sábado, outubro 25, 2025

A cunha na hora


Foi há precisamente nove anos. Tal como acontecerá daqui a pouco, a hora mudava nessa noite.

Aquela figura da "Geringonça" olhou para mim com um ar perplexo, quando deixei cair, em conversa, que podia estar interessado num determinado cargo oficial. 

Essa pessoa ouvira-me, desde há muito, jurar a pés juntos que não estava disponível para exercer qualquer lugar no âmbito do Estado. E alguns tinha recusado. Por isso, alguma coisa não batia certo.

- Eu era capaz de aceitar uma certa função oficial. Que julgo não ser remunerada, note-se...

Bom, isso já podia ter algum sentido, deve ter ele pensado, julgando que eu estava a meter uma discreta cunha para algum lugar de prestígio.

- É um cargo que, posso dizer agora, ambiciono desde há cerca de três décadas.

Isso atirava para os anos 80. A pessoa pediu-me que concretizasse. Mandei vir mais um whisky e anunciei:

- Era para membro da Comissão Permanente da Hora.

"Comissão Permanente da Hora"?! O que faz essa comissão? Expliquei, com ar de quem sabe da poda, que, por lei, compete a essa Comissão "estudar, propor e fazer cumprir as medidas de natureza científica e regulamentar ligadas ao regime de Hora Legal e aos problemas da hora científica" (não disse isto com esta precisão, claro). 

Ora eu tinha reparado, há muito, numa falha na lei: era inconcebível que o Ministério dos Negócios Estrangeiros não estivesse representado nessa comissão, pelas implicações que o regime da hora legal tem nas relações internacionais e na ligação com as instituições comunitárias. Impunha-se, desde logo, uma revisão da legislação nesse sentido.

- Tem lógica, disse ele. 

Mas, pondo os pés na terra, logo refletiu: mas por que é que eu queria esse lugar, um lugar não remunerado, numa ignota comissão que reunirá, talvez, uma vez por ano? E o que é que eu sabia do assunto para me qualificar para essa função? 

Pacientemente, expliquei que tinha passado por mim, noutros tempos, a questão do regime europeu da hora, pelo que sabia tanto ou mais do assunto como qualquer outra pessoa do MNE.

- Lá isso é verdade. Mas estás mesmo a falar a sério? Queres o lugar?

O Luís já me tinha trazido o Bushmills novo, sem gelo, em copo normal, que ele sabia que eu queria, para a mesa do Procópio onde estávamos. Fiz pose e dei um trago.

- Claro que sim e agora tenho mais tempo, o que deve ser importante para um organismo que trata precisamente das questões da hora... 

- Mas, se o MNE não tem lá um representante, seria necessário mudar a lei. E o governo teria de decidir isso. Pode demorar...

- "Não tenhamos pressa, mas não percamos tempo".

- Bela frase! É tua?

- Não, é do Saramago.

O assunto não andou para a frente, claro. Fiquei sempre na dúvida sobre se esse meu amigo acreditou mesmo no que lhe disse. É que, na "mesa dois" do Procópio, entre aa coisas ditas a sério e as que pareciam brincadeira havia uma zona cinzenta que só um mestrado em ironia permitia esclarecer.

Só eu é que tenho tempo para estas brincadeiras. Mas, pensando bem, ter num cartão de visita "membro da Comissão Permanente da Hora" dava cá um sainete!

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