Há 30 anos, quase dia por dia, desembarquei, ao lado de Mário Soares, no aeroporto de Telavive. À nossa espera estava o nosso embaixador em Israel, Paulo Barbosa. Eu era, desde há uma semana, secretário de Estado dos Assuntos Europeus do novo governo socialista.
O Paulo era mais velho, desde logo como colega de profissão. Embora sem uma grande proximidade pessoal, conheciamo-nos já da nossa juventude, de Viana do Castelo, onde estavam as nossas famílias, onde ele nascera e eu passava férias. Nos vinte anos que eu levava de casa, a nossa relação mantinha-se excelente.
Logo que teve uma ocasião, naquelas horas sempre confusas de uma visita presidencial, o Paulo colocou-me uma questão: "Estão a pedir-me uma entrevista para um importante jornal de cá, sobre esta visita do Soares. O que é que te parece? Achas que posso aceitar falar?"
Lembro-me como se fosse hoje. Respondi-lhe, a sorrir: "Podes falar à vontade! Com este governo de que faço parte, ao contrário do que antes se passava, os embaixadores serão estimulados a falar à imprensa. Partimos do princípio de que um embaixador sabe o que pode ou não dizer, sendo naturalmente responsável pelo que decide transmitir. Por isso, se achares que é útil, dá a entrevista". Só para lembrar: o anterior tempo governativo, de uma década, tinha sido do PSD.
Ao longo dos mais de cinco anos que estive nesse governo, não me recordo de ter tentado coartar alguma vez a expressão, em termos de diplomacia pública, a qualquer dos nossos embaixadores. Se eles eram considerados de confiança para representar o Estado no exterior, naturalmente que deveriam, se considerassem que isso era útil para a defesa do interesse do país, expressar-se publicamente quando o entendessem.
Constatei que muitos o não faziam, talvez para não correr riscos ou porque tivessem falta de à-vontade para falar à comunicação social ou, simplesmente, porque assim entendiam dever proceder. Tenho a certeza de que Jaime Gama, que foi nosso ministro em todo esse tempo, pessoa com quem curiosamente nunca abordei este assunto, nunca alguma vez "tapou a boca"a alguém.
Finda essa minha "comissão de serviço" no governo, regressei, por 12 anos consecutivos, à minha qualidade de diplomata, sendo embaixador em três organizações internacionais e em duas importantes embaixadas bilaterais. Dei então todas as entrevistas que entendi dever dar - a jornais, a rádios e a televisões -, em todos os postos onde trabalhei. Repito, todos: incluindo a ONU e a OSCE, para que conste, ao tempo de um governo PSD/CDS. E publiquei também entretanto quatro livros, sem que alguma vez me tivesse passado pela cabeça pedir um "imprimatur" a Lisboa.
No termo do tempo que passei no Brasil como embaixador, publiquei um quinto volume, com quase 400 páginas, com muitos artigos e transcrição de algumas entrevistaa que aí tinham ocorrido.
Com uma única exceção (em que entendi inquirir sobre a oportunidade de um artigo que me fora solicitado para o "Financial Times"), nunca, nessa dúzia de anos de trabalho, me ocorreu pedir a Lisboa autorização para falar ou escrever.
Um dia de 2011, ao tempo em que era embaixador em Paris, depois de ter publicado no mais importante jornal económico francês um artigo em que defendia a posição oficial portuguesa, nesse tempo de pré-troika e de resgate financeiro em curso, chegou-me, por uma via ínvia, a questão sobre se eu tinha "pedido autorização" para publicar tal artigo. Noto que não se tratava de pôr em causa o seu conteúdo, mas sim o aspeto formal da autorização. O governo, também para lembrar, era PSD/CDS.
Pela mesma via "ínvia", mandei dizer que, da mesma forma que fazia parte das minhas competências falar com o governo francês e com os meus colegas estrangeiros sobre a situação em Portugal, integrava naturalmente essas mesmas competências expressar-me junto da imprensa, das rádios e das televisões - como fazia há semanas. Assim, "salvo instruções em contrário" (uma expressão que costuma irritar as Necessidades), continuaria a atuar publicamente como melhor entendesse, sempre sem pedir instruções "à Secretaria de Estado" (modo como, quando no estrangeiro, nos referimos aos serviços centrais em Lisboa). E assim fiz, até ao meu último dia de serviço.
Os embaixadores devem ser avaliados "a posteriori" pela sua atuação, não são "locutores de continuidade" à espera do teleponto. Apeteceu-me dizer isto hoje.

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