A representação parlamentar brasileira saiu altamente fragmentada das últimas eleições. Aproveitando essa circunstância, Jair Bolsonaro terá sido aconselhado a constituir o governo de uma forma diferente daquela que tem sido corrente no Brasil, isto é, a não desenhar um executivo pletórico onde pudesse acomodar um conjunto de representantes de partidos que, somados, lhe pudessem garantir maiorias na aprovação de legislação. O seu governo é assim mais pequeno (embora maior do que inicialmente anunciado) e com uma composição atípica. Porque o modelo de suporte parlamentar que visa é diferente.
Vale a pena lembrar que, na tradição parlamentar brasileira, aos partidos do “setor governista” eram atribuídos ministérios que esses mesmos partidos enchiam com o seu pessoal político. Se o partido tinha força quantitativa no Congresso, ocupava todo o espaço dos chamados “escalões” (níveis) de acolhimento de fiéis: eram os ministérios “de portada fechada”. Se se tratava de partidos mais pequenos, a sua ocupação dos cargos ministeriais era mais restringida: tinham de dar espaço, nos “escalões” inferiores, a pessoal indicado por outros partidos. Eram os chamados ministérios “de portada aberta”.
Essa prática era estendida, como modelos adaptados, à plêiade de empresas públicas, com particular interesse por postos de onde saíssem fortes “recursos”. Ficou célebre, em tempos, o modo como um patusco presidente da Câmara de Deputados, Severino Cavalcanti, oriundo do “baixo clero” (deputados menos importantes), eleito inopinadamente por virtude de um dissídio dentro do PT, reclamou para um seu apaniguado um lugar na Petrobrás, que esclareceu que tinha de ser “daqueles de fura-poço”...
Bolsonaro seguiu, ao que se diz por influência dos militares, um outro modelo, que agora se verá se conseguir pôr a funcionar. Assim, além de colocar sete militares (!) em cargos governativos, e mais de 40 em lugares de topo da administração, optou por, na Câmara de Deputados, procurar uma aliança direta com os interesses organizados, em lugar dos partidos. Assim, apoiou-se prioritariamente nas chamadas “bancadas” (frentes de interesses, que atravessam as linhas partidárias) mais representativas de setores conservadores e, em alguns casos, de uma direita muito radical.
É o caso da “bancada evangélica”, onde se acolhem os eleitos oriundos e financiados pelas poderosíssimas igrejas evangélicas (com uma agenda ultra-conservadora para a educação pública e política familiar, recusa do aborto, privilégio das relações com Israel, etc), a “bancada do boi”, com deputados protetores dos interesses de proprietários agrícolas (favoráveis ao desmatamento da Amazónia, à redução dos cuidados ambientais, com grande desprezo pelos interesses e direitos dos indígenas) e a “bancada da bala”, constituída pelos promotores de um alargamento da posse privada de armamento e, simultaneamente, defensores de uma política ultra-securitária, favorável a uma repressão da criminalidade que, em alguns casos, poderia passar as barreiras legais mais elementares e civilizacionais. Há semanas, um relevante bolsonarista reclamava da dificuldade de fazer passar legislação que, em lugar da castração química dos violadores, autorizasse a castração “por facão”...
Na constituição do governo, acolheu, para além do seu novo partido PSL, uma única formação do núcleo tradicional de partidos brasileiros, sem surpresa, o mais à direita - o DEM (ver história na 1ª parte). Raramente na história da democracia brasileira o DEM (que é um partido ausente de representação em muitos Estados) havia conseguido ser tão poderoso: tem hoje três ministros, um dos quais, Onyx Lorenzoni, no decisivo posto de chefe da casa civil. E, como referi no texto anterior, tem agora também a presidência das duas câmaras do Congresso: a Câmara dos Deputados e o Senado. Para um partido que, nesta eleição, viu reduzida fortemente a sua representação parlamentar trata-se de uma vitória indiscutível.
Um filósofo brasileiro ultra-reacionário, Olavo de Carvalho, que vive nos EUA e é uma espécie de guru de alguns setores próximos de Bolsonaro, terá também tido “direito” a indicar os nomes do ministro da Educação (um colombiano naturalizado brasileiro, que tem uma obsessão contra o método de alfabetização de Paulo Freire, um património e um orgulho para muitas gerações brasileiras), do ministro das Relações Exteriores e do consultor internacional do presidente.
O caso do chefe da diplomacia, Ernesto Araújo, é, provavelmente, o maior erro de “casting” de um governo onde eles não parece faltarem (o caso da ministra evangélica, indicada para a pasta da Família, Damares Alves, é uma fonte regular de episódios hilariantes).
Funcionário diplomático de nível baixo, o novo ministro das Relações Externas, um fanático anti-multilateralismo, negacionista das alterações climáticas, com uma cultura de extrema subserviência face aos EUA (que não é muito bem acolhida numa escola militar muito nacionalista e às vezes com um ligeiro tropismo anti-“yankee”), fez já uma série de “gaffes” que, ao que parece, terão levado os militares em torno de Bolsonaro a propor a criação de uma espécie de “conselho estratégico”, para regular as decisões com implicações externas mais relevantes.
Há uma tese a correr segundo o qual este bizarro ministro será utilizado para fazer o “dirty work” de “remoções” de chefes de missão tidos como menos simpáticos para o novo poder, como nomeações de diplomatas mais fiéis e ideologicamente mais “like-minded” com o "bolsonarismo" ideológico. Daqui por uns tempos, ele seria “posto com dono” numa embaixada simpática e a chefia do Itamaraty seria entregue a alguém responsável, com outro estatuto, capacidade e prestígio.
Duas notas para dois ministérios bastante poderosos - cujos titulares, não por acaso, acompanharam Bolsonaro em encontro de Davos, onde a impreparação clamorosa do presidente fez passar uma humilhação ao Brasil, reconhecida internacionamente.
Um superministério económico foi entregue por Bolsonaro a Paulo Guedes, um cultor da “escola de Chicago”, admirador do “choque” económico de Pinochet no Chile, restando ver quão longe conseguirá ir num processo intensivo de privatizações que se propôs desencadear, no que poderá vir a ter algumas reticências da área militar e em setores produtivos internos que vivem, há décadas, refugiados no protecionismo.
O segundo importante super-ministério foi entregue ao juiz-vedeta Sérgio Moro, adorado pelos diabolizadores de Lula, que tem na sua pasta a estranha combinação da justiça com a ordem pública.
Há muito quem pense que pelo sucesso, ou não, destes dois ministros passará muito o destino do governo Bolsonaro.
O segundo importante super-ministério foi entregue ao juiz-vedeta Sérgio Moro, adorado pelos diabolizadores de Lula, que tem na sua pasta a estranha combinação da justiça com a ordem pública.
Há muito quem pense que pelo sucesso, ou não, destes dois ministros passará muito o destino do governo Bolsonaro.
E chegamos, finalmente, aos militares. Aparentemente, a tropa tem um forte “droit de regard” sobre o novo governo. (Devo dizer que nunca pensei que a sua influência pudesse ir tão longe, mas vai). Nos dias de hoje, essas figuras não eleitas, ungidas de uma espécie juízo de “neutralidade” patriótica, quase “sebastiânica”, constituiram-se como um elemento fulcral do novo poder político brasileiro. Estaremos já quase numa espécie de “governo militar”, em modelo de “coabitação” democrática com os civis? Se não estamos lá, não estamos muito longe disso. Na estrutura governamental, dois nomes se impõem: os generais Augusto Heleno e Santos Cruz. O primeiro parece ser o “master mind” do governo, mas o segundo tem também um forte prestígio. Parecem ser eles quem “define a linha” e, embora na reserva, quem promove a articulação com as chefias militares no ativo - que dão sinais de estarem verdadeiramente empenhadas no sucesso deste governo.
Mas há um terceiro nome, que a cada dia que passa tem vindo a ganhar mais evidência, mas também alguma polémica: é o vice-presidente Hamilton Mourão. Um filho de Bolsonaro confessava, há dias, que a escolha de Mourão para a vice-presidência havia sido feita para travar um eventual processo de “impechment” de Bolsonaro. O raciocínio era simples: o general Mourão dera provas de ser um radical desbocado, atribiliário e cáustico, um ultra que trazia as piores memórias do regime militar. Assim, ninguém se atreveria a afastar Bolsonaro porque, se isso acontecesse, seria pior a emenda do que o soneto...
Ora Mourão, empossado que foi do cargo de vice-presidente, decidiu passar de Dr. Jeckyll para Mr. Hyde. O seu discurso suavizou, deu mostras de rara compreensão perante o caso de um deputado de extrema-esquerda que se disse perseguido, teve uma linguagem contemporizadora para com a questão do aborto e, em vários outros dossiês, tem-se revelado, dia após dia, cada vez mais distanciado de certos aspetos mais radicais do discurso do “bolsonarismo”.
Um líder evangélico fez já um video quase a insultar Mourão, o filósofo Olavo de Carvalho, lá dos Estados Unidos, tem vindo a dizer em “tweets” cobras e lagartos do vice-presidente e a “famiglia” de Bolsonaro já deu claras e públicas notas de estar à beira de um ataque de nervos. O próprio presidente, no leito do hospital onde recupera dos efeitos do atentado, ao que parece descontente com as liberdades auto-assumidas pelo seu vice, decidiu avocar, mesmo nesse estado físico, a plenitude dos poderes presidenciais. Tudo isto a fim de evitar que Mourão continue a utilizar a presidência interina para mostrar estatuto, “gravitas” de Estado e um já indisfarçável tropismo para se sugerir como alternativa futura ao presidente. Ah! E, de caminho, o vice-presidente tornou-se a coqueluche dos diplomatas estrangeiros em Brasília, que correm a visitá-lo. Há dias, também recebeu uma delegação palestiniana, à qual quase garantiu que a promessa de Bolsonaro a Netanyahu, de transferir a embaixada brasileira de Tel-Aviv para Jerusalém, afinal pode não ser para levar a serio.
Enfim, neste novo e nóvel governo brasileiro, tudo aponta para que se esteja a “armar uma estrangeirinha” dos demónios. Logo veremos.