quarta-feira, dezembro 02, 2020

Pé ante pé


Vale a pena olhar para trás, observar com atenção o percurso que foi fazendo, num ritmo de quem só dava um passo após ter firmado bem o anterior, depois de ter a certeza do que tinha acabado: de fazer, de dizer, de escrever. Foi assim a obra de Eduardo Lourenço.

O perfil físico, a voz beirã, o humor amalandrado, a gargalhada contida, a forma, só aparentemente hesitante, de expressar, em palavras simples, ideias originais, como que presumiam uma quase modéstia. À medida que o fui conhecendo, fui criando, de Eduardo Lourenço, a imagem de um sábio sereno, que se foi ele próprio construindo, quase sem precisar de se impor, uma figura que foi entrando pela alma deste país um pouco pé ante pé, nela acabando por se firmar como o melhor ilustrador daquilo que somos.

Lourenço, ao contrário de alguns bonzos, nunca parou para pensar. Foi pensando ao longo do caminho, sobre o que esse caminho lhe trazia à razão, porque viu sempre Portugal como uma entidade mutante, na consciência clara de que a mudança faz parte da natureza das coisas. E aí, ao contrário desses outros, que se agarram à identidade como a um padrão do império, assentava a sua genialidade.

Devo a Lourenço muitas coisas. Desde logo, a Europa. Foi com ele que comecei a refletir o quanto este retângulo geográfico com gente, para além de uma história, de uma língua, talvez de uma idiossincrasia comum, necessitava da Europa para cumprir mais uma etapa do seu destino, depois da aventura trágico-marítima do império.

Lourenço ensinou-me a perceber a riqueza de conseguirmos ser, com dupla e não contraditória lealdade, portugueses e europeus. Com ele percebi que a Europa nos completava e que, com alguma assumida sobranceria, devíamos também ter a ousadia de pensar que, sem nós, a Europa também seria outra coisa.

Fez-me também perceber que ser português é isto mesmo – a soma do que outros já foram, em nome daquilo a que chamamos Portugal, com o que hoje realmente somos, sem complexos nem gongóricas vaidades. Mostrou-me que esse é o outro lado, simples mas verdadeiro, de um país que é um sobrevivente da História, por entre os escolhos dos seus fracassos e das caravelas que deixaram de existir. Um país que sempre foi mais rico, como entidade histórica com boas razões para ser orgulhosa de si mesma, quando teve pelas suas ruas gente que nem sequer tem de chamar-se a si mesma de portuguesa para nos ajudar a ser o melhor que somos.

Eduardo Lourenço parte com uma imensa glória: ter ensinado o um país a ver-se ao espelho.

2 comentários:

Anónimo disse...

Paradoxo: elogiar quem constroi uma carreira a tentar definir o que é ser português e, depois, arrasar quem nota desvios ao padrão.

Anónimo disse...

Isto é tudo menos claro! Somos europeus porque precisamos da união, em termos financeiros. E para nos protegermos de nós próprios. De resto, somos muito mais africanos.

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