

sábado, novembro 28, 2020

Calendários


Ofereceram-me na passada semana um calendário para 2021, daqueles cheios de paisagens que sugerem sossego e paz, ajudadas pelo photoshop. 

Nas redes sociais, aquele tipo de imagens, em substituição das infernais “florzinhas”, servem de cenário para tiradas filosóficas foleiras, a armar ao profundo, frequentemente com erros ortográficos. Às vezes, vêm acompanhadas de canções brasileiras delicodices, de romantismo saloio.

Mas é um belo calendário, este que me ofereceram! Como não tenho onde o pôr, não sei o que hei-de fazer com ele! 

Nos últimos anos, os calendários deixaram de estar na moda. Hoje, um amigo “da tropa”, mandou-me, num anexo a um email, o da “Playboy” para o próximo ano. O conteúdo é o expectável, com cada mês a ser melhor do que o outro, induzindo um embaraço numa escolha que, afinal, para o bem ou para o mal, não temos de fazer. 

Confesso que tenho uma certa nostalgia do tempo em que não se ia uma garagem sem encontrar, na parede, o clássico calendário da “Pirelli”. Confortava sempre muito o camionista que trazemos escondido dentro de nós...

Quem se lembra?


Esta pintura de parede, feita há 44 anos, ainda há menos de uma década podia ser vista numa parede da minha rua. Lembrei-me disto neste fim de semana do Congresso do PCP.

sexta-feira, novembro 27, 2020

Mudanças na Constituição

Descobri esta história, neste blogue, com quase 10 anos. Resolvi relembrá-la.

"A conversa estava solta e animada. Na sala daquela família burguesa da Foz portuense, discutia-se, entre amigos, a situação política decorrente das recentes eleições (2011). Não havia grandes diferenças ideológicas entre os presentes, todos favoráveis aos "novos ventos" conservadores. 

A certo passo, veio à baila o tema de uma possível revisão da Constituição. Surgiram divergentes as opiniões sobre o interesse de, nesta fase da vida política nacional, introduzir um debate que, segundo alguns, poderia abrir clivagens indesejáveis no seio novo espetro parlamentar. 

Outros, mais radicais, consideravam, precisamente, que era importante aproveitar a nova relação de forças para acabar com o que consideravam ser os "anacronismos" existentes no texto fundamental, ainda muito tributário dos tempos revolucionários dos anos 70.

O David era um dos membros da família a quem estas coisas da política pouco diziam. Com quase quarenta anos, sabia-se que o seu voto havia sido sempre no lado conservador, com variações de partido, mas raramente dava uma opinião sobre esses temas. As "guerras" em que se metia, como feroz portista que era, situavam-se, maioritariamente, no futebol. A mais recente tinha a ver com a "traição" do Villas Boas, que trocara o Dragão por Stamford Bridge. Aí sim, era um radical impenitente.

Por isso, todos estranharam que, ao passar da varanda, onde estivera na última meia hora, à conversa, para a sala, em busca de uma cervejas, tivesse lançado, em voz bem alta, para o grupo: "Pois eu, cá por mim, sou favorável a que se façam mudanças na Constituição". 

E logo saíu, em direção à cozinha, sem dar mais pormenores sobre as suas opções concretas na matéria. Todos se entreolharam, estranhando esta inesperada tomada de posição, tanto mais que o David não participara em nenhuma fase da conversa, onde se tinham abordado as questões laborais e de saúde. Ninguém ligou muito.

Minutos depois, o David reapareceu, sobraçando umas cervejas e alguém perguntou: "Ó David, diz lá então o que é que gostarias que mudasse na Constituição".

O David parou junto à saída para a varanda, onde ia continuar, refletiu um instante e adiantou: "Olhem! Para já, acho que deviam fazer uma rotunda no cruzamento com a Oliveira Monteiro. Assim como está é muito perigoso".

Esta história, com poucas semanas, foi-me contada por amigos do Porto, onde se situa a rua da Constituição. E quase só tem graça para eles. Mas ela aqui fica, nestas minha férias nortenhas."

quinta-feira, novembro 26, 2020

It’s over!

 


A biblioteca gourmet


Sei que muitas pessoas se retraem de ir a restaurantes, nestes tempos de pandemia. 

É claro que tirar a máscara e sentarmo-nos numa mesa com familiares ou amigos, cujo ciclo social e profissional de vida, nos últimos dias ou horas, não conhecemos, significa correr um risco desnecessário, a menos que estejamos a cerca de dois metros uns dos outros - mas ninguém cumpre essa distanciação, deixemo-nos de coisas! 

Porém, ir a um restaurante com a pessoa ou as pessoas com quem coabitamos, precisamente no mesmo registo de convivência que temos em casa, assegurando-nos que as mesas estão com a devida distância entre si, como os restaurantes responsáveis praticam, é hoje uma “viagem” que oferece total segurança.

E é nestes dias, que mesmo com sol não deixam de ser sombrios para todos nós, que é muito bom sair de casa, espairecer, ao mesmo tempo ajudando os profissionais da restauração que lutam, dia a dia, para manterem o seu negócio e salvar os postos de trabalho.

A ”biblioteca” da imagem não existe. É apenas o papel de parede de uma das zonas de um restaurante lisboeta.

O nome? Tal como os livros que está a ver, o nome não interessa, mas dou-lhe uma dica: é ali que se serve o “rollsbeef” de Lisboa - com qualidade, com simpatia e em total segurança. Ah! E é próximo de S. Bento!

quarta-feira, novembro 25, 2020

Eu e Maradona


Na vida, tive sempre bastante dificuldade para conseguir explicar às pessoas que era capaz de passar horas a jogar bilhar livre ou ping-pong (agora, diz-se ténis de mesa, eu sei, mas continuo a dizer ping-pong) sem contar pontos, apenas pelo prazer de tentar fazer uma boa carambola ou puxar bem uma bola. Verdade seja que raramente encontrei parceiros para essa minha estranha forma de estar nos jogos.

Por natureza, sou a pessoa menos competitiva que conheço: muitas vezes, quando entro num jogo, o facto de ganhar ou perder é-me praticamente indiferente. Até chego a achar graça ver os outros ganhar, porque não sofro nada com a minha derrota. (Mas, curiosamente, já não tenho a mesma atitude para competições que não seja eu próprio a disputar, como é o caso dos jogos do meu clube ou da seleção).

A extraordinária arte de jogar a bola era aquilo que eu mais preciava em Maradona, até porque nunca me preocupou se as equipas onde ele jogava ganhavam ou perdiam. O que nele exclusivamente me interessava era a sua relação física com a bola, como num circo aprecio um trapezista ou o passe inexplicável de um mágico. Nem sequer era essencial que, do que ele fazia, viesse a resultar um golo, embora isso fosse o cúmulo superlativo.

Maradona, personalidade que, enquanto figura pública, sempre considerei detestável, foi seguramente dos jogadores de futebol que mais prazer me deu ver jogar. Na hora da sua morte, acho que este é o melhor elogio que posso prestar-lhe. Porque é o mais sincero.

Uma presidência diferente


No imaginário português, as presidências europeias - e já houve três, desde a nossa entrada para as instituições comunitárias - ficaram ligadas à ideia de um corrupio de políticos estrangeiros a visitarem o país, de governantes lusos a presidirem a reuniões em Bruxelas, de declarações sonantes, em vozes portuguesas, em nome dos parceiros.

Em 1992, depois de, sabiamente, Portugal ter dispensado assumir uma presidência logo após a adesão, a nossa estreia nessas lides teve foros de grande evento nacional, com o novo Centro Cultural de Belém como "catedral" dessa liturgia, feita de euroentusiasmo, de fundos e de muita novidade. Cavaco Silva ainda aproveitou bem esse ensejo, com um trabalho europeu rigoroso e competente, num tempo que, contudo, acabaria por ser o início do declínio do seu fulgor político.

Quando António Guterres assumiu idênticas funções, em 2000, quatro anos depois de ter entrado em S. Bento, os favores da opinião pública interna também já se esvaíam. O interessante esforço português, nos caminhos europeus, acabou por ser muito mais apreciado lá fora, pelos seus pares, do que o foi no plano interno, onde o vento começava a mudar para o líder socialista.

Em 2007, na última das nossas presidências, José Sócrates vivia ainda sob um tempo de otimismo. Essa prestação foi bem gerida e projetada na Europa, com os sinais da crise financeira mundial, que estava já ao virar da esquina, ainda pouco claros. Se há marco dessa presidência, esse foi o Tratado de Lisboa.

E é o Tratado de Lisboa que agora tudo muda, que faz do exercício que António Costa vai gerir, por seis meses, a partir de 1 de janeiro de 2021, uma coisa bem diferente daquilo que coube aos seus antecessores.

O primeiro-ministro já não chefiará os Conselhos Europeus, porque o Tratado de Lisboa criou a figura de um presidente permanente desse órgão. Os ministros dos Negócios Estrangeiros, que o mesmo Tratado já tinha afastado de terem assento físico nesse órgão, onde haviam estado desde a sua criação, em 1974, já não se reúnem e agem sob a coordenação de quem assume a presidência rotativa: há um Alto Representante da UE para essa tarefa. Pelo mundo, as embaixadas dos países da presidência cedem a sua função ao representante do Serviço Europeu de Ação Externa. E muito mais.

Não é este o lugar para discutir as vantagens e os inconvenientes do Tratado que ficou a ser chamado de Lisboa. Uma coisa é óbvia, embora não tenha a certeza de que o país disso já se tenha dado conta: agora, não vai ser a mesma coisa.

terça-feira, novembro 24, 2020

Olá, António!


Não sei bem quantos andares eram, mas nunca menos de 14 ou 15, talvez mais. Pela regular avaria dos elevadores naquele prédio de Luanda, éramos muitas vezes obrigados a subi-los a pé, para ir jantar a casa da Élia (que saudades, não é?). 

Naquele noite, uma vez mais, não havia elevador. Lembro-me de ali chegar, com os bofes de fora, a pedir encarecidamente um gin tónico de salvação. E dei de frente com uma cara que conhecia, mas não reconhecia. Eras tu, António. Lembras-te?

Estávamos aí por 83 ou 84. Vivias, creio, em Cabo Verde. A Élia achava que nós éramos íntimos dos tempos do MES. Ora eu tinha sido sempre um militante relapso daquela singular formação política, ao contrário de ti que, anos mais tarde, com o Didas (que também andava connosco lá por Luanda), escreverias o “Uma Aventura Improvável”, o livro que, para sempre, desenhou aquela fantástica festa política, que nos deu em gozo aquilo que nunca nos daria em votos - e acho que ficámos muito bem servidos, em ambos os registos. 

Tu e eu conhecíamo-nos apenas vagamente, daquelas noites loucas da Dom Carlos, entre Tupamaros que saíam e gente do MIR a entrar, intercalados por turistas políticos e jornalistas “gauchistes” das várias Europas, lá no fundo chateados por sermos nós quem estava a viver a Revolução que eles não tinham conseguido fazer em casa. Naquela noite de Luanda, recordo-me bem, colámos memórias, refizemos o passado e inventariámos amigos comuns. E ali reforçámos uma boa solidariedade, que comungávamos e comungamos, porque a vida, sem ela, não tem graça nem dignidade.

E se nos tínhamos cruzado pouco no MES, também nunca nos chegáramos a cruzar na minha Vila Real, por onde passaste, ligado à família da histórica Pensão Excelsior, nos bilhares de cujo café registei as minhas mais expressivas tacadas. Não te refiro números, por modéstia...

A vida errante de ambos fez com que nos perdêssemos, apenas com episódicos reencontros, algumas vezes no Procópio, na “mesa dois”, capitaneados pelo grande Nuno. Em Londres, em algumas das minhas idas por lá, falámos bastante. Tenho fotografias dos jantares bizarros da Crabtree, connosco engalanados de smoking, ouvindo discursos a que era obrigatório achar graça e que, na realidade, às vezes, eram uma xaropada feita de inuendos e “private jokes”, entre o pessoal da academia do University College. Mas nós lá fazíamos cara alegre, para acompanhar a memória do Bartolomeu e a genica da Fernanda.

Um dia, saíste-me na “rifa”. Foste colocado em Paris, onde eu estava prestes a acabar a minha carreira. Deve estar ainda para nascer uma teoria conspirativa que irá ligar a tua ida à nossa amizade. Como temos disso a consciência muito tranquila, vivemos bem a certeza de que foi uma coincidência - uma feliz e magnífica coincidência que nos proporcionou alguns tempos, embora escassos, de trabalho conjunto. E, caramba!, fizemos por ali muitas coisas, algumas menos fáceis, como te recordarás, nesse tempo de “troika” e dos seus aliados por cá. Sempre com sentido de Estado, em que nunca recebemos lições de ninguém.

Mas, fora disso, também nos rimos bastante, nessa sorte de estarmos a trabalhar juntos. Vou-te agora revelar uma “diretiva” que a Dulce, a minha secretária, tinha: “O Dr. António Silva é a única pessoa que pode sempre entrar no meu gabinete sem necessitar de ser anunciado”. Só a Gina tinha idêntica “clearance”.

Mas tenho uma queixa - e tu, António, vais ouvi-la agora: deste-me cabo da saúde!

Se, há um ano, tive de trocar um joelho por uma coisa metálica que apita na segurança dos aeroportos, posso hoje revelar que, com toda a certeza, isso se deve às muitas dezenas de quilómetros que me fizeste percorrer, a calcorrear feiras nos arredores de Paris, onde demos milhares de mãozadas a industriais portugueses que ali iam propagandear as coisas mais diversas que produziam. O que eu aprendi sobre metalomecânica, toalhas, lençóis e bens correlativos, sabonetes ou espelhos que abriam ao meio para deixar à vista um plasma, para lustro e luxo das casas de compradores árabes ou “afro-residentes”. Percebe-se agora melhor por que, logo que chegado a Lisboa, fui trabalhar para o retalho. Ganhei-lhe o gosto...

Mas há mais, António! O meu fígado! O que eu bebi nas provas de vinhos que, sob a tua tutela, regularmente empestavam a residência, deixando eflúvios que ali permaneciam por dias! É que eu nunca soube provar vinhos, António: eu bebo-os. E, numa carreira em que, com brio, fui dando o meu fígado pela pátria, muitos trigliceridos ou agravamentos da Gama GT (uma marca laboratorial que sempre me soou a veículo açoreano...) foram devidos aos litros que tu me levaste a emborcar. Não venhas com desculpas, António, foi assim mesmo!

Há dias lembrei, num texto, a tua voz, a mandar-me acordar, no Salpêtrière, comigo saído de uma operação complicada, com a Gina, por azar duplo, a ter de estar em Vila Real, por morte do pai. Foi então com o teu inconfundível sorriso de deparei. Nunca esqueci nem te agradeci suficientemente esse instante.

A nossa presença comum em Lisboa, nos últimos anos, não nos fez juntar o que devíamos, em especial depois do regresso da Carol. Mas charlámos ainda bastantes vezes, combinando o registo sério - tu foste sempre muito mais sério do que eu, rapaz! - e a boa gargalhada. E, sempre, com a nossa eterna cumplicidade, que não precisa de ser explicitada, de tão óbvia que ela é.

Agora, António, depois da “pandemia” privada que se atravessou na tua vida, põe-te melhor, aproveita a presença da Sara e da tua neta por perto. Os teus amigos - e tens tantos! - querem-te de volta à vida deles.

*******

Há semanas, mandei esta carta ao António. A vida tinha-lhe pregado uma partida. Não sabíamos, nem ele sabia, que seria a última. Não te vamos esquecer, António. Um beijo imenso de pesar à Carol e à Sara.

segunda-feira, novembro 23, 2020

Time to go!

 


A Índia e a Europa


Foi há 21 anos, na Finlândia, no final de novembro de 1999.

Eu tinha chegado a Helsínquia, desfeito de cansaço, ido de Seattle, no extremo noroeste dos Estados Unidos, onde tinha chefiado, por alguns dias, a delegação portuguesa à frustrada - e famosa, pelos imensos conflitos de rua - reunião da Organização Mundial de Comércio.

Cabia-me representar Portugal na “troika”, presidida pela presidência finlandesa, que ia ter uma reunião de “diálogo político” com a Índia, em nome da União Europeia.

Semanas antes, numa conversa com Jaime Gama, ministro dos Negócios Estrangeiros, tínhamos comentado a anomalia que era a União Europeia ter estabelecido “parcerias estratégicas” com os EUA, Canadá, Rússia, China e Japão, sem que isso acontecesse com a Índia e o Brasil. Essas “parcerias” são o estádio mais elevado de relação política entre as duas partes, colocando quem as titula no topo das prioridades das relações externas da União.

Já na sala da reunião, no ministério finlandês dos Negócios Estrangeiros, tendo ao meu lado Chris Patten, o comissário para as Relações Exteriores da UE, fomos avisados de que a MNE finlandesa Tarja Halonen tinha ficado retida no parlamento, por algum tempo mais. O diretor político finlandês transmitiu-me o pedido da ministra para que, até à sua chegada, eu iniciasse os trabalhos e chefiasse a ”troika”. Assim fiz.

Apoiado nas “speaking notes” preparadas pelo secretariado-geral do Conselho, que disciplina um pouco o nosso intravável improviso, lá avancei pela agenda da reunião. Num dos pontos, o ministro dos Negócios Estrangeiros indiano, que chefiava a respetiva delegação, referiu quanto a Índia lamentava não dispor ainda de um quadro de diálogo mais estruturado com a UE, como aquele que uma “parceria estratégica” poderia proporcionar.

Veio-me então à ideia a conversa com Jaime Gama. Discretamente, perguntei a Chris Patten, sentado à minha direita, o que é que a Comissão acharia se a presidência portuguesa, que teria início dentro de escassas semanas, lançasse o processo de uma “parceria estratégica” entre a UE e a Índia. Patten garantiu-me que, por parte da Comissão, essa seria uma ideia muito bem vinda. Na resposta ao ministro indiano, assumindo por instantes o “chapéu” de futura presidência, anunciei que, se concordassem, Portugal iria testar junto dos parceiros essa possibilidade. Os indianos ficaram encantados!

Menos encantados terão ficado os finlandeses, que terão visto, no anúncio da nossa iniciativa, uma implícita desvalorização do “diálogo político” (um nível inferior de interlocução) que ali se tinham proposto desenvolver. A cara do diretor político finlandês assim o denunciava.

Minutos depois, Tarja Halonen assumiu a chefia da “troika”. No intervalo para o almoço, informada do ocorrido, disse que teria preferido que eu a tivesse consultado antes de tomar a iniciativa. Expliquei que reagira ao comentário do ministro indiano. E aproveitou para sublinhar que, semanas antes, no Dubai, eu tinha também aproveitado uma reunião por ela presidida, com países do Golfo, para propor a realização, em Bruxelas, sob nossa futura presidência, de uma reunião com a UE com o Conselho de Cooperação do Golfo. Ela não deixava de ter alguma razão...

Mas a questão da Índia não ficava por ali. Para o assunto poder ter “pernas para andar”, era preciso obter um acordo unânime dos parceiros. E, para isso, era necessário Jaime Gama usar todo o seu peso político, desde logo, junto dos “key players” dentro da UE - o Reino Unido, a França e a Alemanha.

Telefonei a Gama, ainda de Helsínquia, dando-lhe conta do que tinha feito. Concordou, em absoluto. Disse-lhe que, agora, se tornava necessário ele conseguir “segurar” a questão, logo na semana seguinte, na reunião do Conselho de Ministros “Assuntos Gerais” (como, à época, essas reuniões se chamavam).

Mas nem tudo ia correr como eu pensava. “Não vou poder ir a Bruxelas a esse Conselho. Você é que vai chefiar a delegação portuguesa”, disse-me Gama. Era a noite face ao dia. Gama tinha, com os seus colegas, uma relação de intimidade e confiança, agregada a um peso político, que não se comparava com a minha, que lidava, em regra, com os secretários de Estado, ao meu nível, num “campeonato” diferente.

Mas lá fui a Bruxelas.

Comecei por abordar Robin Cook, o ministro britânico, que, como eu previa, foi muito aberto. Sempre era um membro da Commonwealth a ter o estatuto de “parceiro estratégico”. E disse-me que Patten já tinha falado com ele do assunto. O profissionalismo da diplomacia britânica era uma evidência.

O francês Hubert Védrine, dos três ministros aquele com quem eu tinha uma melhor relação pessoal, foi mais cauteloso. Não tinha qualquer objeção de fundo, mas o “Quai” tinha de apreciar o assunto, à luz dos vários equilíbrios envolvidos.

Restava Joschka Fischer, o “verde” MNE alemão. A corrente nunca passou entre nós, desde o início. Foi “dismissive”, vago, pouco interessado, colocou algumas objeções, inventadas no momento. Aqui iríamos ter um problema, pela certa.

Regressei a Lisboa, chamei o embaixador indiano em Portugal e disse-lhe que seria essencial que, na sua capital, fosse feita, com caráter de urgência, uma forte pressão junto dos embaixadores francês e alemão, para facilitarem a aceitação da proposta portuguesa, que dentro de dias seria formalmente apresentada. Aconselhei-o mesmo a que, se possível, também fosse desencadeada, ainda em Nova Delhi, uma ação de sensibilização juntos dos restantes embaixadores europeus.

Assim poderá ter acontecido, ao observar o modo fácil como, nas semanas seguintes, o assunto evoluiu no quadro institucional de Bruxelas. Graças à iniciativa portuguesa, a “parceria estratégica” UE-Índia ficou consagrada para todo o sempre. (Anos de depois, em 2007, uma nossa iniciativa idêntica viria a fixar a parceria UE-Brasil).

Lembrei-me hoje disto, ao ver anunciado que o encontro da “parceria estratégica” entre a União e a Índia será um dos pontos altos da próxima presidência portuguesa, no primeiro semestre de 2021.

Tão divertido!


Nem imaginam como é divertido folhear as expetativas, desenhadas pelo “The Economist”, no final de 2019, para o ano que estamos a viver. É uma espécie de História contrafactual.

domingo, novembro 22, 2020

A louça do padre Domingos


Acabo de saber que um dos leitores fiéis deste espaço teve um acidente e partiu a bacia. Nada de grave, que uns tempos de repouso não cure.

Aconteceu o mesmo, um dia, ao padre Domingos, o simpático sacerdote de Bornes de Aguiar, pessoa que, por décadas, batizou, casou e enterrou toda a gente da minha família materna. Já lá vai há muito, o amável padre Domingos.

“A ti, só te batizei, foste o único que não consegui casar”, dizia-me ele, pesaroso perante o ímpio que lhe tinha escapado ao sagrado controlo, registando essa falha no seu currículo. “E até foste já a andar para a pia batismal”, recordava-se ele.

Do que ele se não lembrava, e eu e os meus pais tínhamos a delicadeza de lhe não recordar, é que teria sido a água gelada que utilizou no ato, nessa manhã frígida na capela de S. Martinho de Bornes, no alto das Pedras Salgadas, que terá desencadeado em mim uma seriíssima bronco-pneumonia, que me pôs, por semanas, no limbo da vida e me ia levando desta para melhor. Foi graças à então escassa penicilina, que vinha do Porto para Vila Real, pela mão do recoveiro, que hoje estou aqui a contar isto. Aí terminou, aliás, a minha relação com a igreja.

Como antes disse, o bom do padre Domingos, um dia, sabe-se lá como, num azar, talvez num degrau de altar, partiu a bacia. A paróquia entrou em estado de pena e as ratas de sacristia faziam corrupio para ir saudá-lo, lá a casa.

Numa dessas vezes, cansado da conversa monotemática, perante uma paroquiana que, entre ladaínhas pias, dramatizava o que tinha sucedido ao “senhor padre Domingos”, este, já um pouco irritado, terá retorquido: “Ó mulher! Eu parti a bacia, mas não parti o jarro...”

Observare


Com Luís Tomé e Carlos Gaspar, sob moderação de Pedro Pinto, editámos ontem o quarto programa “Observare”, dedicado à análise da vida internacional, numa cooperação entre a Universidade Autónoma de Lisboa e a TVI. Falou-se do último Conselho Europeu e, nele, do modo como foram tratados temas como o Covid, a condicionalidade democrática das ajudas financeiras, o Brexit e a Turquia. Mas também se abordaram questões como a cooperação económica regional na Ásia, o saldo provisório do conflito entre a Arménia e o Azerbaijão, a questão da defesa europeia e o futuro da Nato. E não só.

Pode ver o programa aqui.

Chover no molhado

Um blogue com poucos ou nenhuns visitantes, onde nenhuma alma caridosa faz o menor comentário, com uma agenda que “não interessa nem ao menino jesus”, continua a produzir por aí incessantes textos. Até aqui, tudo bem: há quem escreva para a gaveta, para o ego e viva feliz assim. O tal blogue tem, porém, ao seu serviço, um fâmulo, com escasso jeito para o manejo da língua portuguesa e com frequentes calinadas na escrita, o qual, não devendo ter mais nada para fazer ou sendo pago para isso, passa os dias a enviar-me essas anónimas peças, em jeito de comentários, sempre a despropósito, aos posts deste espaço, seja qual for o assunto que eu aqui aborde. Às vezes, pelo meio, mete uns insultos, sempre em linguagem rasca. Como também já houve por ali algumas ameaças, decidi que era necessário fazer alguma coisa: fui ver o IP da origem, que nos referencia com muita exatidão a área, tendo já feito a devida participação às relevantes autoridades, as quais, em devido tempo, lá irão bater à porta desse corajoso anónimo. Note-se que esses textos, por aqui, sem uma única exceção, têm sempre como destino imediato o lixo, nem sequer me dando ao trabalho de abrir os links, porque “já sei do que a casa gasta”. Acho interessante o esforço dessa gente, embora debalde, porque nunca, em tempo algum, darei alguma vez acolhimento a tão sulfurosa prosa. Mas podem continuar a mandar: clicar na pequeno sinal, com a imagem de um caixote do lixo, que surge ao lado dos comentários, e que manda aqueles textos para a origem do esgoto de onde nunca deveriam ter saído, não me demora sequer um segundo.

sábado, novembro 21, 2020

Observare


Às 21:20, deste sábado, na TVI 24, estarei com Carlos Gaspar e Luís Tomé, no “Observare”, um programa sob a coordenação de Pedro Pinto, a analisar a atualidade internacional.

Tempos de pandemia



Disclaimer: sou um forte adepto do uso das máscaras e da sua obrigatoriedade. Dito isto: detesto andar de máscara, recuso tirar uma fotografia com ela posta, só uso máscaras descartáveis, para não lhes “dar confiança” e não criar a ideia de que elas vieram para ficar nas nossas vidas para todo o sempre.

Disclaimer: concordo em absoluto com as medidas de confinamento em vigor. Dito isto: detesto ver cidades desertas e, ainda mais, num dia de sol como o que Lisboa hoje teve. Este vazio urbano é um retrato da tristeza. Mas é verdade, é assim, o país está triste.



João Flores


Acabo de saber que morreu, em Madrid, João Flores. Era um empresário de sucesso, tendo uma formação académica em economia. Desde há muito que dividia a sua vida entre Portugal e Espanha.

Em 2002, com Raul Capela e Stefano Saviotti, criou uma tertúlia a que foi dado o nome de “Clube Amizade”, constituída por cerca de uma trintena de amigos, com profissões muito variadas, que se juntavam, aperiodicamente, para almoçar, fosse no restaurante “Trattoria”, de que João Flores era proprietário, ou em outros locais, de Lisboa e não só.

Comecei por ser orador convidado de um desses repastos, ao tempo em que vivia em Paris. Quando regressei definitivamente a Lisboa, passei a integrar o Clube, por proposta de Leonardo Mathias.

O João era um homem muito agradável, com um sorriso sempre simpático e acolhedor. Várias vezes, ao longo destes anos, me telefonou de Madrid, para conversas que incluíam a troca de impressões sobre nomes possíveis para serem nossos futuros convidados, nos “episódios” seguintes da tertúlia. Sem ele, sem o seu entusiasmo e empenhamento agregador, creio que. será difícil aquele grupo vir a manter-se. A ver vamos.

O meu sincero pesar à sua família.

Reformados ao café


Há dias, fui jantar ao que julgo ser o último restaurante de Lisboa em que ainda se serve, se pedido, um café feito em balão. Ainda sou do tempo em que, por ali, não havia sequer café “expresso”. 

Em miúdo, na casa dos meus avós, em Vila Real, tenho memória de que se fazia, embora julgo que só episodicamente, café de balão. 

Lembro-me de ver o meu pai com “a mania” de que preparava aquilo melhor do que ninguém, aquecendo previamente e só depois enchendo de água bem quente, o recipiente inferior, olhando a sua subida no tubo, sabendo o tempo certo em que começava a mexer, com uma colher de pau (sempre de pau!), a mistura que se ia criando no topo, da água ascendente com o café que já lá estava (muito importante é a moagem certa da mistura usada), definindo, com rigor laboratorial, o momento exato para a retirada da lamparina, acompanhando depois a coagem, para baixo. De seguida, servia-o, em chávenas sempre escaldadadas (nunca se serve café sem escaldar antes as chávenas, como sabe quem gosta de um bom café). Depois, era a cena do regresso da lamparina, para manter aquecido (mas sem deixar ferver!) o café que sobeja no recipiente de baixo. Uma arte! O café de balão, quando bom, pode ser magnífico. Daqui a umas horas, vou fazer o meu melhor.

Quando saí do restaurante onde bebi aquele belo café de balão, teimei comigo mesmo que ia adquirir uma máquina para mim. Lembro-me de, há meses, não ter aproveitado os saldos de liquidação do Pereira, no Chiado, onde havia montes dessas máquinas. Erros da vida!

Anteontem, andei de ceca para meca, por quatro casas comerciais da especialidade, de Lisboa, sem conseguir descobrir máquinas de balão à venda. À noite, ao telefone, um amigo deu-me uma dica: “Vai ao Chaimite!”. Tratava-se da Pérola do Chaimite, na avenida Duque de Ávila. 

Ontem, liguei para lá: tinham acabado de chegar máquinas de balão! E fui logo, claro, porque já não tenho tempo para perder tempo! Estacionei em frente (vantagens do Covid), comprei a máquina, adquiri uma mistura de robusta com arábica, de S. Tomé e Cabo Verde, respetivamente, e ainda me dei ao luxo de trazer mais uns doces, para provocar um pouco a minha glicémia, que já anda “radiante” com o início do desbaste de mais de meio quilo de chocolate negro, que há dias tinha buscar à Arcádia, no jardim da Parada.

Saí do Chaimite e virei a esquina, para um chá à Versailles, onde agora, feliz e infelizmente, os lugares não faltam. Não sem antes me ter munido do último “Spectator”, numa tabacaria “de luxo”, pela extraordinária variedade, logo ao lado do Chaimite. A revista rimava muito bem com o ambiente.

À minha frente, vi um cavalheiro, muito idoso, a tomar café, sozinho. Há pouco mais de um ano, ele estava ali com uma senhora, também de muita idade, sentados numa mesa ao lado da nossa. Era médico, disse-me, metendo conversa connosco. Ela tinha Alzheimer, contou-me então ele, revelando um carinho imenso pela senhora. A certo ponto, pediu-nos se podíamos olhar por ela, enquanto saía da mesa, por uns minutos. Fizemos isso e, instantes depois, logo tivemos de acalmar a senhora, desestabilizada com a ausência súbita do marido. Agora, ao vê-lo tão só e com ar tão triste, não tive coragem de perguntar-lhe por ela. Se calhar fiz mal.

Lisboa, terra de reformados ao café. Que falta faz o O’Neill!

sexta-feira, novembro 20, 2020

Rudy Giuliani


Não, não vou colocar aqui a fotografia do advogado de Trump, Rudy Giuliani, com o suor tingido pela tinta do cabelo, como muita imprensa está hoje a fazer, um pouco por todo o mundo. A baixeza que a utilização dessas imagens representa coloca quem recorre a esse expediente ao nível de Trump e dos seus sequazes, de que Giuliani é um dos expoentes notórios.

Quando, há quase 20 anos, fui viver para Nova Iorque, já conhecia Giuliani de nome, como presidente do município local. Era então notado por ter introduzido um estilo de rigor securitário na cidade, sendo com isso acusado de ter fomentado arbitrários controlos a suspeitos, normalmente negros. Mas, numa lógica de “law and order”, tinha imensos admiradores.

Giuliani era defensor de uma particular teoria com que eu simpatizava (e simpatizo, aplicando-a sempre que posso, na minha vida diária, pessoal ou profissional): a da “broken window”. A ideia é simples. Se uma janela aparece partida, se uma porta fica com ar degradado, se uma lâmpada se funde, se algo surge estragado, deve proceder-se de imediato ao respetivo conserto: a degradação “chama” degradação, banaliza o desleixo, cria um ambiente que favorece quem fomenta o tipo de atitude do “deixa andar”. 
No caso de Nova Iorque, Giuliani atacou e reduziu o vandalismo, criando uma forte consciência pública contra a degradação da cidade. Dizia-me quem vivia em Nova Iorque que a cidade ficou bem melhor para viver no período de Giuliani.

Com Giuliani, que já antes perseguira a máfia e desmantelara o “red light district” que enchia a zona de Times Square (de que eu bem me lembrava, quando visitei a cidade em 1972), o crime urbano baixou drasticamente, embora a doutrina se divida sobre se parte desse mérito não se deverá a fatores demográficos e económicos de outra natureza. Não sei o suficiente para ter opinião nesse debate. 

Numa das primeiras vezes que saí de casa, nesse mês de março de 2001, para dar um passeio pelas redondezas depois do jantar, apercebi-me de que havia um batalhão de viaturas de televisão à volta de uma moradia, situada a escassas centenas de metros do prédio onde ficava o meu apartamento. Se, em lugar no “New York Times” e do “Washington Post”, eu lesse o “Daily Mail” ou o “New York Post”, teria logo percebido o que isso queria significar.

A casa chamava-se Gracie Mansion e era a residência oficial do chefe da municipalidade nova-iorquina, Rudy Giuliani. Mas ele já não vivia lá. O “cerco” mediático devia-se à circunstância da sua mulher “oficial”, com quem tinha rompido pelo facto do marido se exibir publicamente com outra senhora, se recusar a abandonar a casa. Giuliani estava a acabar o seu tempo de “Mayor” mas a sua vida sentimental e respetivo escândalo pública tinham então maior relevo do que os seus feitos no município.

Isso iria mudar radicalmente, meses depois. Com um comportamento exemplar no 11 de setembro, passou a figura venerada e, até, um pouco por todo o mundo, a personificação da cidade agredida barbaramente. A sua ambição política ressurgiu então, embora sempre com limitado sucesso. Este só viria a surgir na sua qualidade de advogado, de que Trump se tem utilizado, no seu esforço patético para se agarrar ao poder.

Ontem, voltámos a vê-lo, na defesa de Trump. Por muito qualificado que Giuliani, como advogado, possa ser, a verdade é que vê-lo titular este combate contrasta um pouco, para pior, com a elegância da figura de James Baker, que, em 2000, na Flórida, tinha conduzido com sucesso a batalha legal que levou à eleição de George W. Bush.

quinta-feira, novembro 19, 2020

“The Crown”


A série “The Crown”, de que agora passaram mais dez episódios na Netflix, tem um imenso e perverso defeito. Ao dar um tom de verosimilhança a cenas que mais não são do que um mero produto de ficção, esses filmes podem levar os espetadores incautos a tomarem por verdadeiro o que mais não é do que uma mera suposição, por muito imaginativa que esta seja, sobre o caráter das pessoas ali retratadas, sobre a plausibilidade das cenas e diálogos apresentados. Para quem não possa ter tido acesso a outras fontes de informação, a rainha Isabel II ou o seu marido, o príncipe Carlos ou Margareth Thatcher, a princesa Ana ou Diana Spencer, são “mesmo assim”, comportaram-se “dessa maneira”, tanto mais que os filmes, para credibilizarem os seus argumentos, colam factos verdadeiros com outros totalmente inventados, à luz da criatividade dos escribas do “script”. E, deste modo, na cabeça de milhões de visualizadores da série, tudo isso passa logo a ser “História”. Por muito bem construída que a série esteja, um seu espetador mais atento deve ter sempre a consciência de que aquilo a que está a assistir não é um documentário e que há um elevadíssimo grau de arbítrio interpretativo - e, às vezes, claramente preconceituoso - no modo como a família real britânica e outras figuras surgem caricaturadas. No sentido positivo ou negativo, note-se.

quarta-feira, novembro 18, 2020

A Europa é isto



Só quem for ingénuo, ou quiser fazer-se passar por tal, pode dizer-se surpreendido com o bloqueio colocado por dois governos ao acordo que pode permitir um importante, e inédito, desembolso financeiro com origem na União Europeia, com vista a ajudar os Estados membros a enfrentarem o surto pandémico que está a devastar as suas economias.

Os sinais estavam todos aí, desde há muito, de que esses países iriam aproveitar a ocasião para exercerem uma forte e oportunista chantagem junto dos seus parceiros.

O que está em causa, nesta barganha e braço-de-ferro, só mediatamente tem a ver com esses dinheiros europeus. O que esses governos querem significar, com este seu gesto de força, é que a Europa tem, de uma vez por todas, de aceitar a legitimidade da leitura que fazem do que significa o respeito pelo Estado de direito e pela separação de poderes, isto é, a sua peculiar interpretação sobre os deveres que decorrem da subscrição dos tratados.

Esta, como se sabe, não é uma questão nova. É um problema que anda, desde há anos, pelas mesas e corredores da União e – vamos chamar os bois pelos nomes – que a cobardia e a pusilanimidade dos parceiros tem deixado prolongar e, pelos vistos, prosperar, em total impunidade. O constante conforto, feito de sorrisos e de palmadas nas costas, dado aos líderes desses países, em especial por parte dos seus parceiros do PPE (Partido Popular Europeu), mas não só, configura uma atitude obscena e denuncia bem o medo que sempre houve em os confrontar e isolar. A paga aí está agora.

Este não é, também, um problema apenas jurídico, como alguns exegetas dos tratados querem fazer crer. Trata-se de uma questão política de fundo, que vai ao âmago da identidade europeia, isto é, da filosofia comum a que um país se obriga quando entra para o “clube” comunitário.

Trata-se de garantir à totalidade dos cidadãos, cujos Estados estão inseridos no projeto integrador, que, independentemente das respetivas ordens constitucionais, usufruem de um corpo de direitos que lhes advém da sua cidadania europeia e que essas ordens internas não podem derrogar.

Este problema, porém, tem precedentes. Lembremo-nos no fechar de olhos que se verificou quando alguns países bálticos se comportaram miseravelmente face às minorias russas que tinham herdado. À época, porque do outro lado da cerca estava Moscovo, imperou o cinismo da realpolitik.

Nessa altura, alguns não quiseram perceber o precedente que se estava a abrir. Talvez entendam melhor agora.

terça-feira, novembro 17, 2020

Gaimusho


Almocei, há pouco, com diplomatas japoneses. Lembrei-me e lembrei-lhes uma história.

Quando entrei para a carreira diplomática, ao ler telegramas da nossa embaixada em Tóquio, comecei a ficar intrigado com um interlocutor regular do nosso embaixador naquela capital, fonte credível de interessantes informações. 

Assim, lia frequentemente nas comunicação que nos chegavam do Japão coisas como "apurei junto de Gaimusho", "a opinião de Gaimusho é", etc. Com a patetice de um caloiro que hesita em perguntar o que teme que deva ser óbvio, terei andado umas semanas até descobrir quem era o tal Gaimusho. 

Um dia, lá resolvi o mistério: Gaimusho era nome pelo qual era conhecido o ministério dos Estrangeiros japonês.

De certo modo, há a tendência de pensar que uma diplomacia que é conhecida pelo nome da sede da sua chancelaria assume, aos olhos das outras carreiras externas, uma dignificação especial, pelo peso histórico que o nome representa. 

Seja assim ao não, um diplomata que se preza sabe que o seu colega de Madrid dirá que “fui ontem a Santa Cruz”, o de Roma reportará que “fiz a diligência solicitada na Farnesina”, o de Londres dirá que foi “ao Foreign Office” (ao apenas, “ao FO”), o de Paris “ao Quai” (se for “maçarico”, dirá “ao Quai d’Orsay”). Na Alemanha, terá que saber interpretar a sigla AA (Auswärtiges Amt), tal como, na Rússia, o MID. Quase tudo o que sair desta lista já é um preciosismo. É que a esmagadora maioria das diplomacias, na realidade, não têm um nome de referência, pelo qual seja internacionalmente conhecida.

O “poder” desse nome é tal que pode “migrar”. É o caso do Brasil: ao falar-se do Itamaraty, toda a gente sabe tratar-se do Ministério das Relações Exteriores brasileiro, em Brasília. Porém, alguns não saberão que, na realidade, o original Palácio do Itamaraty se situa no Rio de Janeiro e foi, de facto, a sede da diplomacia brasileira antes de se mudar para Brasília. Porém, levou consigo o nome para o novo e belíssimo edifício onde hoje se situa na nova capital.

Também nós, portugueses, temos a tentação de assumir que os diplomatas estrangeiros em Lisboa devem dizer, nas comunicações para as suas capitais "apurei hoje nas Necessidades" e frases do género. A nossa esperança é que nunca traduzam o nome do palácio...

segunda-feira, novembro 16, 2020

A ver se

Quando vivia em Brasília, havia um empregado na residência, o excelente Romário, que tinha por atitude fazer, de imediato, tudo o que se lhe pedia para ser feito. “Ó Romário, quando puder, compre pilhas para os comandos da televisão”, um de nós dizia-lhe. Minutos depois, era certo e sabido, ouvia-se o ruído da carrinha: era o Romário, a caminho da Quadra comercial. E as pilhas lá surgiam. Um dia, perguntei-lhe por que procedia assim: “Para não ficar preocupado com nada, senhor embaixador”. 

Quando, cá por casa, andamos dias para comprar alguma coisa, a frase clássica é: “Se fosse o Romário, já estava feito!”.

Nunca consegui ser assim, como o Romário. Pouca gente consegue, aliás. Na minha família, ouvi sempre uma expressão que traduzia a vontade de só fazer amanhã o que já devia estar feito ontem. Era o “a ver se”. Volta e meia, perante o chiar de uma porta, um de nós dizia: “A ver se se põe um pingo de óleo naquela corda da roupa”. Ou o “a ver se se compram envelopes cá para casa”. O mais clássico é o “a ver se um destes dias telefonamos a... “ Como quase cinco décadas de casal já nos aculturaram mutuamente, estamos bem um para o outro, ambos “a ver se“ esse outro faz as coisas.

O “a ver se” é sempre um voto piedoso que, ao mesmo tempo que nos confere o meritório crédito de ter tido a consciência da existência de um problema, “passa a bola” da respetiva resolução para uma entidade indefinida. Desejavelmente, não nós.

Mas o “a ver se” também tem outra aplicação. Ajuda a procrastinar - um verbo que eu adoro praticar mas que detesto ter de assumir que sigo cada vez mais.

Há horas, o tal Ventura parece que deu uma entrevista à TVI. Não me apeteceu ver em direto. Aliás, não me apeteceu sequer ver hoje. Vou ler o que vai surgir nas redes sociais e na imprensa de amanhã sobre o assunto e, depois, com a calma que ter televisão por cabo permite, talvez amanhã (mas não é garantido) voltarei atrás. 

Um amigo, daqueles que vê telejornais em direto (a maioria vê, eu só por muito raro acaso) telefonou-me, há pouco: “Viste o facho?”. Respondi: “Não, não vi. A ver se amanhã arranjo tempo para isso...”

domingo, novembro 15, 2020

Blogue da semana

 


O blogue “Delito de Opinião” é, reconhecidamente, uma referência nacional no mundo da blogosfera. Contemporâneo deste bem mais modesto e artesanal “Duas ou Três Coisas” (ambos nasceram no início de 2009), o “Delito” é um blogue coletivo com larga e sustentada audiência. 

Hoje, o “Delito” teve um gesto de simpatia, pela tecla de Alexandre Guerra (também autor de um interessante blogue dedicado à temática internacional, chamado “O Diplomata”, criado em 2007), para com este espaço. Fico muito grato.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o sempre a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma extraor...