quarta-feira, novembro 18, 2020

A Europa é isto



Só quem for ingénuo, ou quiser fazer-se passar por tal, pode dizer-se surpreendido com o bloqueio colocado por dois governos ao acordo que pode permitir um importante, e inédito, desembolso financeiro com origem na União Europeia, com vista a ajudar os Estados membros a enfrentarem o surto pandémico que está a devastar as suas economias.

Os sinais estavam todos aí, desde há muito, de que esses países iriam aproveitar a ocasião para exercerem uma forte e oportunista chantagem junto dos seus parceiros.

O que está em causa, nesta barganha e braço-de-ferro, só mediatamente tem a ver com esses dinheiros europeus. O que esses governos querem significar, com este seu gesto de força, é que a Europa tem, de uma vez por todas, de aceitar a legitimidade da leitura que fazem do que significa o respeito pelo Estado de direito e pela separação de poderes, isto é, a sua peculiar interpretação sobre os deveres que decorrem da subscrição dos tratados.

Esta, como se sabe, não é uma questão nova. É um problema que anda, desde há anos, pelas mesas e corredores da União e – vamos chamar os bois pelos nomes – que a cobardia e a pusilanimidade dos parceiros tem deixado prolongar e, pelos vistos, prosperar, em total impunidade. O constante conforto, feito de sorrisos e de palmadas nas costas, dado aos líderes desses países, em especial por parte dos seus parceiros do PPE (Partido Popular Europeu), mas não só, configura uma atitude obscena e denuncia bem o medo que sempre houve em os confrontar e isolar. A paga aí está agora.

Este não é, também, um problema apenas jurídico, como alguns exegetas dos tratados querem fazer crer. Trata-se de uma questão política de fundo, que vai ao âmago da identidade europeia, isto é, da filosofia comum a que um país se obriga quando entra para o “clube” comunitário.

Trata-se de garantir à totalidade dos cidadãos, cujos Estados estão inseridos no projeto integrador, que, independentemente das respetivas ordens constitucionais, usufruem de um corpo de direitos que lhes advém da sua cidadania europeia e que essas ordens internas não podem derrogar.

Este problema, porém, tem precedentes. Lembremo-nos no fechar de olhos que se verificou quando alguns países bálticos se comportaram miseravelmente face às minorias russas que tinham herdado. À época, porque do outro lado da cerca estava Moscovo, imperou o cinismo da realpolitik.

Nessa altura, alguns não quiseram perceber o precedente que se estava a abrir. Talvez entendam melhor agora.

13 comentários:

Joaquim de Freitas disse...

Tem razão, Senhor Embaixador : A solução é fácil: A UE deve seguir o exemplo da Noruega que votou a favor da permanência fora da UE num referendo em 1994, mas se mantém estreitamente alinhada económica e legalmente com o bloco, incluindo pagando grandes subsídios aos 15 países da UE economicamente mais débeis em troca do acesso ao mercado interno.

No entanto, face à deriva autoritária da Hungria e da Polónia, a Noruega não fica com os braços cruzados: A Noruega suspendeu todos os subsídios que tinha pago anteriormente à Hungria - 214 milhões de euros para o actual período de financiamento 2014-2021 - depois de ter constatado que o governo de Viktor Orban tinha procurado exercer controlo sobre a forma como os subsídios eram pagos.

Em Fevereiro de 2020, a Noruega congelou 65 milhões de euros em financiamento para um projecto de apoio aos tribunais e prisões polacos, depois de manifestar preocupação com a perda de independência judicial na Polónia sob a égide do partido lei e justiça (PiS) no poder.

Depois, no final de Setembro, a Noruega excluiu uma série de cidades polacas de um programa de financiamento de 100 milhões de euros, depois de estas cidades terem decidido, em 2019, proibir aquilo a que chamaram "ideologia LGBT".

A Noruega acaba de conceder asilo a um cidadão polaco que enfrentava uma prisão na Polónia, alegando que esta condenação era uma forma de perseguição política por parte do Governo polaco. Esta é a primeira vez que o asilo político é concedido a um polaco desde a queda do comunismo.

Anónimo disse...

Um prato reaquecido !
Desculpe a minha ignorancia, mas já estamos habituados.
Esta attitude diplomatica europeia, fonciona deste modo desde o primeiro dia.
O Parlamento Europeu encontrará,de novo, uma soluçāo.

C.Falcao

aamgvieira disse...

A EU maitarde ou mais cedo tem de seguir , se não quer ser muçulmana:https://twitter.com/i/status/1325985053319585794

aamgvieira disse...

A EU mais tarde ou mais cedo tem de seguir , se não quer ser muçulmana:https://twitter.com/i/status/1325985053319585794

Anónimo disse...

Inteiramente de acordo. A Europa não pode ficar reform dos países que não respeitam os valores em que se baseia. Isto é um problema político, não é jurídico e muitos responsáveis europeus seguiram que nem uns patinhos para onde a Bulgária os queria levar. Agora tem a União na mão porque estão em cheque as medidas para enfrentar uma situação de vida ou de morte. Entregaram o galinheiro à raposa. Parece que só o Costa percebeu
Fernando Neves

AC disse...

E que me diz da instauração de processo disciplinar a duas Desembargadoras da Relação de Lisboa por terem decidido, conforme decisões do T. Constitucional, pela ilegalidade de quarentena administrativamente imposta?

AC

Anónimo disse...

Não se preocupem. Até aqui era tudo culpa do Trump, agora o Biden vai resolver todos os problemas. Parece-me óbvio.

Anónimo disse...

Força Costa, temos de ser coerentes! Vamos jogar duro com a Polónia e a Hungria! O dinheiro que se lixe!

João Cabral disse...

Caramba, foi há apenas 4 meses, e já todos se esqueceram?

«O primeiro-ministro, António Costa, defendeu esta terça-feira à saída de uma reunião com o seu homólogo húngaro, Viktor Orbán, que a questão do Estado de direito, embora "central" para Portugal, não deve ser relacionada com as negociações sobre o plano de recuperação.»
https://expresso.pt/politica/2020-07-14-Costa-defende-na-Hungria-que-questao-do-Estado-de-direito-nao-deve-ser-misturada-com-plano-de-recuperacao

João Cabral disse...

O tratamento das minorias russas nos países bálticos tem muito que se lhe diga, senhor embaixador. Decerto, não utilizaria o advérbio "miseravelmente", em especial depois de décadas de russificação. Além disso, a ameaça russa ainda hoje permanece (veja-se o caso da Crimeia) e as manipulações de Moscovo são constantes.

Anónimo disse...

Senhor AC, as Senhoras Juízas estão, eventualmente, sob escrutínio porque, segundo se diz, não souberam ler um documento científico, dele tirando conclusões opostas aquilo que é lá dito. Apenas isso. A partir daí, cada qual inventa o que quiser... E os espíritos, mais ou menos pobres, vão seguindo o seu caminho...
David Caldeira

Anónimo disse...

"... O constante conforto, feito de sorrisos e de palmadas nas costas, dado aos líderes desses países, em especial por parte dos seus parceiros do PPE (Partido Popular Europeu)... "

Mas o Partido Socialista Portugues e o Antonio Costa ja' aderiram ao PPE. E' que a ultima pessoa que me lembro a dar palmadinhas nas costas ao Viktor Orban foi precisamente o Antonio Costa (com direito a sorriso Pepsodente e tudo!).

Anónimo disse...

E, há pouco, mostraram na RTP3 o PM espanhol em alegre cavaqueira com o Orban.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...