sábado, fevereiro 09, 2019

Notícias do Brasil (2ª parte)


A representação parlamentar brasileira saiu altamente fragmentada das últimas eleições. Aproveitando essa circunstância, Jair Bolsonaro terá sido aconselhado a constituir o governo de uma forma diferente daquela que tem sido corrente no Brasil, isto é, a não desenhar um executivo pletórico onde pudesse acomodar um conjunto de representantes de partidos que, somados, lhe pudessem garantir maiorias na aprovação de legislação. O seu governo é assim mais pequeno (embora maior do que inicialmente anunciado) e com uma composição atípica. Porque o modelo de suporte parlamentar que visa é diferente.

Vale a pena lembrar que, na tradição parlamentar brasileira, aos partidos do “setor governista” eram atribuídos ministérios que esses mesmos partidos enchiam com o seu pessoal político. Se o partido tinha força quantitativa no Congresso, ocupava todo o espaço dos chamados “escalões” (níveis) de acolhimento de fiéis: eram os ministérios “de portada fechada”. Se se tratava de partidos mais pequenos, a sua ocupação dos cargos ministeriais era mais restringida: tinham de dar espaço, nos “escalões” inferiores, a pessoal indicado por outros partidos. Eram os chamados ministérios “de portada aberta”.

Essa prática era estendida, como modelos adaptados, à plêiade de empresas públicas, com particular interesse por postos de onde saíssem fortes “recursos”. Ficou célebre, em tempos, o modo como um patusco presidente da Câmara de Deputados, Severino Cavalcanti, oriundo do “baixo clero” (deputados menos importantes), eleito inopinadamente por virtude de um dissídio dentro do PT, reclamou para um seu apaniguado um lugar na Petrobrás, que esclareceu que tinha de ser “daqueles de fura-poço”...

Bolsonaro seguiu, ao que se diz por influência dos militares, um outro modelo, que agora se verá se conseguir pôr a funcionar. Assim, além de colocar sete militares (!) em cargos governativos, e mais de 40 em lugares de topo da administração, optou por, na Câmara de Deputados, procurar uma aliança direta com os interesses organizados, em lugar dos partidos. Assim, apoiou-se prioritariamente nas chamadas “bancadas” (frentes de interesses, que atravessam as linhas partidárias) mais representativas de setores conservadores e, em alguns casos, de uma direita muito radical.

É o caso da “bancada evangélica”, onde se acolhem os eleitos oriundos e financiados pelas poderosíssimas igrejas evangélicas (com uma agenda ultra-conservadora para a educação pública e política familiar, recusa do aborto, privilégio das relações com Israel, etc), a “bancada do boi”, com deputados protetores dos interesses de proprietários agrícolas (favoráveis ao desmatamento da Amazónia, à redução dos cuidados ambientais, com grande desprezo pelos interesses e direitos dos indígenas) e a “bancada da bala”, constituída pelos promotores de um alargamento da posse privada de armamento e, simultaneamente, defensores de uma política ultra-securitária, favorável a uma repressão da criminalidade que, em alguns casos, poderia passar as barreiras legais mais elementares e civilizacionais. Há semanas, um relevante bolsonarista reclamava da dificuldade de fazer passar legislação que, em lugar da castração química dos violadores, autorizasse a castração “por facão”...

Na constituição do governo, acolheu, para além do seu novo partido PSL, uma única formação do núcleo tradicional de partidos brasileiros, sem surpresa, o mais à direita - o DEM (ver história na 1ª parte). Raramente na história da democracia brasileira o DEM (que é um partido ausente de representação em muitos Estados) havia conseguido ser tão poderoso: tem hoje três ministros, um dos quais, Onyx Lorenzoni, no decisivo posto de chefe da casa civil. E, como referi no texto anterior, tem agora também a presidência das duas câmaras do Congresso: a Câmara dos Deputados e o Senado. Para um partido que, nesta eleição, viu reduzida fortemente a sua representação parlamentar trata-se de uma vitória indiscutível.

Um filósofo brasileiro ultra-reacionário, Olavo de Carvalho, que vive nos EUA e é uma espécie de guru de alguns setores próximos de Bolsonaro, terá também tido “direito” a indicar os nomes do ministro da Educação (um colombiano naturalizado brasileiro, que tem uma obsessão contra o método de alfabetização de Paulo Freire, um património e um orgulho para muitas gerações brasileiras), do ministro das Relações Exteriores e do consultor internacional do presidente.

O caso do chefe da diplomacia, Ernesto Araújo, é, provavelmente, o maior erro de “casting” de um governo onde eles não parece faltarem (o caso da ministra evangélica, indicada para a pasta da Família, Damares Alves, é uma fonte regular de episódios hilariantes). 

Funcionário diplomático de nível baixo, o novo ministro das Relações Externas, um fanático anti-multilateralismo, negacionista das alterações climáticas, com uma cultura de extrema subserviência face aos EUA (que não é muito bem acolhida numa escola militar muito nacionalista e às vezes com um ligeiro tropismo anti-“yankee”), fez já uma série de “gaffes” que, ao que parece, terão levado os militares em torno de Bolsonaro a propor a criação de uma espécie de “conselho estratégico”, para regular as decisões com implicações externas mais relevantes.

Há uma tese a correr segundo o qual este bizarro ministro será utilizado para fazer o “dirty work” de “remoções” de chefes de missão tidos como menos simpáticos para o novo poder, como nomeações de diplomatas mais fiéis e ideologicamente mais “like-minded” com o "bolsonarismo" ideológico. Daqui por uns tempos, ele seria “posto com dono” numa embaixada simpática e a chefia do Itamaraty seria entregue a alguém responsável, com outro estatuto, capacidade e prestígio.

Duas notas para dois ministérios bastante poderosos - cujos titulares, não por acaso, acompanharam Bolsonaro em encontro de Davos, onde a impreparação clamorosa do presidente fez passar uma humilhação ao Brasil, reconhecida internacionamente.

Um superministério económico foi entregue por Bolsonaro a Paulo Guedes, um cultor da “escola de Chicago”, admirador do “choque” económico de Pinochet no Chile, restando ver quão longe conseguirá ir num processo intensivo de privatizações que se propôs desencadear, no que poderá vir a ter algumas reticências da área militar e em setores produtivos internos que vivem, há décadas, refugiados no protecionismo.

O segundo importante super-ministério foi entregue ao juiz-vedeta Sérgio Moro, adorado pelos diabolizadores de Lula, que tem na sua pasta a estranha combinação da justiça com a ordem pública.

Há muito quem pense que pelo sucesso, ou não, destes dois ministros passará muito o destino do governo Bolsonaro.

E chegamos, finalmente, aos militares. Aparentemente, a tropa tem um forte “droit de regard” sobre o novo governo. (Devo dizer que nunca pensei que a sua influência pudesse ir tão longe, mas vai). Nos dias de hoje, essas figuras não eleitas, ungidas de uma espécie juízo de “neutralidade” patriótica, quase “sebastiânica”, constituiram-se como um elemento fulcral do novo poder político brasileiro. Estaremos já quase numa espécie de “governo militar”, em modelo de “coabitação” democrática com os civis? Se não estamos lá, não estamos muito longe disso. Na estrutura governamental, dois nomes se impõem: os generais Augusto Heleno e Santos Cruz. O primeiro parece ser o “master mind” do governo, mas o segundo tem também um forte prestígio. Parecem ser eles quem “define a linha” e, embora na reserva, quem promove a articulação com as chefias militares no ativo - que dão sinais de estarem verdadeiramente empenhadas no sucesso deste governo.

Mas há um terceiro nome, que a cada dia que passa tem vindo a ganhar mais evidência, mas também alguma polémica: é o vice-presidente Hamilton Mourão. Um filho de Bolsonaro confessava, há dias, que a escolha de Mourão para a vice-presidência havia sido feita para travar um eventual processo de “impechment” de Bolsonaro. O raciocínio era simples: o general Mourão dera provas de ser um radical desbocado, atribiliário e cáustico, um ultra que trazia as piores memórias do regime militar. Assim, ninguém se atreveria a afastar Bolsonaro porque, se isso acontecesse, seria pior a emenda do que o soneto...

Ora Mourão, empossado que foi do cargo de vice-presidente, decidiu passar de Dr. Jeckyll para Mr. Hyde. O seu discurso suavizou, deu mostras de rara compreensão perante o caso de um deputado de extrema-esquerda que se disse perseguido, teve uma linguagem contemporizadora para com a questão do aborto e, em vários outros dossiês, tem-se revelado, dia após dia, cada vez mais distanciado de certos aspetos mais radicais do discurso do “bolsonarismo”.

Um líder evangélico fez já um video quase a insultar Mourão, o filósofo Olavo de Carvalho, lá dos Estados Unidos, tem vindo a dizer em “tweets” cobras e lagartos do vice-presidente e a “famiglia” de Bolsonaro já deu claras e públicas notas de estar à beira de um ataque de nervos. O próprio presidente, no leito do hospital onde recupera dos efeitos do atentado, ao que parece descontente com as liberdades auto-assumidas pelo seu vice, decidiu avocar, mesmo nesse estado físico, a plenitude dos poderes presidenciais. Tudo isto a fim de evitar que Mourão continue a utilizar a presidência interina para mostrar estatuto, “gravitas” de Estado e um já indisfarçável tropismo para se sugerir como alternativa futura ao presidente. Ah! E, de caminho, o vice-presidente tornou-se a coqueluche dos diplomatas estrangeiros em Brasília, que correm a visitá-lo. Há dias, também recebeu uma delegação palestiniana, à qual quase garantiu que a promessa de Bolsonaro a Netanyahu, de transferir a embaixada brasileira de Tel-Aviv para Jerusalém, afinal pode não ser para levar a serio.

Enfim, neste novo e nóvel governo brasileiro, tudo aponta para que se esteja a “armar uma estrangeirinha” dos demónios. Logo veremos.

sexta-feira, fevereiro 08, 2019

Pensar o futuro da Gulbenkian


Tive um grande prazer em ser convidado pelo Conselho de Administração da Fundação Calouste Gulbenkian para passar a integrar um corpo de 12 conselheiros, portugueses e estrangeiros, que teve hoje a sua primeira reunião, no início de um exercício que tem como objetivo aconselhar a instituição a refletir o seu trabalho no futuro, conforme pode ser lido aqui.

A luta dos enfermeiros

Custa-me muito ver uma classe tão prestigiada e respeitada como sempre foram os enfermeiros, que em toda a vida nos habituámos a ver como nossos “aliados” em momentos difíceis, terem-se deixado conduzir por uma luta venal extrema, com laivos de crueldade, muito à revelia do sentimento profissional de solidariedade com o sofrimento do próximo que tinham sabido cultivar, e que agora os aliena do público utente e projeta deles uma imagem muito negativa. As lutas sindicais são legítimas e insubstituíveis em democracia, mas a esta faltou o bom-senso e a afirmação permanente do primado do sentido de serviço público, até para preservação do bom nome da classe, que se liga intimamente ao respeito que, com certeza, quererá conservar na sociedade. Este é um triste momento para a imagem dos enfermeiros portugueses - é preciso dizê-lo. E estranho muito que, talvez por temor corporativo, alguns enfermeiros com maior sentido de responsabilidade não tenham tido a coragem de vir a terreiro dizer aos seus colegas que o que é demais é erro.

Brasil


Há dias, deixei aqui a promessa de um segundo texto sobre o Brasil, complementar do que escrevi. Não a cumpri. Fá-lo-ei quando tiver tempo, coisa que não tenho tido, embora possa não parecer.

quinta-feira, fevereiro 07, 2019

A questão europeia


Estão à porta as eleições para o Parlamento Europeu. Entre os deputados a eleger pelos “27” (ou pelos “28”, se o Brexit se atrasar) haverá, com toda a certeza, uma percentagem de eurocéticos, ou mesmo de anti-europeus, superior a qualquer anterior legislatura, o que tornará aquele areópago numa instância mais contrastante e polémica. E isso não ocorrerá sem consequências negativas para a eficácia daquela instituição, cujos poderes, à luz dos tratados, têm vindo a crescer. Esse vai ser um problema europeu, para os próximos cinco anos.

Estranho, contudo, que ninguém fale de uma outra realidade, paralela a esta, a qual, a meu ver, pode ter efeitos bem mais graves no funcionamento da União: refiro-me à composição da nova Comissão Europeia, que estará em funções no final do corrente ano, depois de aprovada pelo novo parlamento.

A Comissão, que tem o exclusivo da iniciativa legislativa, é uma instituição composta por personalidades - uma por país - indicadas pelos Estados membros, designadas pelos respetivos governos, em diálogo com o futuro presidente. Em princípio, os comissários designados devem “esquecer” a sua nacionalidade, mas a realidade da vida aponta quase sempre noutro sentido, isto é, quase sempre carreiam para dentro do colégio as linhas políticas que marcam os governos que os escolheram.

Durante muitos anos, a Europa habituou-se a viver sob a égide de duas grandes famílias políticas – uma conservadora, outra social-democrata. Essas correntes foram hegemónicas ao longo de toda a história europeia, com expressão natural na composição das sucessivas Comissões. Mantinham algumas diferenças entre si, mas as suas parecenças foram sempre bem maiores do que as suas dissemelhanças, pela circunstância de olharem o desenvolvimento do projeto europeu sob um prisma basicamente comum. No trabalho coletivo dentro da Comissão, sob a coordenação de um presidente oriundo da família política dominante no conjunto dos governos nacionais, as suas eventuais diferenças geralmente esbatiam-se, sob esse “template” europeísta.

Tudo isso pode agora mudar. Há governos europeus, alguns que hoje são membros “rebeldes” das famílias políticas tradicionais, que não quererão perder o ensejo de enviar para o seio daquela instituição figuras que consigam defender a sua “diferença” e até, porque não?, a sua vontade de contestar o próprio projeto europeu. É a democracia que lhes confere esse direito. A menos que aconteça um “milagre”, os anos que aí vêm serão muito difíceis para a Europa.

(Artigo que ontem publiquei no “Jornal de Notícias”)

quarta-feira, fevereiro 06, 2019

Pantaleão


O leitor deste espaço há-de convir que não se encontra um Pantaleão por dá-cá-aquela-palha, em cada esquina da vida. Eu nunca tinha encontrado nenhum. Mas há pouco, cruzei-me com um Pantaleão, precisamente numa esquina: era angolano, da Huíla, e condutor do Uber que eu tinha chamado. Está por cá há sete meses. Inquiri de onde lhe vinha o nome: era de um avô. Não, o Pantaleão não era preto (como o leitor poderia suspeitar), era branco e o avô era da Madeira (por cá, há Pantaleões na Madeira e em Gondomar, fiquei a saber, porque ele me disse).

Perguntei-lhe se tinha lido o livro de Vargas Llosa, "Pantaleão e as visitadoras". Nunca tinha ouvido falar. Disse-lhe para o ler. Malandro (com a permissão dos leitores deste casto blogue), acrescentei, para o estimular: "Mete tropa e muitas gajas ..." O nosso Pantaleão ficou entusiasmado. No fim da viagem, tomou nota, por escrito. Disse-me que vai comprar o livro.

Se acaso de outro tipo de pessoa se tratasse o Pantaleão com que hoje me deparei, e se esse outro já tivesse lido, quanto mais não fosse por curiosidade onomástica, a saborosa novela de Vargas Llosa, então talvez tivesse valido a pena eu ter-lhe revelado, se o não soubesse, que é dedicado a São Pantaleão (na imagem) um dos belos mosteiros no monte Athos, na Grécia - um lugar que faz parte de algumas das já muito escassas coisas que integram a minha agenda de curiosidade pendente, para usufruto ainda neste "vale de lágrimas", tal como livros, vitualhas, copos, viagens e outros prazeres lúdicos (eu escrevi lúdicos, não lúbricos!) que acho que ainda valerá a pena ver, consumir ou experimentar, antes que as pilhas acabem.

Enfim, fiquei hoje a saber que, em Lisboa, até há Pantaleões. Isto é que é uma cidade cosmopolita!

A questão europeia


Intitula-se "A questão europeia", o artigo que hoje publico na minha coluna semanal no "Jornal de Notícias" e que pode ser lido aqui.

Uma questão de fé


Há dias, ao falar por aqui do ISCSPU, alguém se referiu a um dos professores da casa, o padre Silva Rego, que conheci nesses anos que passei pelo palácio Burnay, na rua da Junqueira, na mudança de década de 60 para 70, do século passado.

O ISCSPU, a que o 25 de abril haveria de fazer perder o "U" de "Ultramarina", foi a última versão de uma muito antiga escola de quadros para a administração colonial, criada no âmbito da Sociedade de Geografia de Lisboa. Adriano Moreira, que dirigiu o ISCSPU até 1969, foi responsável por alguma qualidade académica que o Instituto chegaria a ter.

Silva Rego era um professor do ISCSPU, um colaborador próximo de Adriano Morteira. Foi um investigador reconhecido nas suas áreas específicas de competência, em especial a história das missões em África. Além de docente de cadeiras de História, dirigia o Centro de Estudos Missionários, um espaço onde me recordo que havia uma pequena biblioteca, um “oásis” em que se podia trabalhar em grande sossego, com um cheiro a madeiras e papel que o meu olfato nunca mais esqueceu.

Rego era beirão, o que se notava à distância pelos “xis” abundantes na sua conversa. Era um homem firme, na sua aparente bonomia de sacerdote. Mas, do que me lembro, e não lembro muito, não me pareceu ser má pessoa.

Um dia, em 1971, teve lugar uma Assembleia de Escola, no maior anfiteatro da casa, a que Silva Rego, por uma qualquer razão, presidia. Por essa época, Adriano Moreira já fora afastado da direção do ISCSPU, num ato de saneamento político de Marcelo Caetano, executado pelo seu homem de mão na Educação, Hermano Saraiva. O Instituto era já então dirigido por Vasco Fortuna, uma figura com uma postura nada dialogante com os estudantes, com quem eu iria passar a ter um conflito, sério e longo, pouco tempo depois.

Tenho ideia de que a sessão presidida por Silva Rego, que imagino tenha sido organizada para tentar controlar os constantes debates que fazíamos, para discutir a natureza da escola, tentando forçar a abertura às Ciências Sociais que Adriano Moreira iniciara, terá evoluido mal, à luz dos propósitos para que fora convocada. O debate entrou num registo algo caótico e, a certo ponto, fugiu ao controlo de Silva Rego. Quando alguém que intervinha citou a palavra “colónias”, que por ali era em absoluto proibida, ele perdeu a paciência, enfureceu-se, pôs-se de pé e declarou, com solenidade: “Está levantada a sessão!”. Imagino que tenha soado a “xexão”...

Da primeira fila da assistência, numa insolência que reconheço escusada, mas com a garra de “troublemaker” académico que, por esses tempos, eu era, levantei-me e declarei, alto e bom som: “Se o senhor professor levanta a sessão, então nós pousamo-la!”. A minha única mas escassa “autoridade” provinha do facto de ser presidente da Assembleia Geral da associação de estudantes. Soaram pela sala algumas gargalhadas e, enquanto Silva Rego abandonava o anfiteatro, apressado e furibundo, acompanhado dos professores presentes, eu encaminhei-me para a mesa, “assumi” a presidência e, pouco subtilmente, converti a sessão numa RGA, uma “reunião geral de alunos”.

Já não recordo bem como as coisas se passaram depois, mas, horas mais tarde, fui chamado ao gabinete de Silva Rego. Temi o pior, claro.

Rego tinha sido meu professor, creio que de duas disciplinas, em que fui aprovado com merecidas notas de nível mediano. Num desses exames, vi-o ficar profundamente irritado quando lhe citei o célebre livro do historiador britânico Charles Boxer, “Race relations in the Portuguese colonial empire”. Mal eu sabia, embora devesse ter imaginado, que Boxer era o seu maior “ódio de estimação”. (Um dia de 1990, em Londres, tive oportunidade de contar este episódio a Boxer, que foi talvez o mais importante historiador da nossa aventura colonial, que me revelou nutrir escasso apreço académico por Rego).

Voltemos àquela tarde de 1971. Apesar dos meus receios, Silva Rego, que estava já bem mais calmo, recebeu-me com um tom que, sem deixar de ser firme, era relativamente cordial. Na sua caraterística pronúncia beirã, tratando-me por tu, como paternalmente sempre fazia, disse-me: “Ó filho! Tu tens de entender, de uma vez por todas, que não estás bem nesta casa! Quem para aqui vem deve comportar-se como quem vai para um seminário: tem de acreditar! Ora tu, tal como outros amigos teus, não acreditas na política de manutenção do Ultramar. Isso ainda um dia te vai criar outros problemas, mas esse não é agora o meu problema. O que eu te queria dizer, com a maior franqueza, é que acho que o teu lugar não é nesta escola. Devias ir fazer vida para outro lado.” Não sei o que lhe respondi nem como a conversa evoluiu.

Silva Rego, nessa tarde de 1971, tinha razão. A partir de então, e durante três anos, a minha vida viria a tornar-se num “inferno”, no ISCSPU. Tive um longo processo disciplinar, por este e por outro incidente, e passei por vários tempos complicados que incluiram uma notória perseguição pessoal, a proibição de entrada nas instalações, com acesso apenas às “frequências” e aos exames. No ano seguinte, uma decisão ministerial viria a impedir a minha reeleição como dirigente académico. Depois do 25 de abril, vim a ter acesso a um processo que sobre mim foi elaborado, enviado ao Ministério da Educação, contendo citações de intervenções que eu tinha feito em várias ocasiões, com comentários que me qualificavam como um “perigoso agitador” e epítetos parecidos, num tom “pidesco” que me ajudou a entender melhor os métodos de certas pessoas da “casa”, algumas das quais me denunciavam por detrás e sorriam pela frente. O que lá vai lá vai, mas o que ficou ficou.

No dia 29 de abril de 1974, decido entrar no ISCSPU. Voltei fardado de militar, como miliciano que era. O José Augusto, o contínuo “bufo” que vigiava os estudantes e que, até àquele dia, tinha tido ordens para barrar o meu acesso físico à escola, recebeu-me com um sorriso do tamanho do mundo. É que o mundo mudara, entretanto

Nunca mais soube do padre Silva Rego. Reconheço que, por um lado, ele estava certo: eu não acreditava em nada daquilo. E que, por outro, estava errado: a História deu-me razão.

terça-feira, fevereiro 05, 2019

Lembrança de Arafat


A TSF convidou-me para lembrar Yasser Arafat. Aqui.

Oa amigos do Delito


Um dos mais prestigiados blogues portugueses fez-nos uma simpática referência. Ver aqui.

Com todas as letras

Ao observar o esforço dos que procuram colar o “socialismo” de Maduro a quantos, do lado da democracia, se definem como socialistas, quase que somos tentados a dizer que o radicalismo dessa gente está, afinal, muito mais próximo de Mário Machado e do PNR do que querem admitir.

segunda-feira, fevereiro 04, 2019

António Passos Coelho


Quando foi trabalhar para Vila Real, em meados dos anos 40 do século passado, ainda solteiro, o meu pai ia almoçar e jantar todos os dias a casa de um seu conterrâneo, de Viana do Castelo, José Lourenço dos Santos. Como era hábito nesses tempos, na residência desse seu amigo eram alugados quartos a estudantes, com partilha de refeições, num ambiente familiar.

Contava o meu pai, que já desapareceu há mais de uma década, com uma idade a rondar os 100 anos, que havia conhecido por lá um jovem brilhante, vindo de uma aldeia próxima, excelente aluno, que viria a ser um médico distinto. Essa pessoa fez vida por muitos lugares, andou pelas Áfricas e aportou um dia, de novo, à cidade onde tinha estudado, não longe da aldeia onde nascera. António Passos Coelho, era esse o seu nome, montou consultório em Vila Real e, curiosamente, o meu pai acabaria por ser seu paciente.

Um dia, fui tentado à aventura de, como independente, ser candidato à presidência da Assembleia Municipal de Vila Real, na lista do PS. Do lado ”de lá”, encontrei o candidato do PSD, António Passos Coelho. Tivemos um debate radiofónico bem aceso, mas com grande elevação. Perdi a eleição, mas criámos uma estima mútua para sempre. Anos mais tarde, já há quase duas décadas, quando o município nos atribuiu a ambos a medalha de ouro da cidade, António Passos Coelho pediu-me que também o representasse na intervenção pública de agradecimento que então fiz. Este seu gesto deu-me grande prazer.

António Passos Coelho faleceu hoje. Era um homem encantador, estimado na cidade, um príncipe no trato pessoal, muito ligado à memória da sua juventude e da sua terra, um homem culto, que escrevia lindamente e publicou imensos trabalhos. Guardo um seu livro de memórias, com uma dedicatória reveladora da grande simpatia que se estabelecera entre nós. Lamento muito a sua morte.

À família, em especial ao seu filho, dr. Pedro Passos Coelho, deixo uma nota de sincero pesar.

Stroessner


“Você viu quem era, Francisco?”, perguntou-me Toninho Drummond, sentado ao meu lado, no carro em que fui levá-lo a casa, na chamada Península dos Ministros, depois de um almoço no Piantella. Eu não tinha prestado atenção às três pessoas que iam em sentido contrário no passeio e de quem o carro já se afastava, mas ele esclareceu-me: “Era o Stroessner!”.

Como dizem os brasileiros, “caiu a ficha”! O Stroessner, o mais sinistro ditador da América Latina, que implantou um regime de terror no Paraguai, ia ali! Sabia que ele se tinha refugiado no Brasil, mas estava longe de pensar que ainda fosse vivo e, mais ainda, que fosse quase meu vizinho, em Brasília.

Sou muito dado, confesso, a estas curiosidades históricas e, deixado que foi o eterno (e já desaparecido amigo) diretor brasiliense da Globo na sua residência, disse ao Daniel, o meu motorista, para se apressar, porque queria ainda ver o Stroessner. Não tive sorte. Nem sombra já desse homem, então com 92 anos, no nosso caminho de volta, naquela rua que é o eixo da “quadra” habitacional mais prestigiada da capital federal.

Perdi assim, nessa tarde, o ensejo de ver o “velho fascista” paraguaio. Foi o (também já ido) António Dias quem um dia me disse, quando imprudentemente me interroguei sobre a necessidade de ainda  andar a prender guardas dos campos de concentração nazis, quase centenários, que “um fascista velho não deixa de ser um fascista, só que velho...”

Se há uma escala entre os ditadores, e acho que essa escala deve existir (embora nem por isso deixem de ser todos ditadores), Stroessner ocupa, nesse sinistro “ranking”, um lugar cimeiro. Foi, sem a menor das dúvidas, um dos maiores bandidos da história política da América Latina, responsável por muitas mortes, prisões e torturas. Se a justiça existisse, devia ter ficado na prisão a expiar esses crimes. Não será por acaso que acabo de ler que o Paraguai está agora a festejar o golpe militar que, há precisamente trinta anos, colocou um ponto final à sua ditadura.

Alfredo Stroessner viria a morrer em Brasília, onde vivia desde 1989, no ano seguinte, em 2006. O governo de Lula não teve, e bem, o menor gesto oficial, na altura da sua desaparição. Como reagiria hoje Bolsonaro? Só podemos especular.

domingo, fevereiro 03, 2019

Notícias do Brasil (1ª parte)



O novo governo brasileiro acaba de garantir, na chefia das duas câmaras do Congresso, figuras cuja orientação política se lhe apresenta como favorável. Rodrigo Maia e o até agora desconhecido Davi Alcolumbre, ambos oriundos do DEM, respetivamente na Câmara de Deputados e no Senado, parece serem uma boa notícia para o novo presidente. O DEM, aliás, surge, nesta fase política, como o principal partido do espetro tradicional que, até agora sem falhas, se apresta a apoiar abertamente Bolsonaro.

Bolsonaro está, para já, a encontrar um ambiente confortável no Congresso. Não há nenhuma surpresa neste facto: é da lógica dos regimes presidencialistas que aos presidentes recém-eleitos, independentemente da lógica do número de deputados, seja conferida uma trégua parlamentar para o início da governação, mesmo que depois se conclua que não há uma maioria automática para aprovar os “pacotes” legislativos. A legitimidade decorrente da eleição tem, além disso, um tradicional tropismo, que leva quase sempre a uma onda inicial de adesões à ala “governista”, facilitada no Brasil pela imensa flexibilidade do sistema partidário.

Bolsonaro tem, sob o seu controlo, um novo partido, o PSL, que não saiu maioritário das eleições legislativas, embora tenha tido um resultado não despiciendo. Isso também é normal. 

Nos tempos de Lula ou Dilma, o PT - contrariamente à imagem mítica que se criou - nunca teve mais de 20% dos votos e, por isso, foi sempre obrigado a “costurar” apoios com várias outras formações partidárias, a fim de garantir maiorias no Congresso. O “mensalão” foi um dos métodos para sustentar esse apoio, sendo outro a distribuição de lugares no aparelho de Estado, de ministérios a empresas públicas. 

O vencedor conjuntural deste primeiro “round” no âmbito legislativo é o DEM, que sempre foi o partido mais à direita do espetro político tradicional do Brasil. Um partido que também tem três ministros no governo. O que é o DEM?

Convém lembrar que, durante a ditadura militar, para alimentar a ficção de que existia um mínimo de pluralismo, haviam sido criados, “manu militari”, dois partidos: a Arena, um partido de aberto apoio ao regime militar, que deu suporte a algumas das sua medidas mais sinistras, e o MDB, onde se juntava alguma oposição legalista (isto é, a que não optou pela luta clandestina e mesmo armada, de resistência à ditadura), às vezes muito complacente, outras com registos de rutura, a qual, de certo modo, ia aceitando fazer o jogo da tropa, em troca de um mínimo de voz pública. 

No regresso à democracia, em 1985, estas duas formações políticas colocaram-se, com alguma naturalidade, na primeira linha no novo sistema político.

A Arena, “absolvida” pelo ambiente de transição do apoio dado à barbárie militar, evoluiu para se transformar no PFL, que, anos depois, mudaria o nome para DEM. O DEM esteve várias vezes associado ao poder político democrático, afirmando-se sempre como uma estrutura política muito conservadora.

O MDB, após 1985, transformou-se no PMDB (hoje chama-se de novo MDB) e foi, até 2018, o maior partido do Brasil, embora com uma heterogeneidade que sempre o levou a ter, simultaneamente, uma ala de suporte dos governos e uma outra que se lhes opunha. 

Perceber o PMDB é meio caminho andado para perceber o Brasil. Mas não vale a pena tentar saber se o PMDB/MDB é de esquerda ou de direita. Tem sido, muitas vezes, as duas coisas simultaneamente. Tanto esteve com Lula como se aliou frequentemente à direita. A sua única “ideologia” visível, ao longo destes anos, foi sempre tentar ocupar espaços de poder a todo o custo. 

O mais mais relevante sobressalto dentro do PMDB, em termos históricos, foi a cisão que deu origem ao PSDB, por emancipação da sua ala dita social-democrata, basicamente criada à volta de Fernando Henrique Cardoso. Muito polarizado contra o PT nos tempos de Lula e Dilma (candidaturas presidenciais de José Serra, Geraldo Alckmin e Aécio Neves), o PSDB acabou por ter uma forte “virada” conservadora e hoje, no Congresso, “namora” visivelmente o bolsonarismo, ao lado do DEM.

Nas últimas eleições, e apesar da derrota presidencial de Haddad, acabou por ser o PT, de entre os partidos tradicionais brasileiros o que melhor se sustentou, debaixo do “tsunami” que foi o efeito Bolsonaro. Essa “vitória”, que o fez ter a maior “bancada” na Câmara de Deputados, de pouco lhe serve, porquanto, no atual cenário político brasileiro, qualquer aliança com o PT é “tóxica”. O caminho das pedras que o partido de Lula vai ter de fazer, ainda por cima sem uma liderança personalizada evidente, deve ser longo.

Voltemos ao MDB que perdeu, pela primeira vez desde 1985, a sua tradicional liderança em termos de eleitos. Ontem, perdeu também a presidência do Senado, deixando assim de ter qualquer lugar institucional na estrutura central do Estado (recordo que tinha a presidência com Temer e a chefia do Senado, antes com Renan Calheiros e depois com Eunício Oliveira). Passará agora a fazer oposição a Bolsonaro? É cedo para dizer, até porque o equilíbro interno do partido vai depender muito das relações de forças que se gerarem nos diversos Estados - e a leitura que os observadores hoje fazem prospetivamente sobre isso não é unívoca.

Em síntese: Bolsonaro teve um bom resultado nas presidências do Congresso, e tem, à partida, um ambiente favorável nas câmaras legislativas, mas tudo vai depender do modo como se vier a articular com os partidos. E, até agora, o novo presidente, neste domínio, está a seguir uma orientação atípica. Amanhã explicarei porquê e a minha perspetiva, na segunda parte deste texto.

sábado, fevereiro 02, 2019

Os primeiros amigos


Hoje, deu-me para olhar, com alguma curiosidade, sobre quem tinham sido as primeiras pessoas a comentar o post inicial publicado neste blogue, há precisamente dez anos. 

Nesses treze correspondentes descortinei vários amigos pessoais que, nos dias de hoje, encontro com alguma frequência: Leonor Xavier, António Serras Pereira, Renato Leitão e, com menos regularidade, Ana Hudson, que vive nas terras do Brexit. 

Com Paulo Roberto de Almeida, um diplomata brasileiro com vasta e importante obra publicada, “cruzo-me” até hoje por via informática. 

Já com Silvino Potêncio, um transmontano que vive no Rio Grande do Norte, o contacto tem sido mais esparso. 

Não estão há muito connosco Paulo M. A. Martins, jornalista português que morreu no Ceará e com quem convivi no Brasil, bem como Florindo Miranda Ventura, figura destacada da comunidade portuguesa em Paris, com quem, infelizmente, o meu contacto em França acabou por ser breve. 

Há ainda mais cinco nomes de “amigos” virtuais: Dulce Dias, jornalista portuguesa que residia em França, o anónimo PLC, que habitava em Paris, uma correspondente luso-francesa chamada Elsa, que tinha o blogue franceportugal.over-blog.com, que deixou de se publicar há três anos, Leonel Vicente, que ainda coordena o nabantino Memória Virtual, e Victor Passos, de Viana do Castelo. Que será feito destas pessoas, uma década depois?

10 anos


Passam hoje dez anos - uma década, caramba! - desde que iniciei este blogue. Dizia o Paulo de Carvalho, na canção, “dez anos é muito tempo”. E é! 

Desde 2 de fevereiro de 2009, data da minha chegada a Paris, até ao dia de hoje, decorreram quase 3650 dias. Foram 6674 posts os que, entretanto, aqui surgiram publicados. Foram muitas horas dedicadas, retiradas a outras dimensões da vida - a família, os amigos, os livros, os filmes. Mas fi-lo sempre com gosto, sem o menor sacrifício, às vezes, porém, já com alguma falta de imaginação e um natural cansaço.

Não houve nenhum dia em que por aqui não deixasse algo, chovesse ou fizesse sol, com doenças ou sem elas, estivesse eu onde estivesse - e escrevi o blogue de dezenas de sítios bem distintos, de Washington ao Ceará, do Oman à África do Sul, da Colômbia ao Azerbaijão, da Estónia a Luanda, do Egito à Ucrânia, do México à Argélia, de Roma a Berlim, de Maputo a São Petersburgo, de Istambul à Noruega, de Lisboa a Vila Real, etc, etc.

O blogue teve tempos diferentes. Por quatro anos, foi escrito pelo então embaixador de Portugal em França. Embora nunca tivesse tido um tom oficioso, quem assinava não deixava de ter presente essa sua condição - e isso era dito no post de apresentação. Mais tarde, regressado a Portugal e liberto de responsabilidades que forçavam a uma certa contenção, o blogue ganhou mais liberdade e o seu estilo evoluiu. Alguns apreciaram, muitos outros não. É a vida!

Mais do que as notas conjunturais, políticas ou outras, valorizo naquilo que por aqui escrevi os episódios que deixei registados. Não guardo apontamentos nem documentos, pelo que me valho da memória para reter esses pedaços de lembranças. O blogue é, até ver, o meu único repositório despretensioso de recordações. 

Por quanto tempo continuará este blogue a ser escrito, neste que é um tempo muito mais dominado pelo Facebook ou pelo Twitter? Não sei. Notar-se-á, com certeza, que já estive mais entusiasmado com este espaço. Para já, vou andando, navegando à vista. O que for soará, como o meu pai costumava dizer.

Uma última palavra, de sincero agradecimento, às vezes já de amizade, àqueles que fazem o favor de me ler, alguns desde há muito. É por saber que existem que aqui venho todos os dias. 

quinta-feira, janeiro 31, 2019

Limian cheese

Há uns anos, em Brasíla, em casa de um político local (pessoa cujo futuro institucional, curiosamente, se decidirá nas próximas horas), veio à conversa um episódio marcante no nosso anedotário político nacional: o “queijo limiano”. 

Para benefício dos mais jovens, vou relembrá-lo: um governo dos anos 90 (que eu integrava, diga-se) teria, segundo as “más línguas”, negociado com um deputado de um partido da oposição o seu voto a favor do orçamento de Estado desse ano. Tendo o governo 115 deputados e a oposição, na sua totalidade, outros 115, um voto bastava para desequilibrar o parlamento (no jargão político britânico, a uma assembleia assim ‘empatada” é dado o nome de “hung parliament”). De acordo com esses maldosos boatos (aliás, nunca verdadeiramente confirmados...), à época postos a correr, ao deputado (e ex-autarca) teriam sido feitas sólidas e quantificadas promessas de investimento público na sua localidade, que envolveriam novas acessibilidades e, em especial, que favoreceriam a então ameaçada permanência de uma fábrica de queijo, tipo “limiano”, muito importante para a economia e emprego da região. Bastava para tal que ele viesse a favorecer o governo com o seu (essencial) voto (ou abstenção, já não recordo bem). E isso terá acontecido. Por um mero acaso, estou certo...

Contei esta história e, em lugar de obter uma qualquer reação das pessoas que estavam à volta da mesa, deparei com um muro de desinteressado silêncio. Ninguém percebia a razão do “escândalo” que eu referira ter-se gerado na sociedade portuguesa, na altura da ocorrência desse episódio. De facto, num país e num sistema político como o do Brasil, é quase uma banal obrigação que um deputado oriente o seu sentido de voto de acordo com os interesses locais que lhe compete defender. Por ali, a lógica do voto por disciplina partidária é uma exceção, não a regra. A minha historieta sobre o “queijo limiano” não fez, assim, o menor sucesso naquela conversa.

Por que trago isto aqui, hoje? Porque acabo de ler na imprensa britânica que alguns deputados, que reiteradamente têm votado contra o acordo negociado entre a primeira-ministra Theresa May e os “27”, estarão, nas últimas horas, a ser “pescados à linha” por Downing Street, que procura obter o seu voto a troco de financiamentos para projetos de desenvolvimento nas suas respetivas regiões. Como se chamará por lá este mecanismo, no futuro: “Limian cheese”?

Maduro & Cia


Vão confusos os dias da Venezuela. A liderança de Nicolás Maduro está fragilizada internacionalmente a um ponto nunca antes visto. Por muito tempo, o seu patético e cada vez mais inaceitável regime foi sobrevivendo sob a complacência de muitos e com o apoio de uns poucos - estes últimos talvez menos interessados na pessoa de Maduro e, muito mais, tentando evitar que o país caia de novo na esfera de influência dos Estados Unidos, nessa espécie de “deve-e-haver” de poder que, mesmo depois da  Guerra Fria, continua a marcar o mundo. 

Fica a sensação de que talvez tenha sido a mudança política ocorrida no Brasil que acabou por dar uma espécie de “luz verde” à onda anti-Maduro que se gerou nas últimas semanas. Os EUA, a quem, de vez em quando, dá jeito indignarem-se através de um conflito externo no lado “do bem”, aproveitaram este tempo mais sombrio de Trump para colocarem no terreno toda a sua retórica de pressão, estando ainda por saber se ficarão por aí. Não deixa de ser curioso notar que, por décadas, a América continuou a comprar o petróleo venezuelano, o que serviu para alimentar o regime de Maduro e lhe permitiu pagar principescamente as forças armadas e as polícias repressoras. A “realpolitik” é o nome fino do cinismo político.

A União Europeia, cuja “política externa” é sempre uma média aritmética da posição dos seus principais poderes (pontualmente ponderada pelas reticências, ideológicas ou de interesses, de alguns Estados) hesitou um pouco: depois de declarar algumas platitudes, quebrou-se na tibieza de atitude por impulso de uns quantos, voltando finalmente a juntar-se num requisitório mais exigente face a Maduro. Deixar os EUA na liderança democrática do mundo é sempre um incómodo para Bruxelas, que consegue, de quando em vez, os seus momento de coragem.

Não é muito evidente o que se seguirá, a menos que as forças armadas resolvam pilotar uma transição – naturalmente, descontando uma aventura militar externa, que somaria petróleo ao fogo. O auto-proclamado presidente tem hoje, à evidência, uma maior legitimidade política do que Maduro – por muito que isso custe a alguns “maduros” cá de fora, do PT brasileiro ao PC português, todos federados por essa grande “ideologia” que é o anti-americanismo, a doença infantil de certos setores do mundo ocidental. Mas só numa interpretação abstrusa da constituição isso lhe dá direito formal ao poder. Porém, a teimosia de Maduro acaba por garantir à oposição, a cada dia que passa, a legimidade que a letra da lei lhe recusa.

(Artigo publicado em 30.1.19)

quarta-feira, janeiro 30, 2019

E Borba?


No Brasil, foram já feitas prisões e a companhia tida como responsável pela tragédia de Brumadinho anda pelas portas da amargura. 

E nós, por cá? Há alguém preso pelo acidente de Borba? E “cadê” os nomes dos (ir)responsáveis das pedreiras? Ainda andamos no “rigoroso inquérito”?

Os anos da Tabela

A Tabela Periódica dos Elementos faz 150 anos. Há por todo o mundo grandes comemorações, pelas ruas e escolas (como se vê na imagem). Conheci a tabela quando era ela bem mais nova: tinha apenas 100 anos...

Em 1968, fui estudar Engenharia Eletrotécnica para a universidade do Porto. Uma das cadeiras, logo do 1° ano, era Química Geral, ministrada por Vasco Teixeira, ao tempo dono da Porto Editora. Logo nas primeiras aulas, foi-nos apresentada a Tabela Periódica. O que era? Era uma listagem das largas dezenas de elementos químicos existentes no universo que ia sendo conhecido, num gráfico com os símbolos de duas letras.

Concluí a cadeira com uma nota baixa. Até tarde, nunca tive grande consciência da importância objetiva da tabela, que também era conhecida como de Mendeleev. Hoje percebo bem melhor o sentido daquela ordenação, a importância e simbologia prospetiva do seu arranjo gráfico, revelador de afinidades e prenunciador de descobertas futuras. A tabela é o “eixo” de toda a Química contemporânea.

Um dia de 1967, estava eu no café “Piolho”, com a Tabela em frente e a “sebenta” aberta (estudávamos por uma “Quimica General”, livro espanhol do premiado do Nobel, Linus Pauling, e por uns apontamentos comprados num primeiro andar, em frente da Leitaria Quinta do Paço), quando se sentou à mesa um colega, já mais adiantado no curso. 

Na conversa que se seguiu, veio à baila a Tabela. Na minha inconsciência, expressei a minha perplexidade quanto à real utilidade prática da mesma. Esse colega “esclareceu”: “Também nunca percebi, mas a Tabela tem-me dado um jeitão!”. Fiquei surpreendido, e ele logo explicou: “Para as palavras cruzadas: o Cobalto é CO, a prata é AG, o sódio NA. A Tabela é utilíssima...” 

O velho Mendeleev é capaz de ter morrido sem saber desta utilidade “marginal” da sua famosa tabela...

Maduro & Cia


Artigo hoje publicado no “Jornal de Notícias”. Pode ser lido aqui.

terça-feira, janeiro 29, 2019

Sumoll




Num bar, nos EUA, ele pediu uma Coca-Cola. O barman, respondeu: “Large or small? ”. O inglês não era o forte do nosso homem, que logo respondeu: “Está bem! Pode ser Sumol...”‬ 


(História verdadeira)

segunda-feira, janeiro 28, 2019

Amanhecer


... e dizia aquele meu amigo preguiçoso: “o amanhecer é uma coisa deliciosa, mas a hora a que o colocaram é que é péssima!“

domingo, janeiro 27, 2019

Assim, não vale!


Quando eu era pequeno, em jogos com amigos, a regra era termos “armas iguais”, nenhum de nós dispor de algo que desequilibrasse o jogo, que tornasse a competição “unfair”. Podia ser uma raquete melhor, umas chuteiras ou umas sapatilhas (agora diz-se uns ténis) “à maneira”. Ninguém podia ter uma qualquer vantagem comparativa. Se acaso isso acontecia, para justificarmos a nossa inferioridade, clamávamos: “assim, não vale!”

Há pouco, ao ler este texto do meu amigo José Ferreira Fernandes, lembrei-me da expressão. Anda um cristão a desenhunhar-se para escrevinhar uns textos jeitosos e, numa noite, abre a net e leva na cara com um coisa destas. Dá vontade de “recolher” a tecla, “desafiar” o lápis e passar a dedicarmo-nos à columbofilia ou a ver crescer a relva. Assim, não vale! 

Se eu fosse capaz de escrever um texto assim...

Júlia


Aos quatro anos, o sorriso (já) verde da Júlia

quinta-feira, janeiro 24, 2019

A Bica


Ontem passei e passeei pela Bica. Almocei na Liège, saí pela rua onde ficava a tasca do Martins, em que, nos anos 70, tinha mesa marcada com os meus colegas de emprego, e, sob o sol deste inverno, tomei café (em inesperada calma de gentes) numa agradável esplanada no Alto de Santa Catarina (a “dona” tinha uns olhos lindíssimos), rondei depois o ateliê do Romualdo, onde o Olívio me levou um dia a comprar dois quadros que já nem sei bem onde param, quase em frente ao bar (hoje restaurante a armar ao fino) onde charlava nos seus dias lisboetas com o Eurico Gama, não muito longe da (ex-famosa, quando a Bica se tornou moda) Bicaense (agora fechada?!), onde uma noite, desembarcado de Paris, fui jantar com o Zé Barreto, e também do Toma-Lá-Dá-Cá, em que, há uns tempos, não se comia nada mal, e por aí me veio à memória a figura pausada (sempre e apenas ao final da manhã) do Manuel de Almeida, que ali cruzei algumas vezes, e, nesse mesmo instante, por coincidência fadista, passei junto à casa onde, segundo a placa, iniciou carreira o Fernando Farinha, o “miúdo da Bica”. E saí dali a pé por São Paulo. Nunca fui um “habitué” da área, mas que a Bica tem bastante graça, lá isso tem! Percam/ganhem uma hora por lá, se puderem, e não se arrependerão.

Raças


Na minha infância, colecionei cromos para um álbum de “raças humanas”. Posso garantir que essa criança que então falava abertamente dos “pretos” e dos “índios”, não era diferente da pessoa que sou hoje. No que me toca, o respeito pelos outros, em que peço vaidosamente meças, tem barómetros mais importantes do que o ambiente que faz com que, ao escrever este artigo, me sinta obrigado a “pescar” as palavras, para fugir à severidade de alguns polícias da linguagem.

Mas é sobre outros polícias que eu quero aqui falar. Os graves incidentes – porque foram graves, não nos iludamos – que se passaram nos últimos dias entre as forças policiais e grupos de cidadãos de etnia negra (nem sei se posso dizer isto) demonstram que o problema da convivência inter-étnica está longe de resolvido em Portugal. Desde o fim do ciclo colonial, criaram-se, em especial à volta de Lisboa e em outras periferias, bolsas de pobreza em que predominam cidadãos oriundos de África ou deles descendentes. Fruto da exclusão social e da ineficácia da sua integração, essas pessoas vivem em geografias muito estigmatizadas no imaginário público. Constatar que esses ambientes sociais favorecem o surgimento de criminalidade é apenas uma obviedade. Embora perceber o que potencia o crime não deva ser caminho para desculpá-lo, entenda-se.

A atividade policial nessas zonas torna-se extraordinariamente difícil e assume por vezes formas vistas como hostis por aquelas comunidades. A nossa polícia, embora tenha evoluído muito nos últimos anos em matéria de formação, está ainda longe de poder assegurar uma rigorosa disciplina de atuação em situações de elevado stress. A cultura social de onde muitos dos seus agentes são originários, e em que o seu quotidiano se insere, continua marcada por estereótipos e preconceitos que estimulam o ocasional recurso a formas excessivas de reação, em particular se sujeitos a níveis elevados de provocação física ou verbal. Tentar entender essas condições conjunturais é diferente de fechar os olhos a abusos e à violência desproporcionada.

O que se passou nos últimos dias não pode nem deve ser visto como um mero e isolado incidente. Não somos a sociedade de “brandos costumes” com que gostamos de nos pintar. Enquanto alguns se entretêm com o jogo das palavras tabu, está a nascer por aí um país feito de ódios recalcados. Se os poderes públicos não montarem rapidamente uma ação eficaz, que comporte o binómio diálogo-justiça, a realidade, que também é política, encarregar-se-á do resto.

(Artigo ontem publicado no Jornal de Notícias”)

quarta-feira, janeiro 23, 2019

Casa Liège


Em 1929, há precisamente 90 anos, o meu pai, recém-ingressado como jovem funcionário na Caixa Geral de Depósitos, frequentava com regularidade esta “casa de pasto”, a “Casa Liège”, situada no alto do elevador da Bica. Era uma tasca de galegos, que à época dominavam a restauração lisboeta. Na sua memória atenta, talvez atiçada pela solidão e pela saudade da sua Viana do Castelo, de onde saíra para trabalhar na capital, nesses seus então 19 anos, permaneceu para sempre a imagem de um empregado galego, de seu nome Ramón, que para dentro, para a cozinha, pedia “um péxe!”. Fixei isto, desde sempre.

Já por aqui contei uma história que ele testemunhou, passada na “Liège”, que envolveu gente da vida política, intensa e tensa, que se viveu nesses dias sombrios da Ditadura Militar. Um “duelo” físico, entre Dutra Faria, à época um propagandista do nacional-sindicalista Rolão Preto, e o republicano vila-realense Carvalho Araújo, viria a marcar, na memória do meu pai, a sua história pessoal com a “Casa Liège”, que fora criada em 1926, e que está hoje nas mãos da hospitaleira família Vieira.

Tenho pena de já não poder contar entre nós com o meu amigo José Sarmento de Matos, o olissipógrafo que ontem foi objeto de uma mais do que merecida homenagem no Museu da Cidade, para ele poder opinar sobre se a “Liège” não será, de facto, nos dias de hoje, um dos mais antigos restaurantes de Lisboa.

Nos anos 80, reverenciador da sua memória, levei o meu pai, numa “romagem”, a almoçar à “Liège”. Descreveu-me então a coreografia da luta a que ali tinha assistido, nesse final dos anos 20 do século passado. Já não me lembro o que comemos, mas o objetivo da nossa visita não era, definitivamente, de natureza gastronómica. O momento fez-nos bem a ambos!

Hoje, animado pelo sol, deu-me para passar por lá, para umas pataniscas (altas mas saborosas, talvez com um pouco de óleo a mais, como expliquei à cozinheira, que se teria evitado enxugando com papel absorvente), um vinho da casa bem razoável e uma conta, depois da sobremesa, a rasar uns bem aceitáveis dez euros. A casa, felizmente, não está descaraterizada e, ao que observei, vive entre a clientela tradicional e o turismo, inevitável e desejável, do lugar. Que se conserve assim! 

Só posso desejar à Casa Liège cem anos mais de história e que, se possível, não venha a ser apanhada pela especulação imobiliária. Não sei, contudo, se não será pedir muito...

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Raças


Pode ser lido aqui o artigo que hoje publico no “Jornal de Notícias”.

terça-feira, janeiro 22, 2019

Viana


Hoje, apetece-me pôr aqui esta fotografia melancólica da ponte Eiffel, sobre o rio Lima, que “roubei”, com autorização, a Rui Bravo.

segunda-feira, janeiro 21, 2019

Ana Barata


Creio que foi em 13 de agosto de 1975 que verdadeiramente nos conhecemos, em pleno "verão quente" desse ano tão político, no dia da nossa comum entrada para as Necessidades. A Ana fazia parte do grupo muito restrito de mulheres que, naquela ocasião, puderam aceder, pela primeira vez, à carreira diplomática. Falo de Ana Barata, uma amiga e colega que acabam de me dizer que morreu.

Vi-a, faz pouco tempo, na Versailles. Seria a última vez. Era frequente encontrá-la por lá, a caminho ou saída há pouco da Gulbenkian, ela que era uma conhecida "habituée" de concertos. Tinha a música como um dos seus grandes hóbis. Em 2004, em Viena, quando se preparava para me substituir como embaixadora na OSCE, recordo-me que fomos uma noite juntos à ópera. Imagino que tenha sido bem feliz por lá.

A Ana era uma amiga que fui cruzando pelo mundo, de Madrid a Belgrado, de Londres a Bruxelas, de Zagreb a Viena. Tinha um sorriso permanente, uma atitude sempre positiva, uma gargalhada sã. Muito culta, devo-lhe preciosas indicações bibliográficas. E, muito mais do que isso: devo-lhe uma imensa solidariedade pessoal, o que não é a menor coisa na nossa vida.

Sinto uma grande pena pela sua morte. 

Trump, dois anos depois


O professor Eduardo Paz Ferreira “convocou-nos” hoje, para a Faculdade de Direito, com vista a refletir sobre Trump, dois anós após a sua posse: Luísa Meireles, Irene Pimentel, Carlos Branco, Rui Tavares, Sandra Monteiro e eu próprio. Alguns de nós tinhamos já estado por ali, a refletir sobre este mesmo assunto, precisamente há dois anos e há um ano.

Iniciei a minha intervenção dizendo que a boa notícia era o facto de Trump não ter provocado nenhuma guerra (como há dois anos se temia) e a má notícia o facto de ele ter conseguido induzir uma inédita crise de confiança à escala global (como há dois anos já se temia). 

Num nota não muito pessimista, terminei a minha intervenção afirmando que, apesar de todos os virulentos ataques de Trump ao sistema internacional de base multilateral, e não obstante o forte poder condicionante que a força dos EUA sempre objetiva em todas as circunstâncias, o quadro institucional global, com a ONU no centro, tem sobrevivido. Até quando?

A arte dos inspetores


Ontem, ao ver o grande ator cómico Rowan Atkinson a desempenhar o papel “sério” de Maigret, numa nova série televisiva, não pude deixar de me lembrar do tempo em que Raul Solnado também interpretou um inspetor, na “Balada da Praia dos Cães”. Um grande ator é sempre um grande ator.


Vamos apostar?


Há dias, uma amiga dizia-me que ia acompanhando a atitude dos britânicos face ao Brexit pela consulta, com regularidade, dos “sites” das casas de apostas no Reino Unido. Ao contrário de que acontece por cá, por lá existem apostas a propósito de tudo e de nada, desde estes episódios da vida política às datas dos casamentos dos príncipes. E se pensarmos que cada um arrisca o seu dinheiro naquilo que acha mais plausível, talvez devamos concluir que o modo como os apostadores olham os episódios em que o Brexit se vai sucessivamente declinando não deixa de ser um barómetro interessante sobre o estado daquela opinião pública. 

O caso do divórcio britânico da Europa irá, no futuro, dar origem a muitos livros. E em todos eles, estou certo, se especulará, com alguma razão, sobre como foi possível, a um país com a importância e a experiência histórica do Reino Unido, deixar-se aprisionar num tortuoso processo negocial de saída de uma estrutura institucional a que havia ligado o seu quotidiano por décadas.

É que o Brexit acabou por transformar-se, para o Reino Unido, numa verdadeira ratoeira. O referendo em que a decisão de saída foi tomada, cuja legitimidade democrática é incontestável, resultou de uma campanha muito marcada por temas emocionais, pelo potenciar de alguns medos, que uma análise serena veio a demonstrar serem completamente infundados. A isso se somou a obsessão, que era antiga, de recuperar a “soberania” e de deixar de estar “sob as ordens de Bruxelas” (como se não fossem os ministros britânicos quem também votava a legislação que ali se produz).

Escrevi atrás “ratoeira” com plena intenção. Obrigado a seguir o resultado do referendo, o governo britânico viria a deparar-se com uma missão quase impossível. Quando a poeira assentou, Londres terá percebido a imensa dificuldade daquilo a que não iria poder fugir. Foi assim obrigado a uma complexa negociação, tendo do outro lado da mesa a vontade, institucionalmente federada pela Comissão Europeia, de 27 Estados, surpreendentemente atuando em uníssono e que não lhe facilitaram a vida. Se o Reino Unido queria abandonar a UE, e porque desde logo informou que a alternativa de ficar não existia, então o pacote de condições iria ser severo. E foi.

Qualquer governo britânico, perante um resultado negocial obtido sob uma inescapável pressão, iria ter sempre uma grande dificuldade em garantir o voto maioritário de Westminster. Mas uma primeira-ministra que começara por ser a favor da permanência na UE, para depois fazer uma cambalhota, com uma maioria escassa e politicamente periclitante, era o pior interlocutor para um acordo que implicava grande sentido de compromisso e o “engolir” de alguns sapos.

Na vida profissional, aprendi que nada é pior do que negociar com uma parte marcada pela fraqueza, debilitada na sua capacidade de fazer vingar aquilo a que se comprometeu. Theresa May é isso tudo e, talvez por essa razão, só os videntes nos possam hoje ajudar a pôr o nosso dinheiro nas casas de apostas, acerca do resultado final desta imensa trapalhada em que se transformou o Brexit.

(Artigo publicado no dia 18 de janeiro de 2019)

Chover no molhado

As coisas são o que são e não o que gostaríamos que fossem. Diz-nos a TSF que, em Ferreira do Alentejo, deixou de haver jornais em papel à venda. Quantas ”Ferreiras do Alentejo” não existirão por aí, cada vez mais? Os jornais em papel estão, de facto, a desaparecer? É que se, entre os que eventualmente “sobram”, e sabe-se lá por quanto tempo, ficarem apenas o “Correio da Manhã” e os desportivos, isso diz muito do futuro da imprensa em papel no nosso país. Não vale a pena chover no molhado, mas lá que acho isto muito triste, lá isso acho. E, vale a pena dizer, não é culpa de ninguém, é a vida!

domingo, janeiro 20, 2019

Futebóis


O sofá é um grande inimigo do futebol. Dei conta disto há uma semana, quando me tirei dos meus cuidados e decidi rumar a Alvalade, para ver, ao vivo, o Sporting-Porto. 

Quantas vezes, ao longo dos últimos anos, havia reprimido esse impulso e optei por me instalar no confortável sossego das almofadas caseiras, para assistir (sempre em diferido, na televisão, nunca vejo jogos em direto do Sporting, para não me incomodar) aos jogos do meu clube! Desta vez, empurrado pelo sol de inverno que fazia, lá me decidi a ir para a bancada central, com o bilhete comprado na net duas horas antes do jogo, com uma longa fila de entrada a suportar. 

Estar num estádio não tem nada a ver com ver um jogo pela televisão - desde logo, porque as jogadas não são repetidas, o que nos alimenta até à noite a dúvida sobre se “foi mão” ou se o fora-de-jogo foi mal ou bem marcado. Mas o ambiente, a cor, o barulho, é outra coisa! É verdade que, quando olho para as claques do meu clube, para aquelas faixas com símbolos a roçar o sinistro, me pergunto o que é que eu tenho a ver com aquela gente, aliás a mesma que apoiou por anos um demente palavroso. Mas, depois, olho em volta, para homens e mulheres normais que ali vão de modo saudável, e dou conta que sou dessa “tribo”, a qual, vale a pena admitir, é tão má ou tão boa como as dos rivais, só que, por razões que cada um explicará, é a nossa.

O meu cachecol era verde escuro, sem emblema, mas ergui-o, algo relutante, ao lado dos outros, quando o entusiasmado locutor o pediu. Foi um gesto para me forçar a sentir-me ali entre “os meus”, mas o meu à-vontade era igual ao que sinto quando, nos momentos eleitorais decisivos, decido ir assistir a um comício político dos que pensam como eu. Os franceses têm uma bela expressão que qualifica esse meu conjuntural sentimento nesses momentos massificados: “mal à l’aise”. Sou assim, o que é que se há-de fazer?

Não lhes vou contar o jogo, aliás péssimo, de ambos os lados, que acabou num nulo, quando devia ter acabado com um resultado negativo para cada lado, se a justiça existisse. 

A minha bancada era, homogeneamente, de sportinguistas. Ou os que o não eram estavam calados como ratos. À minha esquerda calhou um mal-disposto desde o apito inicial, que logo qualificou o árbitro de filho de uma senhora de profissão conhecida, para logo generalizar, sem se rir: “Aliás, são todos!” Depois, foi criticando as escolhas em campo, com sugestões de constituição ótima da equipa, que “só não vê a besta do holandês”. A “besta do holandês”, para minha surpresa, não encontrou apoios em praticamente ninguém à volta, até ao final do jogo.

À minha direita, encontrei uma alma gémea. Era tanto que, a certa altura, passou a incomodar-me. Se eu clamava (mesmo não estando acompanhado, não sei estar num estádio sem comentar alto algumas jogadas, razão por que sempre detesto ser convidado para tribunas) que o corredor direito estava desguarnecido, o tipo reiterava e repetia, berrando alto, duas ou três vezes, o que eu tinha dito em voz normal: “Este senhor tem toda a razão, não está ninguém na direita, ó ceguinho!”, o que levava algumas caras a olhar para mim, esperando encontrar ali um discreto “expert”, quando eu apenas tinha sublinhado uma evidência. A meia hora do fim, caí na asneira de dizer: “Parece que estamos a jogar para o empate!” O que eu fui dizer! Foi um ror de vezes que o tipo repetiu: “Este senhor aqui é que tem razão! Estão a jogar para o empate! Calões!”. E “este senhor” sentia-lhe olhado como um guru. Só não saí um pouco mais cedo, até para evitar a molhada final, porque estava no meio da bancada, confesso.

Saí do estádio com “mixed feelings”. Desde logo, desagradado pelo resultado e, bem mais, pela fragilidade endémica da minha equipa. Mas saí satisfeito comigo mesmo, por ter vencido o comodismo. Voltarei em breve? Dependerá do sol, da paciência, da sedução do sofá, do programa alternativo que tiver. Não prometo nada, nem a mim mesmo, o que é sinal de que confio muito pouco em mim.

Se o Sporting estiver à espera de adeptos desta laia para o levar aos triunfos, está bem arranjado...

sábado, janeiro 19, 2019

Pedro Gonçalves


Houve “capitães de abril”, mas também houve “milicianos de abril”. Nesse ano de algumas coisas já muito longínquas que foi 1974, alguns de nós - civis por natureza, militares por acaso - oferecemos com entusiasmo os nossos dias à concretização de um belo sonho. Pelo caminho, cometemos alguns erros, mas fizemos outras coisas que valeram bem a pena. O saldo aí está: a sociedade livre em que vivemos. Ajudámos a mudar o país e, com imenso orgulho, contribuimos, à nossa modesta medida, para a liberdade que hoje todos partilhamos. Nenhum de nós recebeu a “Ordem da Liberdade”, nem tinha de a receber. O país não nos deve nada, nós é que, para sempre, lhe ficamos a dever a oportunidade histórica de ter podido estar num certo lugar, no tempo certo. E isso, ninguém nos tira!

Hoje, sob farta chuva, lá estivemos a despedir-nos de um de nós, de um amigo, parceiro dessa aventura, do Pedro Gonçalves. Há mais de quarenta anos que o seu sorriso, a sua bonomia, a sua graça, aquela figura alta iluminava os regulares almoços do nosso grupo de “militares de abril” - que junta alguns amigos profissionais “do quadro” a quantos, como o Pedro ou como eu, andaram, apenas por uns tempos, ”emprestados” a essa “guerras” da Revolução. Mas, todos, sem exceção, “abrilistas” ferrenhos.

Daqui a dias, quando de novo nos juntarmos, não deixaremos de fazer uma emocionada saudação à memória do Pedro Gonçalves e, tal como sabemos que ele teria gostado, lançaremos um imenso “viva o 25 de abril!”

Deixo uma fotografia incompleta do nosso grupo, com “faltas justificadas” do Carlos Contreiras, do Martins Guerreiro e do Jorge Abegão - que hoje estiveram connosco a despedir-se do Pedro. Na imagem,também não estão os mais “refratários” (já quase “desertores”) membros da tertúlia, o José Maria Brandão de Brito e o Jorge Calheiros, seguramente algures “de serviço” no dia em que ela foi tirada. O Pedro surge na fila da frente tendo no seu ombro a mão do Carlos Figueira, o “secretário-geral” perpétuo destes nossos encontros.

Dê-lhe o arroz!

"O Arroz Português - um Mundo Gastronómico" é o mais recente livro de Fortunato da Câmara, estudioso da gastronomia e magnífico cr...