Desembarquei pela primeira vez em Nova Iorque em dezembro de 1972. Recordo uma cidade gélida, ventosa, com um sol sem calor. Mas tudo tinha então uma imensa graça: os esquilos do Central Park, que nos vinham comer à mão, os porteiros da Park e da 5ª Avenidas, fardados como generais soviéticos, as clássicas nuvens de vapor a sair do asfalto e aquele coro de ambulâncias e carros de bombeiros que ninguém me convence que não fazem parte de uma coreografia de som deliberadamente alimentada para animar o turismo.
Por essa época, eu já tinha viajado alguma coisa pela Europa, mas tudo aquilo era muito diferente. Era, claramente, um outro mundo, ou então era eu que o via como tal. Um mundo que, na minha imaginação, tinha bastante a ver com o cinema americano que conhecia, o qual funcionara como um "trailer" da América que eu ia começar a ver. O facto de ficar instalado, nessa semana, no Edison Hotel, onde tinham sido filmadas cenas de "O Padrinho", bem perto de Times Square, ajudava a adubar o mito. E, com vinte e poucos anos, como é sabido, os mitos fazem toda a diferença.
Percorri então a Nova Iorque de todos os clichés turísticos, que me abstenho de listar: foram esses mesmos em que estão a pensar. Até fui às Torres Gémeas, com uma delas ainda incompleta. Não adivinhava que, quase trinta anos depois, comigo então a viver em Nova Iorque, as duas seriam derrubadas numa terrível manhã.
Lembro-me de que, nesse inverno de 1972, eu usava um guia da TWA, que se referia a New York como a "porta da America", expressão que, nas diversas vezes que voltei aos States e em que lá vivi, constatei ser uma rotunda falsidade: Nova Iorque tem bastante pouco a ver com o resto do país. A cidade, na sua génese cultural e paisagen humana, parece às vezes bem mais próxima de alguma Europa do que do resto da América. 
Levava no bolso algum dinheiro: eram as minhas primeiras férias depois de um ano de funcionário da Caixa, emprego que não pagava mal. Nas viagens que, em anos anteriores, tinha conseguido fazer pelas capitais europeias, com bastantes menos posses, tinha aprendido a ser poupado, a "defender-me", na expressão cuidadosa do meu pai. Por isso, imagino que tenha feito poucas "extravagâncias", como à época se dizia. 
Tenho uma vaga ideia de uma ida a um clube de jazz, de ir comer pasta nuns italianos baratuchos, de ir a uns filmes proibidos na Times Square, de comprar, no sul de Manhattan, aqueles espetos orientais que deitam fuminhos com cheiro, iguais aos que então encontrávamos em casas de amigos que gostavam de armar a hippies ou modernaços. Para dar uma de sério, e também porque era mais barato, fui a uma peça de teatro "off Broadway", que detestei: saí convencido que isso se devia à minha incultura da época. O que era capaz de ser bem verdade. 
Trouxe muito poucos livros dessa ida a Nova Iorque (ainda tenho um dicionário Webster's e um magnífico World Almanac, este que se vendia por menos de um dólar), mas adquiri dois posters: um era a cara do Nixon, com a pergunta sobre se compraríamos um carro usado a um tipo com aquele aspeto (quem havia de dizer que, por contraponto atual, Nixon nos iria surgir hoje como um poço de virtudes). O outro poster, prenunciava a canção do Sérgio Godinho: "Today is the first day of the rest of your life". Ainda ontem, num velório, lembrei isso a um amigo que se interrogava, nostálgico, sobre o que irá ser o nosso futuro. Tentei ser realista: o futuro, seja ele o que vier a ser, é o lugar onde vamos passar o resto da nossa vida. Por isso, corações ao alto, que é como eu olho sempre para os jogos do Sporting.
Nessa primeira estada em Nova Iorque ("estada" é para pessoas, "estadia" é para barcos, sentenciaria, anos mais tarde, um chefe snob que tive no MNE), passei uma longa tarde na Biblioteca Pública de Nova Iorque, a fazer uma pesquisa bibliográfica sobre Lewis Carroll, a pedido do meu saudoso amigo Sérgio Moutinho, que andava então em Coimbra. Aproveitei o ensejo para ler ali, um pouco à pressa, porque é um calhamaço, mas ainda tomando notas, o "Missão em Portugal" do embaixador brasileiro Álvaro Lins, livro que estava proibidíssimo no nosso país, porque conta a saga de Humberto Delgado refugiado na missão brasileira. Até hoje, nunca me perdoei ter perdido essa tarde de sol numa biblioteca, nesses escassos primeiros dias na grande cidade. Um dia desperdiçado na nossa vida nunca mais se recupera. Asneiras da juventude.
Nova Iorque é uma cidade plana, ideal para se flanar a pé. Lembro-me de ter deparado, pelas ruas, com cenários que vira em filmes, com locais sobre os quais lera em livros ou em imagens nas páginas da "Time" ou da "Newsweek", as revistas que então nos revelavam o que julgávamos que era a América, a par da "Reader's Digest", essa a tentar endoutrinar-nos subliminarmente com a sua mensagem anti-comunista. 
Acabo de chegar hoje a Nova Iorque. Não obstante continuar com um trânsito infernal, talvez ajudado pelo "shutdown" dos serviços públicos, num caos urbano que quase nos reconcilia com Lisboa, a cidade continua um deslumbre. Mais para o turista que hoje sou do que para o diplomata que por aqui já fui, quando cá vivi ou estive em trabalho. É que o trabalho "destroi" as cidades. Convenci-me disso em Paris, em Viena e em Londres, onde, quando agora por lá me acontece passar, me divirto muito mais do que quando por ali trabalhei. Estou a escrever isto e a tentar convencer-me de que isto é a pura verdade. E, às tantas, não é: sempre fui um "workaholic" e, no fundo, o trabalho (mesmo o muito trabalho) deu-me sempre um imenso gozo. Ser um pouco masoquista ajuda bastante a contentarmo-nos com a vida, sabiam?
Mas, "prontos!", como dizem alguns, vamos lá gozar Nova Iorque, porque esta vida são dois dias, e agora até já começa a ser noite e tenho de sair para a uma rua agitada, que não espera por mim. 

 
 
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