Corria o ano de 1973. E nós, cadetes na Escola Prática de Infantaria, relutantes frequentadores do Curso de Oficiais Milicianos, corríamos duas vezes por semana um "cross" pela tapada de Mafra. Cada pelotão era uma trintena de pessoas arrancadas à vida civil, alguns com umas barrigas que, nos dias de hoje, seriam insultosas para o rigor apolíneo de Pete Hegseth. Em muitos casos, tinham curso superior e emprego interrompido, alguns eram casados e com filhos, Mafra era uma escala da vida que quase todos bem dispensariam. Mas por alguma razão é que o serviço militar era obrigatório.
O "cross", com G3 ao ombro, naquelas manhãs frias, era um esforço que, apesar de tudo, durava menos minutos do que aqueles que o nosso cansaço parecia indicar. Mas era um suplício, pelo menos para mim. Alguns "arreavam" e ficavam para trás, a maioria tentava seguir, estóica, o passo do Carvalho. É que se este desconfiasse que estávamos a fingir o cansaço, podia haver como castigo uma recusa de saída do quartel no fim de semana.
Quem era o Carvalho? Era um alferes de carreira, comandante do nosso pelotão. Bastante mais novo do que quase todos nós, tinha a autoridade que lhe era conferida pelos galões (na realidade, só um galão, o de alferes) e, fora disso, aquela que fosse conseguindo impor ao grupo que comandava. Era um tipo simples, algo rural, que foi tendo a inteligência de procurar uma aliança implícita connosco. No pelotão, eu irritava-o bastante, porque mandava muitas graças e, frequentemente, indisciplinava o resto do pessoal. Mas o Carvalho desde cedo que percebeu que era melhor não esticar a corda, não abusar da sua autoridade.
Um dia, contudo, o Carvalho acordou "chicalhão" e dedidiu prolongar o "cross" para além daquilo que era humanamente aceitável. Teve a consciência que estava a exagerar, ria-se e parecia gozar connosco. Não gostei e, sempre em passo de corrida, aproximei-me dele e, em voz baixa, disse-lhe: "Quer ser o meu alferes a acabar com o cross ou acabamos nós?" Não percebeu e perguntou-me o que queria dizer com aquilo. Com as palavras a saírem-me difíceis, pela exaustão, esclareci: "Estamos todos muito cansados. Ou dá ordens para voltarmos ao passo normal ou todos nós paramos, e lá se vai a sua autoridade". Ele entendeu e, segundos depois, deu voz de comando para acabar a corrida e começarmos a andar normalmente. Vi que ficou furioso comigo. Eu não tinha mandato dos meus colegas, mas arrisquei e ganhei. Até ao fim da recruta, o Carvalho nunca mais olhou para mim direito.
Mafra acabou em junho. Em outubro, eu estava no Lumiar a fazer o segundo ciclo de uma especialidade que já me não obrigava a fazer "cross": Ação Psicológica. Por essa altura, o governo de Marcelo Caetano tentou "puxar dos galões" e quis condicionar os americanos no uso da base das Lajes, para ajudarem militarmente Israel, que vivia dias de acosso pela guerra do Yom Kippur. Portugal tinha todo o direito a fazê-lo, à luz do acordo que regia a presença americana na base. Mas os americanos não estiveram com contemplações e, praticamente, disseram a Lisboa: ou o governo português dá autorização formal para o uso das Lajes com aquele propósito ou a força aérea americana utiliza de qualquer forma a base e Lisboa perde a face e a sua autoridade formal. Marcelo Caetano recuou.
Fugindo às malhas da censura e graças a informações oriundas das Necessidades, nessas semanas que foram muito mais tensas do que aquilo que o país soube, os diplomatas que estavam comigo na tropa - o António Franco e o Vasco Bramão Ramos - relataram-nos, nas pausas na parada da Escola Prática de Administração Militar, no Lumiar, os apuros em que o sucessor de Salazar estava, pela pressão de Washington. Confesso que me foi então difícil explicar o sentido de uma curta frase que meti no meio da conversa: "No fundo, o Marcelo Caetano ficou na posição do Carvalho". E lá tive eu de contar a história de Mafra, com apoio de um outro camarada que tinha testemunhado a cena.
Por que me lembrei agora disto? Ora essa! Não é óbvio?
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