Há muitos anos, constou nos cafés de Lisboa - onde as coisas constavam ... - que um livro de História tinha sido recolhido das livrarias pela Pide.
Imagino que alguns, ao saberem disso, devam ter especulado sobre se não seria uma apologia disfarçada da Revolução Russa ou uma obra glorificadora da nossa Primeira República, tema de desestimação que era diabolizado e considerado quase herético pelo salazarismo. No limite, poderia também tratar-se de uma defesa do liberalismo vitorioso contra o Antigo Regime miguelista, matéria que o ensino oficial teimava em não abordar, por ser uma derrota histórica que o reacionarismo no poder não digeria com facilidade.
Foi-se a ver: era uma obra sobre a Idade Média! Sobre a Idade Média?! O autor era o historiador António Borges Coelho e o livro, aliás não muito volumoso, chamava-se "Raízes da Expansão Portuguesa". Sou feliz proprietário dessa rara 1ª edição.
O "crime" era defender uma leitura das motivações da aventura ultramarina portuguesa que contrariava a hiperbólica narrativa que a ditadura desejava que fosse a visão única sobre esses factos. Ao sublinhar motivações economicistas a sobreporem-se ao anseio da expansão da fé e da cristandade, a obra de Borges Coelho tocava num tabu sensivel.
Proibir um livro de história medieval era um ato censório de indizível estupidez. Mas a ditatura era isso mesmo: estúpida e mesquinha.
No dia de hoje, com 97 anos, morreu António Borges Coelho. Tive o gosto de com ele falar apenas duas ou três vezes. Uma delas foi numa bela almoçarada numa praia alentejana, organizada por Carlos Eurico da Costa, em meados dos anos 70 do século passado, onde recordo Cardoso Pires entre os convivas. Borges Coelho e eu evocámos então das nossas mútuas origens transmontanas. Ele era de Murça.
Para todos nós, fica a sua obra. Para ele, acabou por ficar a justiça que a universidade portuguesa acabou por fazer à sua qualidade académica e intelectual.
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