quinta-feira, julho 22, 2021

A outra Noruega


Foi há dez anos. Um militante de extrema-direita colocou uma bomba que matou oito pessoas em Oslo e daí partiu para uma ilha próxima, onde jovens do Partido Trabalhista realizavam um encontro. Liquidou então a tiro, um a um, 69 dentre eles. 

Não se confirmou que o assassino estivesse ligado a alguma rede, ao contrário do que ele próprio afirmava. Aparentemente, o ato teve com objetivo manifestar a sua oposição ao que entendia ser a “islamização” crescente da Europa e a cumplicidade dos “marxistas” nessa deriva. Nada muito diferente do que alguma gente pensa por aí, ligada a agendas de ódio, embora sem se dispor a chegar a “vias de facto”.

Vivi três anos na Noruega, a partir de 1979. Vinha de um Portugal ainda em convulsão, depois do período revolucionário. Encontrei uma sociedade que me surpreendeu pela serenidade e civilidade do debate político. Os trabalhistas, partido histórico do poder, estavam já então sob algum desgaste político. Em eleições que ocorreram quando por lá vivia, a direita chegou ao poder.

Na noite do sufrágio, depois de apurados os resultados que levaram os conservadores ao governo, um jornalista português destacado por “O Jornal” para cobrir o evento, Fernando Dacosta, pediu-me que o levasse a ver as manifestações nas ruas, pela mudança ocorrida, que alteravam fortemente o “statu quo”. Quando chegámos ao centro da cidade, sem vivalma, cerca da meia-noite, ambos constatámos que ali se vivia numa “galáxia” política diferente da nossa. Por essa altura, cansado de alguma balbúrdia lusa, cheguei a perguntar-me se aquele civilizado modelo político (tirando o rei do tabuleiro institucional), idêntico ao praticado noutras sociedades nórdicas, não seria, afinal, a democracia ideal. 

É sempre muito redutor e caricatural afirmar, sobre um determinado país que apenas conhecemos conjunturalmente, que as coisas são “assim” ou “assado”. A sociedade calma e tolerante, criada pela social-democracia norueguesa, que a direita ascendente alterou apenas em alguns aspetos menores, era incompatível com o nacionalismo irracional que emergiu no dia 22 de julho de 2011? Não sei responder. À época, parecia ser. A tolerância, a moderação e um sólido património de consenso face a certos valores e alguns adquiridos, parecia fazer parte de um contrato social com larga base de apoio. A riqueza recente do país, contrastante com a memória de tempos de pobreza e de guerra, dava a ideia de colocar a Noruega ao abrigo de derivas totalitárias.

A Noruega, nesse tempo em que por lá andei, era um país acolhedor para refugiados políticos de várias origens e financiava agendas de grande generosidade no mundo em desenvolvimento. Mas, em abono da verdade, também por ali observei alguns sinais de xenofobia e mesmo de racismo. Nunca esqueci o olhos molhados de um caboverdeano, que tinha adquirido nacionalidade norueguesa, a contar-me que um dia, num serviço público, alguém lhe disse, de forma arrogante: “Você mudou de passaporte, mas não mudou de pele”. E era um pouco irritante ouvir, sempre que havia um roubo, ou um distúrbio à ordem social, o comentário rotineiro: “Deve ter sido um estrangeiro”. Nesse tempo, não havia redes sociais ou caixas de comentários onde detetar o outro país. 

Nenhuma sociedade está imune a evoluir negativamente face à diferença, como nós próprios bem sabemos. Nada disso, porém, apontava no sentido de vir ali a ser gerado um monstro como aquele que, naquele mesmo dia de há dez anos, fez 77 vítimas totalmente inocentes, num ato de terrorismo indiscriminado. A História mostra-nos que nunca devemos subestimar a capacidade de uma sociedade gerar, no seu seio, os piores monstros. E que, no dia a dia, devemos manter-nos alerta e pensar que tudo é possível em toda a parte.

Terei mesmo escrito isto?


Há coisas que, embora com um tema muito apelativo, e tendo-me sido atribuídas, não consigo ter “lata” para colocar na minha bibliografia…

Que anos estes!

O médico, à saida: “Venha cá daqui a meia dúzia de meses, lá para janeiro”. Caramba! Ainda não vivemos nada deste 2021 e já estamos a falar de 2022!

Quem me manda a mim…

Balcão da Livraria da Travessa, há minutos. Alguém pede um livro, soletrando o apelido: “B, dois E, V, O, R”. Interrompo: “Desculpe, mas não é com dois E, é com E seguido de A”. Agradecimento e saio. Chego à rua, vou ao Google. Por que não estive calado?

quarta-feira, julho 21, 2021

Os amigos de Aristides


Depois de muitos anos de esquecimento, em especial por parte da diplomacia portuguesa (no tempo da ditadura, mas não só), o nome de Aristides de Sousa Mendes, o cônsul rebelde às instruções desumanas de Salazar, tem vindo a grangear um destaque internacional e nacional merecido. A colocação dos seus restos mortais no Panteão Nacional, no próximo dia 5 de Outubro, consagrá-lo-á, em definitivo, entre nós.

Revelar e manter viva a memória das ações de Sousa Mendes foi uma tarefa em que, ao longo dos anos, se empenhou muita gente, em iniciativas frequentemente esparsas, às vezes competitivas entre si, outras vezes subordinadas a algumas agendas e até mesmo a certos egos. Mas tudo parece ir terminar agora da melhor forma.

Neste contexto, gostava hoje de deixar anotado o nome de três cidadãos portugueses que, no estrangeiro, pude testemunhar - em três postos diplomáticos em que servi - como extremamente empenhados, ao longo de vários anos, em relevar a ação meritória de Sousa Mendes. Constatei que o fizeram, ou fazem, sem o menor interesse, por uma mera questão de justiça que decidiram assumir como sua.

Começo por falar de João Crisóstomo, um português que vive em Nova Iorque. Além de muitas outras iniciativas que fui acompanhando, recordo-me de que, há precisamente 20 anos, ele organizou, com a ajuda do então ICEP, uma exposição que tive o gosto de inaugurar e que, mais tarde, se conseguiu viesse a ser apresentada na Argentina, com o empenhamento do embaixador José Augusto Seabra, então em Buenos Aires.

Deixo também uma palavra à memória do jornalista Paulo Martins, já desaparecido, figura que, no Brasil, desenvolveu um trabalho muito interessante para divulgar Aristides de Sousa Mendes. Foi com ele que montei, no Instituto Camões, em Brasília, uma conferência onde se destacava a ação o antigo cônsul português.

Finalmente, falo de Manuel Vaz Dias. A partir de Bordéus, tem revelado uma extrema dedicação à memória de Aristides de Sousa Mendes. Durante o meu tempo como embaixador em França, pude apreciar e apoiar o seu esforçado labor organizativo, nomeadamente com eventos desenvolvidos em Bordéus e em Paris.

Estou certo que outros cidadãos portugueses, por esse mundo fora, terão sido sensíveis à necessidade de preservar a memória de Aristides de Sousa Mendes. Mas estes três foram aqueles cujo trabalho pude apreciar de perto. Aqui fica esta nota que lhes é devida, “for the record”.

terça-feira, julho 20, 2021

Vera Lagoa

Saiu hoje uma biografia de Vera Lagoa. Estou a “passarinhar” pelas páginas (a leitura fica para férias). 

Descobri, entretanto, uma passagem do livro em que Vera Lagoa é citada a reagir a quantos acusavam a sua coluna ”Bisbilhotices”, no “Diário Popular”, de se arrogar a fazer apreciações críticas sobre peças de teatro, filmes, pintura ou outras dimensões artísticas ou literárias. Lagoa defendia-se dizendo que essa era apenas a sua opinião e que não tinha culpa de que muitos a lessem (e muitos, mesmo muitos, a liam, como é sabido) e, por essa via, ficassem influenciados.

Sem o saber, Vera Lagoa, já então feita ”tudóloga”, antecipava as atuais redes sociais, um mundo em que mesmo quem não perceba rigorosamente nada sobre um assunto tem hoje todo o espaço para ”botar” a sua opinião, lado a lado com quem possa ser o maior especialista naquilo de que está a falar.

“A Arte da Guerra”


Amanhã, quarta-feira, dia 21 de junho, pelas 19 horas, no site do “Jornal Económico”, regressam as conversas semanais com o jornalista António Freitas de Sousa, em “A Arte da Guerra”, um espaço de análise sobre temas internacionais. 

A situação política em Cuba e na África do Sul, bem como as dimensões diplomáticas da singularidade britânica na gestão da pandemia serão os três temas em foco.

segunda-feira, julho 19, 2021

Da fornada de Wilton Park


Foi no primeiro semestre de 1986. Portugal tinha acabado de entrar para as então chamadas Comunidades Europeias. Recém-chegado de Luanda, eu estava colocado na Direção-Geral que, entre nós, se ocupava das questões das ditas.

Um dia, o sub-diretor geral, Paulo Castilho, perguntou-me se eu queria ir fazer um curso sobre assuntos europeus a Wilton Park. Tratava-se de uma instituição dependente do Foreign Office, situada perto de Brighton, onde se têm lugar interessantes seminários residenciais sobre temáticas internacionais. Para essa ocasião, além de diplomatas, académicos e jornalistas britânicos, o governo do Reino Unido convidava um diplomata de cada um dos outros 11 países das Comunidades Europeias.

Mal eu sabia que, nessa semana de “colégio interno”, com debates de manhã à noite (mesmo à noite, porque havia quase sempre um convidado para uma palestra “au coin du feu”), iria conhecer gente, ligada aos assuntos europeus, que fui depois encontrando pela vida fora, alguns dos quais guardei como amigos. 

Foi uma semana de extrema utilidade formativa e uma ocasião muito divertida, no belo ambiente de grupo que se gerou. Ao final da tarde, jogava-se “croquet” no jardim ou sentavamo-nos, a ler ou a conversar, nas várias salas ou na biblioteca da mansão, nesse tempo em que ninguém pensava se havia ou não wifi...

O “pub” dentro de Wilton Park fechava muito cedo. Uma noite, eu e o colega espanhol, convidando alguns outros, em três táxis, organizámos uma romagem a Brighton, para completar a jornada. A direção de Wilton Park não pareceu ter ficado excessivamente agradada com a iniciativa ibérica. Em anos seguintes, no entanto, tive o gosto de regressar algumas vezes à magnífica mansão de Wilton Park, como orador convidado.

Hoje de manhã, aqui pelo Twitter, a mais brilhante das cabeças jurídicas que alguma vez encontrei na área europeia, Jean-Claude Piris, sublinhava o facto de um nosso comum amigo, Tom de Bruijn, ter sido nomeado ministro do Desenvolvimento e do Comércio Externo dos Países Baixos. 

Foi precisamente naquela jornada de Wilton Park, há 35 anos, que eu conheci Tom de Bruijn. Na sua carreira, Tom iria ser um brilhante diplomata, diretor-geral dos Assuntos Europeus e embaixador junto da União Europeia, tendo ainda vasta experiência académica. Era um bom negociador, como testemunhei nos debates para a fixação dos tratados de Amesterdão e de Nice, onde ele foi o “deputy” de Michael Patijn, demonstrando um conhecimento notável da realidade europeia. Só me resta desejar-lhe felicidades nas novas funções.

As redes sociais continuam a ser o meio privilegiado para se saber por onde andam os amigos.

Javier Cercas



Há dias, numa determinada circunstância social, ouvi alguém dizer “e ali o Javier Cercas…” Voltei-me para o escritor e editor Francisco José Viegas, que estava ao meu lado e, em voz baixa, perguntei-lhe: “Qual é o Javier Cercas?” O Francisco, com o sorriso que é o dele, apontou, de forma discreta, para a pessoa que estava precisamente junto de mim…

Acabada a função a que assistíamos, dirigi-me a quem me tinha sido indicado como sendo Javier Cercas e disse-lhe que pretendia cumprimentá-lo e felicitá-lo por livros que dele tinha lido e que me haviam dado um imenso prazer. Fi-lo porque senti, naquele momento, um dever de gratidão pelo gosto que havia tido em ler o “Anatomia de um Instante”, um relato extraordinário e muito esclarecedor sobre a tentativa de golpe militar que ocorreu em Espanha em 23 de fevereiro de 1981, e pelo fascinante “O Impostor”, a descrição de uma personagem real, que ficcionou uma sua biografia heróica, na Espanha pós-Franco.

E estava eu, perante um Javier Cercas naturalmente sorridente e agradado com o que eu lhe dizia no meu “portuñol”, a prestar-lhe uma modesta homenagem, quando a minha mulher se aproximou e eu fiz as apresentações. “Javier Cercas? O autor dos “Os Soldados de Salamina”? Esse livro foi como que um ‘murro no estômago’, para mim”, foi a reação dela, lembrando um pequeno grande livro de Cercas que a tinha impressionado muito.

Javier Cercas agradeceu, com grande simplicidade e simpatia, aquilo que lhe tínhamos dito, talvez curioso por ter ali encontrado, por mero acaso, duas pessoas que, não apenas apreciavam o que escrevia, mas que, vencida a barreira da timidez (falo por mim), tinham-se tirado dos seus cuidados e haviam querido dizer-lhe o bem que pensavam da sua obra. Imagino que, para um escritor, esse reconhecimento seja sempre agradável.

Por mim, devo dizer, fiquei muito satisfeito pela oportunidade. Às vezes, dizemos coisas simpáticas de alguém, seja por dever de ofício, seja por obrigação de circunstância. Algumas dessas vezes, até exageramos no elogio. Desta vez, contudo, num impulso mil por cento genuíno (tão genuíno que até tinha tido eco num casal!), eu tinha tido o gosto de dizer a um escritor, cara a cara, o quanto apreciava o que ele escrevera. Nunca o tinha feito antes a ninguém, noto agora. Com toda a certeza, muita gente já devia ter dito coisas similares a Javier Cercas. Mas há algo que tenho por seguro: ninguém lho disse nunca de uma forma mais sincera.

A “roleta britânica”

Começa hoje a “roleta russa” britânica, suspendendo a maioria das precauções públicas no tocante à pandemia. Estarão certos? Prouvera que sim!

domingo, julho 18, 2021

Nã conhecia!


Dirão: um restaurante tipicamente alentejano, no Alentejo? Isso é novidade? Não é, de facto. Mas este, de que falo aqui, tem duas caraterísticas que, conjugadas, são únicas: é bom (o que também acontece com outros, é verdade) e fui lá almoçar hoje (o que não aconteceu com mais nenhum outro restaurante em todo o mundo).

Afinal, está tudo calmo por aqui...

 


sábado, julho 17, 2021

José Carlos Serras Gago


Era uma voz débil. Da cama do hospital. Quis falar com amigos, pressentindo, com certeza, que seria a última vez que o fazia. Foi há poucos dias.

Fico sempre sem saber o que dizer nestas situações e, invariavelmente, saem-me expressões tontas, pouco ajustadas ao momento. Uma vez mais, foi isso que aconteceu.

Conheci o José Carlos Serras Gago em Paris, há quase meio século. Ele vivia na Casa do Líbano, na Cidade Universitária. 

Foi-me apresentado pelo Joaquim Pais de Brito e, logo nessa noite, num jantar num "bistrot", trocámos notas sobre os muitos amigos que tínhamos, em comum, em Lisboa. E, como era natural nesse pequeno mundo em que nos tinhamos movido, das Avenidas Novas a algum Chiado, tínhamos estado em "cenas" (à época, o termo não se utilizava) comuns: "O quê?! Também estiveste naquela Assembleia Geral da Livrelco? E foste para o Canas, fugido à polícia, no enterro do António Sérgio?"

Depois, em alguns dias de turismo livresco e intelectual, andei com o José Carlos pela universidade de Vincennes, onde me levou a uma aula do Nicos Poulantzas e me foi introduzindo a outras vedetas do esquerdismo em moda. Eu, intimamente, prestes a fardar-me de verde em Mafra, sem lho dizer, invejava-lhe aquela jornada parisiense.

Depois do regresso do José Carlos a Portugal, após Abril, tentámos fazer um livro a duas mãos. O projeto morreu, e guardo a minha quota de culpa nisso, depois de três reuniões numa casa no Alto da Barra. O José Carlos passou a andar pela Sociologia, eu passei a andar por fora.

Um dia, coincidimos no MNE. Ele na OCDE, outra vez em Paris, eu por Lisboa. Encontrávamo-nos a espaços. Lembro-me de que tivemos algumas discussões, em regra pela avaliação diferente que fazíamos de algumas figuras políticas em voga. Mas navegávamos nas mesmas águas.

Isso ficou muito mais patente nos últimos anos, quando uma das mais ruidosas e animadas tertúlias almoçantes lisboetas nos reunia com alguma regularidade. O José Carlos, numa regra sempre confirmada, era o último a chegar à mesa. E trazia sempre um sorriso aberto, uma graça na ponta da língua, uma história divertida - e sempre inteligente e culta - para contar. Às vezes, não poucas, a sua cara traduzia uma saúde frágil, mas ficava a ideia de que o regresso ao grupo o animava, lhe dava um sopro de vida. Um dia, mais pálido, confessou-me: "Vim do hospital para aqui".

Nos longos meses da pandemia, suspensas as refeições do grupo, falámo-nos, de quando em quando, para saber como estávamos a aguentar a chatice coletiva. Nunca o vi esmorecer, mas, sem grandes pormenores, pressenti que as coisas se estavam a agravar, para os lados da saúde dele.

Naquela nossa última conversa, pelo telefone, a uma frase de ânimo, da minha parte, respondeu de uma forma que me deixou entrever o que aí vinha: "Não sei se vou ter força para aguentar isto". Não teve.

Manuel Alberto Valente


Foi uma cerimónia simples, mas com forte significado. 

Manuel Alberto Valente, uma das grandes figuras do mundo editorial português, recebeu na quinta-feira, na embaixada de Espanha em Lisboa, das mãos da respetiva embaixadora, a Comenda da Ordem de Isabel a Católica.

Ao longo da sua longa e excecional carreira editorial, Manuel Alberto Valente teve um papel da maior importância na divulgação da literatura espanhola entre nós. O Estado espanhol quis, com este seu gesto, manifestar-lhe o um reconhecimento e prestar-lhe uma homenagem. E os escritores e intelectuais espanhóis presentes sublinham isso mesmo.

Fomos bastantes - e mais seríamos se a pandemia não nos andasse a rondar os dias e obrigasse a limitar as presenças - os amigos que quiseram associar-se a este momento. Um belo fim de tarde, nos jardins de Palhavã.

Um forte abraço, Manel, extensivo naturalmente à Rosário.

A tristeza de Cuba




A partir dos anos 60 do século passado, os Estados Unidos, que até então tinham vivido felizes e contentes com o regime ditatorial que Fulgencio Baptista mantinha em Cuba, convertida num bordel americano, abespinharam-se quando um grupo de guerrilheiros tomou conta do poder, com amplo apoio popular, naquela que os EUA sempre consideraram ser uma sua zona indisputada de influência. E enfureceram-se bastante mais quando o novo regime caiu nos braços da União Soviética e instalou um modelo de comunismo tropical às portas da Florida.

O desfecho da chamada “crise dos mísseis” provou que as potências que lideravam as duas trincheiras da Guerra Fria implicitamente acabavam por aceitar o conceito de “soberania limitada”, para Estados situados na sua proximidade estratégica, cuja liberdade de afirmação política ficava dependente das condicionantes de segurança determinadas pela potência prevalecente na área. Do outro lado do espelho político, isso já era claro: a Finlândia, por décadas, teve essa experiência e a Ucrânia ou a Geórgia sentem isso na pele, nos dias que correm.

Na atitude americana, seria uma falsa ingenuidade acreditar em pruridos ético-democráticos, como forma de explicar o bloqueio constante imposto ao país de Fidel de Castro. Não só Washington tinha vivido muito confortável com Baptista como, na década que se seguiu ao seu derrube, sob o pretexto da luta anti-comunista, viria a apoiar ou mesmo a encorajar alguns sinistros regimes ditatoriais na região, todos eles, aliás, bem mais sanguinários do que o modelo entretanto criado pelos barbudos saídos da Sierra Maestra.

O bloqueio americano a Cuba, sendo uma afirmação arbitrária e arrogante de poder, com fortes e duradouros efeitos detrimentais na vida da população cubana, viria a convocar uma romântica comoção internacional de apoio a Fidel e aos seus homens, estimulada pelo orgulhoso sentimento de nacionalismo patriótico que, à época, atravessava a população cubana.

À esquerda democrática europeia, embalada num endémico anti-americanismo, que outros cenários estratégicos, como o Vietnam, então favoreciam, nem por um momento terá passado pela cabeça interrogar-se por que razão era necessária uma ditadura de partido único, sem liberdades, para enfrentar a agressão “yankee”. Fidel estava “absolvido” dessa deriva, mesmo antes da História o poder vir a julgar nesse sentido, como ele proclamava.

E de regime libertador dos cubanos, a Cuba de Castro viria ainda a autoerigir-se num "exportador" de revoluções pelo mundo, aliás sem grande sucesso. O "dois, três, muitos Vietnam" da retórica de Che Guevara (o qual, se fosse vivo, talvez não gostasse de ver aquilo em que o Vietnam se transformou) acabou por ser um imenso fracasso.

Pressentido como executor de um "outsourcing" ditado por Moscovo, que durante décadas pagava as faturas de uma economia abafada pelo embargo, o regime de Fidel de Castro, que identificava a menor dissidência interna com uma traição pró-yankee, acabou por se converter num dos atores centrais da Guerra Fria. Mas, curiosamente, embora de forma progressivamente mais penosa, tem conseguido sobreviver-lhe.

Os refugiados cubanos nos EUA transformaram-se, entretanto, num forte lóbi, pugnando por uma política de dureza face ao regime de Havana. As sanções, de que nunca desistiram, acabaram ironicamente por dar a Cuba um motivo constante para rigidificar a sua posição e prolongar o regime ditatorial.

Obama tentou um gesto de descrispação, num tempo de transição endogâmica na liderança cubana, mas Trump fez gorar esse esforço. Joe Biden não tem, por ora, suficiente legitimidade para poder recuar a História ao tempo de Obama.

A aventura política, cada vez mais solitária, de Cuba, a que a pandemia retirou entretando os réditos essenciais da indústria turística, deixou de ter o menor élan ideológico e vive dias muito complexos e, essencialmente, cada vez mais tristes. E a tristeza não rima com os cubanos.

sexta-feira, julho 16, 2021

Presidências rotativas em risco?


Portugal concluiu, no final de junho, mais um tempo de presidência europeia. Tal como sucedeu nas vezes anteriores, e neste caso em condições bem difíceis, fez uma boa prestação, reconhecida por quem conta. O nosso país, que vive há muito no “mainstream” da União, revelou um sentido de compromisso que lhe permitiu assegurar resultados, exercendo, com rigor, a autoridade que lhe advinha da função desempenhada.

Segue-se agora a Eslovénia. Em aberto contraste com a serena leitura europeia que a nossa presidência tinha afirmado, o novo país titular, desde as primeiras horas da sua ação, destacou-se por gestos provocatórios perante a Comissão e o Parlamento Europeu. Quer o primeiro-ministro esloveno quer outros membros do seu executivo deram sinais de buscarem a indução de uma agenda nacionalista, solidária e protetora de tendências desviantes, que são conhecidas em outros Estados-membros. Prouvera que possamos estar enganados e que os meses que aí vêm possam infirmar esta perceção. Caso contrário, a presidência eslovena pode vir a tornar-se um caso exemplar negativo.

Com o que acabo de escrever, quis fazer notar que duas presidências sucessivas, exercidas por dois países diferentes, podem introduzir, no dia-a-dia da União, impulsos de natureza muito diversa, senão mesmo contraditórios.

Não obstante a Eslovénia ter ficado ligada à Alemanha e a Portugal no chamado “trio” das presidências, com a adoção de um programa a três, as primeiras duas semanas de presidência eslovena mostraram que estamos perante estilos algo contrastantes. Dir-se-á que as coisas são o que são, que temos de viver com a imensa diversidade introduzida na União pelos últimos alargamentos. Mas terá de ser mesmo assim?

A rotação das presidências foi um método criado para dar a cada Estado-membro, em condições formais de igualdade, a possibilidade de liderar um semestre da vida da União. Assumir essa tarefa era também uma forma de ligar o país e a sua administração às respetivas responsabilidades europeias.

A busca de uma maior eficácia, atenuando o impacto negativo provocado pela debilidade institucional de alguns Estados, levou à introdução, no Tratado de Lisboa, de mecanismos de maior centralização do funcionamento da vida comunitária. A criação do lugar de presidente do Conselho Europeu representou um claro passo nesse sentido e, do mesmo modo, no domínio da ação externa, em aberto detrimento do papel dos ministros dos Negócios Estrangeiros, a União consagrou o poder coordenador de Bruxelas. Não obstante, uma parte significativa da ação das presidências continuou a assentar nos Estados.

Aqui chegado, pergunto-me: a sucederem-se casos como o que esta presidência eslovena ilustra, será que não poderá começar a fazer o seu caminho a ideia de diluir ainda mais o papel das presidências rotativas, em detrimento dos Estados membros, como forma de evitar o surgimento oportunista de agendas nacionais que, por um período de meio ano, podem atrasar ou mesmo arruinar os esforços da generalidade da União?

quinta-feira, julho 15, 2021

Das cercanias de um TWG preto Earl Grey com bergamota e centáurea

Gonçalo Reis

Gonçalo Reis lançou o livro “Serviço Público”, memória do seu tempo na administração da RTP. Ausente de Lisboa, não pude estar na ocasião, como gostaria.

Foi uma experiência única, aquela que Gonçalo Reis teve na RTP. Tendo já feito parte, como vogal, de uma anterior administração, então nomeada pelo governo, ele viria a assumir, desde 2015 e até há semanas, a chefia dessa mesma administração, por um período de seis anos, em dois mandatos sucessivos e completos.

Rompendo com o modelo de designação pelo poder político, que esteve em vigor durante décadas, a escolha de Gonçalo Reis para essas novas funções, foi feita, pela primeira vez, em 2015, pelo Conselho Geral Independente (CGI), órgão de composição diversa e plural, entretanto instituído para tutelar a empresa e ao qual compete designar ou exonerar as administrações, bem como definir as orientações gerais pelas quais elas devem reger a sua ação. Tendo feito parte do CGI durante os últimos três anos, lugar do qual entretanto saí, tive o ensejo de votar, em 2018, pela recondução de Gonçalo Reis para o seu segundo mandato.

Durante estes últimos anos, pude acompanhar - não diria dia a dia, mas com grande regularidade e bastante atenção - a ação da administração da RTP. Nessa tarefa, pude constatar ter ela levado a cabo uma gestão de grande rigor, com resultados de equilíbrio financeiro que falam por si. Esta é uma das imagens de marca que ficam coladas à passagem de Gonçalo Reis pela empresa.

A RTP é uma empresa cuja estrutura e cultura funcional parecem, desde há muito, condenadas a potenciar conflitos e a adubar tensões, parte dos quais sempre vi como algo artificiais, algumas vezes fruto de agendas políticas, outras vezes de mero despeito e mediocridade profissional, outras ainda da tentativa deliberada de levar a cabo uma ação destrutiva do trabalho da empresa, como é patente naquilo que certa comunicação social cuida em fazer, com quase diária e matutina regularidade. Deixo, porém, essa análise para um tempo em que me apeteça vir a fazê-la. 

Testemunhei o modo empenhado como Gonçalo Reis e a sua equipa enfrentaram os diversos escolhos que se colocaram ao seu trabalho, tendo criado uma grande admiração pela infinita paciência com que sempre geriu a procura das soluções para os vários ciclos de problemas que foram emergindo, para o que, aliás, sempre teve o concurso positivo e a lealdade do CGI, como, estou certo, o seu livro confirmará.

A minha limitada experiência na RTP foi de uma natureza e de uma dimensão que nada têm a ver com as responsabilidades de Gonçalo Reis. Mas julgo ter sido suficiente para me aperceber das dificuldades essenciais que marcaram o seu trabalho. Os extratos conhecidos do livro que Gonçalo Reis agora publicou abrem-me o “apetite” para conhecer ainda melhor aquilo que ele decantou dessa sua experiência. 

quarta-feira, julho 14, 2021

Bloco

É muito curioso que as posições do Bloco de Esquerda e dos seus deputados sejam incensadas até à exaustão, por quem à direita se lhe opõe, quando se trata de questões da banca & trapalhadas financeiras, embora, em tudo o resto, o partido seja tratado como irresponsável e leviano. Só são “bons” só quando dá jeito, é isso?

Brasil

No passado, Lula e o PT perderam apoio pela sua constante desculpabilização do autoritarismo de Chávez e Maduro. Neste tempo de tentativa de recuperação da sua credibilidade, Lula cometerá um erro se caucionar uma reação violenta do regime cubano às reivindicações democráticas.

Africa do Sul

O fim do apartheid e a liderança de Mandela geraram uma imensa esperança. Por anos, o mundo olhou mesmo a África do Sul como um fator para a estabilização regional. O realidade veio a provar que, sem atenuação das desigualdades, o potencial para a eclosão da tragédia permanecerá.

terça-feira, julho 13, 2021

Ainda Cuba


Alguns amigos de esquerda continuam a não entender que eu não aceite que a culpa de Cuba viver sob ditadura seja do bloqueio americano ao regime. O bloqueio é uma violência arbitrária e criminosa. Mas, para lhe fazer frente, só com um regime de partido único, sem liberdades?

Paulo Tarso


Quando cheguei a Brasília, em 2005, uma das primeiras pessoas que fiz questão de visitar foi o embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima.

Recordava-me de que, nos anos 90, quando ambos tínhamos coincidido em Londres, ele tinha sido de uma grande generosidade para com o então jovem conselheiro da embaixada de Portugal que eu era. O Paulo e a Lúcia acolheram-nos, por mais de uma vez, na residência brasileira em Londres, com imensa simpatia. Ambos tinham, à época, uma projeção muito rara no seio da vida político-social britânica, sendo Lúcia uma conhecida amiga íntima da princesa Diana.

Paulo Tarso foi um dos mais proeminentes diplomatas brasileiros. Membro do “staff” de Juscelino Kubitschek quando jovem, ocupou o posto de embaixador em capitais como Londres, Washington e Roma, entre outras, bem como secretário-geral do Itamaraty. Foi sempre tido como um brilhante operador diplomático. A sua mulher, Lúcia, que teve cargos políticos de governo de Brasília, viria a ser uma peça indispensável para o sucesso profissional do seu marido.

Atingido, nos anos finais da sua carreira, por uma doença que muito o limitou fisicamente, Paulo Tarso soube, com imensa coragem, enfrentar o infortúnio e, retirado das lides diplomáticas, viria a criar um gabinete de consultoria de investimentos. 

Falou-me um dia da vida que criara após a reforma, aconselhando-me a pensar na minha (eu estava então ainda a uma década de distância), recomendando que me mantivesse sempre atualizado face às grandes questões globais, que as fosse acompanhando, com leitura e boas fontes abertas de informação: “O conselho independente de um diplomata experiente, que tenha decantado bem aquilo por que passou ao longo da sua carreira, pode ser extremamente interessante para o setor privado, que tem necessidade de pensar a prazo e de ter quem o ajude a olhar o futuro. É o que eu faço aqui, com algum sucesso”. Nunca esqueci esta lição e segui exatamente o que me disse. Não me arrependi.

Durante os quatro anos que passámos em Brasília, vimos com muita frequência o casal Flecha de Lima, com mantinhamos uma relação de grande proximidade, não obstante a nossa diferença de idades, assim prolongando a amizade criada em Londres.

Lúcia morreu em 2017. Tenho agora a notícia de que Paulo Tarso morreu ontem, aos 88 anos. Deixo um abraço de grande pesar a toda a sua Família.

segunda-feira, julho 12, 2021

“Então é Portugal, hem?… Cheira bem!”*


O Luís Santos Ferro, se fosse vivo, faria hoje 82 anos. Esta tarde, a Fundação Eça de Queiroz, em Tormes, acolheu o espólio queirosiano do Luís, oferecido pela sua família. Eu deveria ter estado presente na ocasião, coisa que acabou por não acontecer, por impossibilidade de última hora, que não vem ao caso.

Imagino que a evocação do Luís tenha sido sentida, mas acho que deve ter sido igualmente divertida, como sei que ele gostaria, como iria bem com o seu sorriso e o seu humor. 

Posso imaginar que terá havido umas palavras do Jacinto, que o Zé Fernandes tenha trazido a tia Vicência, lá de Guiães, de certeza que o Pimenta subiu da estação, que o Silvério deixou os compromissos em Castelo de Vide para se juntar ao ato e que o Melchior (que, ao que consta, anda de candeias às avessas com o Grilo) tinha a quinta arrumada a preceito. Disseram-me (mas “vendo-a” como me a venderam) que, de Lisboa, veio o chefe das Cortes e que até um poeta, que em horas ocupadas exerceu ofício como diplomata de mérito, se juntou à ocasião.

Desta vez, dizem-me, não terão sido servidas favas. Será que, nos almoços antes do evento, terá sido servido bazulaque? O que é o bazulaque? Não me digam que não sabem?  

Tenho pena, repito, de ter estado ausente desta evocação do Luís Santos Ferro. É melhor assim: a mim também não me apetecia dizer-lhe adeus.

* (A expressão é do Jacinto, quando o comboio que o trazia de Paris chegou a Portugal).

Cuba, aqui neste blogue


Extrato de dois textos sobre Cuba aqui publicados:

(2014)

“Castro e os seus guerrilheiros, saídos da Sierra Maestra depois de uma saga político-militar que entusiasmou o romantismo de uma certa esquerda à escala global, cometeram o grave erro de reagir às recorrentes provocações americanas através de uma crescente dependência da União Soviética. A aventura da colocação de mísseis russos na ilha, em 1962, levou a um embargo americano que ainda hoje se mantém. 

De regime libertador, a Cuba de Castro transformou-se num "exportador" de revoluções pelo mundo, aliás sem grande sucesso. Os "dois, três, muitos Vietnam" da retórica de Che Guevara (que, se fosse vivo, teria visto naquilo que o Vietnam se transformou) acabou por ser um imenso fracasso. Pressentido como executor de um "ousourcing" ditado por Moscovo, que durante décadas pagou as faturas de uma economia abafada pelo embargo, o regime de Fidel de Castro, que identificava a menor dissidência interna com uma traição pró-yankee, acabou por se converter num dos atores centrais da Guerra Fria.

No plano interno, Cuba é uma ditadura intolerante e repressiva. Jogou sempre com o sentimento de anti-americanismo como fator atenuador da leitura que o mundo podia fazer das condições em que o seu povo vive, passando as culpas do regime para as consequências do embargo - de facto, uma medida datada e sem sentido, unilateralmente imposta por Washington e que, bem vistas as coisas, acabou por facilitar fortemente o prolongamento do regime castrista. Cuba é hoje uma sociedade triste, vivendo numa penúria imensamente injusta para a felicidade possível das gerações que sofreram a sua tragédia geopolítica.”


***

(2016)

“Raramente tive uma experiência tão desagradável, como turista, como quando há uma década, sem guias nem mentores, passeei pela pobreza das ruas de Havana, então uma cidade de gente sem esperança, a que nem a graça que alguns acham à decadência dava alguma franca alegria.

Fidel libertou os cubanos do bordel dos Estados Unidos em que Baptista convertera o país, mas prendeu-os num pesadelo de vida que condenou gerações à penúria. E não me venham com a conversa do “orgulho” nacional, como se isso pudesse alguma vez substituir a possibilidade de dizer, alto-e-bom-som, podendo também escrevê-lo fora do “Granma”, o que se pensa, bem ou mal, dos dirigentes, que se querem eleitos e contrastantes.

A vida ensinou-me a deixar de ser complacente com a crueldade dos sonhos radicais, do “socialismo real” do Leste europeu a todos os modelos que relativizam o interesse em preservar as liberdades “burguesas”, reféns de amanhãs que o tempo veio o provar ser, infelizmente, muito similares o outros “ontens” que quero esquecer.

Para mim, guardarei para sempre o olhar triste daquela pintora cubana, uma mulher jovem, num subúrbio de Havana, que me contava ter vendido quadros seus em exposições nos Estados Unidos, e a quem, inadvertidamente, perguntei se tinha gostado da viagem: “Eu? Eu não fui! Eu não posso sair daqui. Eu nunca vou sair daqui...”. Aquele desencantado e nem sequer revoltado “nunca” marcou-me para sempre.”

Wembley

 


Este post é enganador. Conta uma história passada em Wembley, onde, há pouco mais de uma hora, a Itália derrotou a Inglaterra, para o Europeu, “at home”. Ora, na realidade ela passa-se no estádio antigo, ali ao lado. Por isso, quem quiser “sair” aqui, faça favor.

Vamos à história.

Claro que não era uma ordem, até porque tinha vindo de Lisboa por via indireta, cordial e amigável. Mas o recado segundo o qual aquela figura do Estado português "ficaria muito grata" se a nossa embaixada em Londres, que eu chefiava interinamente, pudesse arranjar dois lugares, destinados a um seu familiar, que estudava em Inglaterra, e a um professor deste, para assistirem a uma final da Taça de Inglaterra em Wembley, configurava aquele género de pressão a que é difícil dizer que não. Vamos ser claros: era uma inócua cunha.

Verdade seja que não se pediam “borlas”, mas bilhetes pagos. O problema é que toda a gente sabia que os bilhetes para o jogo estavam esgotados, há muito. Eu sabia bem disso, porque conseguira comprar um para mim, bastante caro, já meses.

Na embaixada, descobriu-se então, para minha imensa surpresa, que alguém tinha um “conhecimento” na federação britânica. Essa pessoa, por especial favor, fez um contacto e veio a conseguir dois acessos. A resposta da federação acabou, aliás, por ser melhor do que se poderia supor: atendendo a que era um pedido da embaixada, ofereciam dois convites, gratuitos, para uma zona especial, tipo camarote, onde ficavam os convidados da federação.

Porque era uma área do estádio alheia às claques, relativamente "neutral", a federação apenas pedia alguma parcimónia na exibição de bandeiras ou símbolos dos dois clubes em liça. Esses ficavam para as duas imensas claques, uma londrina, do Arsenal, outra do Sheffield Wednesday, que iam encher as respetivas zonas do estádio. E, já agora, para fazer amigável inveja, gostava que soubessem que há poucos ambientes desportivos mais bonitos do que um Wembley ululante, cheio de cânticos, numa “cup final”. E eu, na vida, tive o privilégio de assistir a três!

Era na cidade de Sheffield que o tal familiar do nosso político estudava na universidade. Estava assim explicado que quisesse fazer um gesto e trazer o seu professor para ver o seu clube jogar esse prélio decisivo. E, com certeza, para mostrar que era influente, capaz de mover mundos e fundos para arranjar duas entradas, ainda por cima saiam de borla, para uma final da Taça de Inglaterra.

Lembro-me de que o contacto da federação britânica havia dado uma indicação sobre a necessidade de, naquela zona reservada do estádio, serem respeitadas as limitações “coreográficas”, em termos de sectarismo clubista: bandeiras e coisas assim. Foi dito isso para o felizardo de Sheffield e ficou combinado deixar os dois convites num determinado local de Londres.

No dia do jogo, lá fui, como habitualmente de metro, para Wembley. Como o meu bilhete era relativamente central, fora das claques, podia avistar, com facilidade, o tal camarotes. E foi então que vi, no meio de um largo grupo de pessoas que não ostentavam nem bandeiras nem cachecóis: uma pessoa mais velha e um miúdo, jovem adolescente, ambos vestidos, da cabeça aos pés, de evidentes fãs do Sheffield Wednesday. Destoavam vivamente, pela cor e pela agitação que fui observando, dos restantes convidados. Eu não conhecia o familiar do político, mas não me pareceu ser nenhum dos dois. Que coisa estranha!

Esse familiar da personalidade, educado, teve a anabilidade de telefonar, no dia seguinte, a agradecer, dizendo que tinha ficado "adoentado" e que, por essa razão, tinha dado o seu bilhete ao filho do professor. Pois... Estava-se mesmo a ver, não era?

Porque a sorte protege os audazes mas não necessariamente os espertalhaços, o Sheffield Wednesday perdeu contra o Arsenal e os dois "convidados" terão ficado com uma cara similiar à dos seus correlegionários da foto (mas não me lembro se algum deles usava o elegante capacete da "farda"). A minha satisfação era ainda maior porque o meu clube londrino era o Arsenal, por razões que a história explica e que belo livro de Nick Hornby, “Fever Pitch”, ajuda a compreender.

domingo, julho 11, 2021

Vasco


Vasco de Castro, que, como desenhador, assinava Vasco, era da minha terra, de Vila Real. Tal como aconteceu ao açoreano Medeiros Ferreira, que nasceu casualmente na Madeira, também Vasco veio à vida em Ferreira do Zêzere, porque nenhuma biografia consegue controlar as incidências das viagens de mães grávidas. 

Esteve por Vila Real da infância até ir para a universidade. Em Coimbra, passou dias academicamente menos áureos mas, ao que se contava, bem divertidos. Dali saiu para gozar as belas noites de uma certa Lisboa boémia. Entre 1961 a 1974, viveu a vida de Paris. O Vasco não se perdia!

Tudo o que se possa dizer sobre o traço de Vasco fica aquém do que cada um retira quando olha os seus desenhos. Lá fora, o “Le Monde”, o “Le Figaro” e o “France-Observateur” (antecessor do “Nouvel”, para quem não saiba) acolheram a sua genialidade. Entre nós, o “Público” mostrou isso durante bastantes anos, como já o “Diário de Notícias” o tinha feito, por algum tempo. Politicamente, Vasco andou pela esquerda da esquerda, tendo estado na origem do jornal “Página Um”. Há muito que tinha deixado de publicar.
Vasco de Castro morreu hoje, aos 85 anos.

sábado, julho 10, 2021

O paralelo 38, Britney Spears e um embaixador bem disposto


Em 2003, quando representava Portugal na OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa), em Viena, fui convidado pelo governo coreano para pronunciar, em Seul, uma conferência sobre um tema que pode parecer algo etéreo para os leitores deste blogue: "OSCE's confidence and security bulding measures".

Essa tinha sido uma especialidade que eu entretanto desenvolvera na minha involuntária "osceosidade" vienense. A organização, sem que daí decorresse o menor encargo para o Estado português (importante!), ofereceu-se para custear a minha deslocação como palestrante a vários seminários internacionais sobre questões de defesa e segurança - da Polónia ao Casaquistão, do Egito ao Japão, da Itália à Jordânia.

Tratava-se de transmitir a experiência ganha pela OSCE, em matéria de diálogos políticos "geradores de confiança", em situações pós-conflito (ou, mais raramente, de prevenção de conflitos), com vista a operações de "learning lessons", neste caso para tentar aplicar essa experiência no quadro da tensão "sul-norte", que prevalece nas Coreias desde o confito dos anos 50. 

Estava-se então no tempo de alguma esperança nos esforços feitos no âmbito dos "six-party talks" (conversações entre as duas Coreias, com inclusão da China, da Rússia, do Japão e dos EUA), para tratar o sensível problema nuclear norte-coreano.

O debate em Seul havia sido extremamente interessante e instrutivo, em especial para melhor perceber a peculiar atitude chinesa (e também russa) no processo, bem como para definir as distâncias estratégicas, muitas vezes pouco percebidas mas bem presentes, entre a Coreia do Sul e os Estados Unidos. Estas diferenças ficaram mais claras ao tempo do envolvimento de Trump na questão coreana.

À parte o seminário, houve a possibilidade de uma deslocação, entre o turístico e o político, ao histórico "paralelo 38", a linha divisória do trágico conflito entre as duas Coreias. Sendo a fronteira mais tensa do mundo, há em seu torno uma espécie de grande "teatro", alimentado pelos sul-coreanos e pelas tropas norte-americanas presentes no local, com óbvia cumplicidade dos coreanos do norte. 

Visitaram-se túneis e postos de observação, de onde se podia ver uma gigantesca bandeira norte-coreana e, através de binóculos, se detetavam, como figuras raras, militares das tropas do outro lado. Foi-se até à sala das históricas conversações norte-sul, bem como ao limite de uma linha de comboio interrompida há muitos anos, pela Coreia do Norte, tendo-nos sido mostrada uma moderna e completamente deserta estação de onde, como nos foi dito, se um dia houver paz e tiver acabado o bloqueio da fronteira, um comboio poderá partir numa longa viagem euro-asiática que irá acabar em... Paris, tido num grande mapa como o extremo ferroviário ocidental da Europa. A uma observação minha, sobre a razão pela qual essa linha mirífica não prosseguiria até Lisboa, desencadeei nos meus interlocutores sul-coreanos um imediato e preocupado nervosismo, com imediata promessa (!) de irem pensar na racionalidade do mapa. A extrema lógica asiática tem destas coisas...

Mas, no local, há outras "lógicas", tão ou mais complexas do que esta. Um dos pontos da agenda incluía um "briefing", feito pelas tropas americanas aí estacionadas, sobre a situação na linha de fronteira. 

Convém que se diga que, para a Coreia do Norte, mantém-se formalmente em guerra com os EUA. O oficial americano parecia uma caricatura cinematográfica, com um típico corte de cabelo paralelipipédico, que lhe dava um ar involuntariamente divertido. O seu discurso estava recheado de "clichés" da vulgata da "Guerra Fria" revisitada (ao tempo da minha visita preponderava em Washington o senhor George W. Bush), que divertiram imenso o pequeno auditório, recheado de especialistas internacionais que tinham das coisas do mundo alguma sofisticação. 

Recordo-me de nos ter sido explicado, com detalhes biográficos e curiosidades pormenorizadas, muito orientadas para um auditório turístico, quem era o lider norte-coreano Kim Jong-Il, pai do atual, Kim Jong-Un -  que nisto de nomes os coreanos do norte são pouco criativos. As restantes informações relevavam de uma espécie de versão para atrasados mentais da série editorial "The complete Idiot's guide", ideologicamente revista pelas Seleções do Reader's Digest nos anos 50. 

A certa altura da palestra, o militar contou que, todas as manhãs, grandes altifalantes emitiam, em direção ao sul, hinos e canções patrióticas norte-coreanas, que faziam já parte da rotina dos dias no local. Porque o "briefing" estava a ser uma maçada de que todos pareciam querer ver-se livres, quando, no fim da preleção, nos interrogou sobre "any questions?", registou-se um silêncio esmagador e de alívio. 

Foi então que decidi, para espairecer o ambiente, "quebrar a loiça" e, com uma falsa ingenuidade, perguntei: "Os hinos e as canções patrióticas são, como nos disse, a regra dessas emissões matinais. Gostava que me respondesse a uma questão: qual seria a sua reação se, numa dessas manhãs, em lugar desse tipo de músicas, os altifalantes norte-coreanos transmitissem uma canção de Britney Spears?". 

O homem bloqueou e olhou-me siderado. Acrescentei: "Não deixaria de ser significativo, se isso acontecesse! Que tipo de conclusões políticas retiraria do facto? Que tinha havido um golpe de Estado na Coreia do Norte?". O militar americano ficou muito sério, fixou-me de uma forma pouco simpática, pousou a varinha com que apontara o "power-point" e disse: "The briefing is over". Uma onda de gargalhadas, mas apenas dos visitantes estrangeiros, ecoou na sala. Decididamente, o humor não é a atitude mais apreciada nas zonas tensas de conflito.

Lembrei-me disto há pouco, ao ler um artigo de jornal, triste e patético ao mesmo tempo, sobre a vida trágica de Britney Spears, uma cantora que mobilizou multidões e que hoje, ainda jovem e perturbada, arrasta pelos tribunais uma vida e uma carreira inexoravelmente decadente.

Quando revelei que estava a pensar escrever sobre isto, alguém, ao meu lado, sugeriu: “Devias falar do outro Paralelo 38!”. E fez-se-me luz! Claro que sim! Boa lembrança é recordar o belo lugar de peixe, no centro de Loulé, o “Paralelo 38”, onde o Abilinho, nos idos de 80, não nos deixava sair ser provar uma aguardente de medronho, que nos trazia pelas mesas. Mas isso são outras guerras! 

Geografias

Ao reler, pela enésima vez, “A Cidade e as Serras”, saltou-me esta descrição, que espero não esteja ainda “cancelada” pelo politicamente correto: “Uma formidável moça, de enormes peitos que lhe tremiam dentro das ramagens do lenço cruzado, ainda suada e esbraseada do calor da lareira, entrou esmagando o soalho, com uma terrina a fumegar”.

Por um segundo, pensei: e se o Jacinto, em lugar de ir comer as favas a Tormes, tivesse ficado pela suburbana Porcalhota?

sexta-feira, julho 09, 2021

Liberdade

Um amigo, pelo telefone, dizia-me, há pouco: "Neste tempo em que vejo muito mais gente de direita, como sabes que eu sou, do que de esquerda, a clamar pela liberdade e a ter uma atitude rebelde face às orientações das autoridades perante a pandemia, sinto-me mais próximo de vocês, dos de esquerda, que parece viverem relativamente bem com estas restrições".

Não comentei, mas dei comigo a pensar: na contestação que se observa às medidas restritivas em que vivemos, alguma coisa (repito, apenas alguma coisa) se deverá com certeza ao facto de muitas pessoas detestarem o governo que o país atualmente tem. Sentirem que estão a "obedecer" a um executivo de que não gostam deve exacerbar nelas alguns genes libertários. Outras, na minha opinião, agem apenas por egoísmo e por falta de espírito cívico. Mas admito que isto seja "sociologia" de pacotilha. Não quero fazer doutrina.

E dei comigo a pensar: como é que eu estaria hoje, em termos de atitude, se, em S. Bento, estivesse, por exemplo, uma qualquer versão do "passismo", a fazer basicamente o que este governo faz? Estaria aos berros, a invocar as liberdades de Abril, denunciando o ambiente de "asfixia" dos nossos direitos fundamentais?

E concluí que não. O "respeito" que tenho pela vida (será medo?) sobrepor-se-ia a toda a pulsão contra essas autoridades, por muito que delas não gostasse e que algumas das suas medidas me irritassem. E, enfim, acho que estaria exatamente onde aquele meu amigo - sendo ele bem "de direitas" - hoje está.

"Les beaux esprits se rencontrent", dizia Voltaire. Os receios também.

quinta-feira, julho 08, 2021

Brasil

As Forças Armadas brasileiras prometem reação “mais dura” caso a Comissão Parlamentar de Inquérito, criada para analisar os gastos na pandemia, volte a citar corrupção entre militares, segundo um comunicado emitido.

Pelo poder legislativo brasileiro e pela sua capacidade de não se deixar intimidar pela ameaças castrenses passa uma boa parte da saúde da democracia brasileira. 

No Brasil, como uma vez mais se comprova, o diabo veste farda.

quarta-feira, julho 07, 2021

RTP


Em 2 de junho passado, publiquei aqui isto:

"Completei agora mais de três anos ao serviço do Conselho Geral Independente (CGI) da RTP. 

Foi um período muito intenso em que, com algum sacrifício da minha vida pessoal e profissional, e sem qualquer contrapartida financeira, procurei contribuir, de melhor forma que pude e soube, para a ação de um órgão da RTP que tem trabalhado, de forma discreta mas muito eficaz, pela estabilidade e progressiva melhoria da empresa. 

Há já um ano, eu havia anunciado aos meus colegas a minha intenção de sair das funções que ocupava no CGI, em virtude do tempo que isso retirava a outros compromissos e obrigações que entretanto tinha criado. 

Acedi, contudo, a ficar até ao termo da escolha da nova administração e da avaliação do novo contrato de concessão, tarefas que agora foram concluídas. Sinto-me satisfeito por ter podido dar o meu contributo ao CGI para completar esses objetivos.

A RTP faz parte da vida de todos os portugueses e, por isso, também da minha. Conhecê-la melhor e ter tido ocasião de servi-la foi um privilégio que não esquecerei."

Foi agora anunciado que serei substituído pela escritora Ana Margarida Carvalho, a quem desejo as maiores felicidades no exercício que agora vai iniciar.

O Butão em falta


Quem consultar, no site de MNE, a lista dos países com os quais Portugal tem relações diplomáticas verificará que são 194. Ora a ONU tem apenas 193 países membros (Portugal e mais 192). 

Se olharmos com atenção essa lista do MNE, constataremos, contudo, que ela inclui o Kosovo, Estado que não foi ainda admitido nas Nações Unidas, além da Palestina e da Santa Sé, neste caso Estados que não são membros plenos da ONU, mas apenas países observadores. 

Assim, “descontando” esses três Estados, verifica-se que Portugal tem relações diplomáticas com 191 dos 192 países que são membros da ONU, além de Portugal.

Quem falta, então? O Butão. O Butão? Não temos relações, com embaixador acreditado, junto do Butão? Não, não temos.

Há 20 anos, em 2001, quando fui representar Portugal junto das Nações Unidas, em Nova Iorque, já sabia disto. E, convencido de que não havia “impossíveis”, apressei-me a ir falar com o meu colega do Butão, que recordo se chamava Om, perguntando-lhe o que devíamos fazer para colmatar essa imperdoável falta no nosso quadro de relações diplomáticas.

Expliquei-lhe que sendo Portugal um Estado com uma vocação de bom relacionamento universal, sem conflitos com ninguém, com uma excecional abertura à generalidade dos países, era muito estranho que o Reino do Butão ainda não tivesse completado o nosso “pleno” de relações externas. Imagino que deva ter argumentado que o Butão dispunha, entre nós, de “uma grande simpatia”, coisa que, não sendo necessariamente falso, também não era uma “verdade como punhos”, como antes se costumava dizer.

O meu colega butanês, um homem cordial e muito agradável, com cujo apoio pude contar em mais do que uma eleição, durante o meu tempo em Nova Iorque, não me deu grandes esperanças de podermos vir a estabelecer relações diplomáticas a nível de embaixada com o governo de Thimphu.

O Butão seguia uma política conhecida como muito restritiva em matéria bilateral, tinha relações com poucos países (o Butão mantinha embaixadas em apenas cinco países e só havia duas embaixadas estrangeiras em Thimphu, a sua capital) pelo que, não obstante ele ir ”envidar esforços” (deve ter usado esta linguagem diplomática típica, que pouco quer dizer) no sentido que eu pretendia, não me podia dar quaisquer garantias, nem mesmo esperanças. Mas não estávamos sós: os Estados Unidos, a Rússia, a China, o Reino Unido ou a França, por exemplo, também não tinham, e continuam a não ter, relações diplomáticas com o Butão.

Saí de Nova Iorque sem ter conseguido o meu objetivo. Ao que constato os cinco colegas que me sucederam na chefia da nossa Missão junto da ONU tiveram idêntico (in)êxito.

Lembro-me bem de um telegrama que enviei para Lisboa, a dar conta do fracasso daquela minha diligência, em que referi (a diplomacia não exclui o humor e as comunicações escritas são, para isso, um veículo privilegiado) que, não obstante os esforços feitos, “não consegui evitar a falta do Butão para fechar o nosso quadro de relações externas”. Escrevi o texto, estou certo, com um sorriso amarelo. Mas não estou certo de que, nas Necessidades, isso tivesse sido muito apreciado.

Há dois dias, numa aula conjunta por “zoom”, numa universidade, ouvi o meu colega Joaquim Ferreira Marques referir que, quando foi embaixador em Nova Deli, tinha fracassado numa idêntica tentativa junto das autoridades do Butão. Senti-me mais acompanhado. 

Mas, diga-se o que se disser, a verdade é que, no quadro da nossa política externa, o Butão continua em falta.

terça-feira, julho 06, 2021

Maria José Nogueira Pinto


A vida é feita de coisas improváveis. Mesmo de amigos improváveis. Sou amigo, vai para meio século, de Jaime Nogueira Pinto. Conhecemo-nos no serviço militar, onde as nossas profundas divergências políticas não só nunca conduziram a homéricas discussões como nos levaram mesmo a construir um insólito patamar de constante diálogo, sempre assente no respeito, no humor e no sabermos rir-nos de nós mesmos. Alguns de quantos nos julgam conhecer nunca perceberam isto, mas nós, sem nunca combinarmos nada, concordamos em não ter de dar satisfações de seita a ninguém.

Foi através do Jaime que conheci a Maria José. Longe iam os anos em que ambos tinham andado pelo exílio, fugidos àquilo que, por cá, eu defendia. Fomo-nos conhecendo melhor, fomo-nos vendo por Lisboa e pelos locais onde a vida me ia levando. Com a habilidade amável de quem se esforça por compreender o outro, acabou por ser com facilidade que gizámos, com a Maria José e com o Jaime, um terreno de sólido entendimento, feito de alguns importantes valores partilhados, que tínhamos por essenciais para a construção daquilo que viria a ser uma bela amizade.

Um dia, chegados a Lisboa, a caminho de um jantar em que eles também deveriam ter estado, a Maria José e o Jaime quiseram falar connosco. Soubémos então das notícias da saúde da Maria José. A partir daí, nos tempos complexos que se sucederam, tudo seguiu um percurso de que, publicamente, algo é conhecido.

Passam hoje dez anos desde que a Maria José desapareceu e, no final de um dia de despedidas e homenagens, a fomos deixar num cemitério do Oeste. Às vezes, o tempo da morte é injusto para as vidas que terminam. Não terá sido esse o caso. A morte da Maria José foi um momento que convocou uma rara comoção, muito para além de algumas barreiras. A dignidade com que ela soube aproximar-se do fim anunciado, na serenidade com que escolheu olhar de frente o destino, marcou, para sempre, a sua imagem, mesmo para quantos a não conheciam.

Neste dia, deixou um forte abraço ao Jaime, aos filhos e a toda a família, especialmente à Maria João.

Andorra e os humores de Sarkozy


Há histórias que só o tempo permite que sejam contadas. Esta é uma delas.

Um dia, ao tempo em que era embaixador em Paris, pediu para me fazer a tradicional visita de cortesia o recém-chegado embaixador de Andorra. Era uma pessoa que já tinha conhecido noutras circunstâncias, pelo que tinha um especial gosto em revê-lo.

Andorra é um dos mais pequenos Estados europeus, encravado entre a Espanha e a França. Há por lá, desde há muitos anos, uma importante comunidade portuguesa. Isso chegou a levar Portugal a abrir um dia uma efémera embaixada na sua capital, Andorra-a-Velha.

Devo começar por confessar que tenho um “fraco” por Andorra. Sempre achei admirável a sabedoria de resistência daquele pequeno Estado, na difícil equação que deve ser a sua relação com os dois poderosos vizinhos.

Esta afetividade vem de longe. Para algumas pessoas da minha geração, a Rádio Andorra foi uma estação que marcou o imaginário, nos anos 60 do século passado. Com uma seleção musical magnífica, nos seus programas em francês e espanhol, a Rádio Andorra, desaparecida em 1981, chegou a ser um marco no panorama radiofónico europeu. A frase "Aqui, Radio Andorra!" é uma das memórias fortes que conservo das madrugadas da minha juventude. Na primeira vez que fui a Andorra, fiz questão de visitar os seus estúdios. Mas, para minha grande desilusão, já não encontrei por lá Maria de los Angeles, a voz maviosa que apresentava os programas que enchiam as minhas noites de Vila Real.

Mas voltemos a Paris e ao colega andorrenho que me visitava. Notei-o um tanto abalado e pouco otimista, nesse início de funções. E, como me revelou, tinha razões para isso.

Dois ou três dias antes, quando apresentava a suas cartas credenciais a Nicolas Sarkozy, este tinha parado em frente a ele e, de uma forma brusca e nada elegante, sob o olhar de todos os outros novos embaixadores, disse-lhe: “Eu não aceito as cartas credenciais de um embaixador de Andorra!” A sala terá gelado. E Sarkozy, antes de consumar o ato de recusa, explicou: “Essas cartas credenciais vêm assinadas por mim. Não as recebo! Não tem sentido!” E passou à frente, deixando o embaixador andorrenho com as cartas na mão e numa situação muito delicada.

Por que razão Nicolas Sarkozy tomara essa atitude? 

Andorra é um país que tem, como chefes de Estado, na qualidade de “co-príncipes”, o presidente francês e o bispo da cidade espanhola de Urgel. É uma decorrência da História, que não cabe aqui desenvolver.

As cartas credenciais são missivas formais que o chefe de Estado de um país remete ao seu homólogo do Estado que vai receber o embaixador, indicando ser essa a pessoa que aí o vai representar. Os embaixadores, se bem que escolhidos pelos governos, são, formalmente, representantes dos titulares máximos dos Estados.

Acontece que o presidente francês acaba por ser chefe de dois Estados. (A rainha britânica também é chefe de Estado de vários países da Comunidade Britânica). E esse “co-príncipe” de Andorra, que não tem poder executivo e só é uma figura formal, deve co-dirigir as cartas credenciais dos enviados andorrenhos a todos os chefes dos Estados onde o governo soberano do país deseje acreditar os seus embaixadores. Como é o caso do chefe de Estado francês. Por acaso, ele próprio! 

Ao colocar em causa, como o fez, a legitimidade do embaixador andorrenho, Sarkozy, com a sua aparente “birra”, estava a questionar a própria existência de uma embaixada de Andorra em Paris - aliás uma das poucas que este país tem no exterior. No fundo, com esse seu gesto, Sarkozy contestava a existência de uma soberania que ocupa um lugar de membro pleno da ONU e que tem um estatuto especial nas suas relações com a União Europeia, embora dela não seja membro - como o não são pequenos Estados como Mónaco, São Marino ou a Santa Sé.

O meu colega ficara bastante abalado com a cena, e tinha razões para isso. O facto dela se ter passado diante de vários colegas tornara-a mais penosa. Como se tinha resolvido o assunto? Depois de uma parlamentação discreta com funcionários do Eliseu, acabou por entregar as cartas credenciais ao serviço do protocolo, assim se sanando o incidente, “fazendo de conta” de que nada se tinha passado e dando as cartas por recebidas.

Dei-lhe, naturalmente, a minha solidariedade e comunguei do comentário de que o comportamento de Sarkozy fora, no mínimo, de grande indelicadeza, independentemente da questão política de fundo. 

Mas fiquei sempre a pensar no assunto. Sabia-se que Sarkozy frequentemente “se passava”, com explosões de fúria, mas, sendo ele um jurista e tendo-o pessoalmente visto atuar em diversas ocasiões, não me parecia pessoa para ter uma leviandade desta dimensão em questões de Estado. A França não é uma “república de bananas”!

Meses mais tarde, relembrei o incidente, durante um almoço, a alguém da estrutura diplomática do Eliseu. A história, como constatei, era amplamente conhecida. E foi-me então dito que o presidente francês fizera aquele “número” deliberadamente, para mostrar a sua irritação com algumas reticências que o executivo andorrenho estaria à época a colocar na resolução da questão dos “paraísos fiscais”, um tema que então mobilizava bastante a França e que levara a uma tensão idêntica com Mónaco. Segundo me foi explicado, a cena que tinha apanhado o meu amigo e colega de Andorra seria, afinal, um “recado” às autoridades do seu país. Seria?

Falar da América


Na série “Atlantic Talks”, “podcasts” editados pela FLAD e dirigidos pelo jornalista Filipe Santos Costa, falamos sobre o tempo de Biden na política americana e a relevância desta nova presidência para os aliados e adversários da América, além de outros temas.

Pode ouvir aqui.

segunda-feira, julho 05, 2021

Déjà vu


Foi num hotel de Tashkent, capital do Usebequistão. A minha passagem por ali, em 2004, como embaixador português junto da OSCE, em Viena, coincidiu com o cocktail de despedida do representante da organização no país. Havia sido convidado para a festa. O ambiente estava divertido, com muitas garrafas a abrirem-se e uma barulheira que se pressentia ir prolongar esse fim de tarde pela noite.

Eu, contudo, não estava disponível para ficar por ali muito tempo. Sentia-me bastante cansado, depois de uma longa jornada. Por aqueles dias, seguindo uma prudente regra que me tinha sido aconselhada em Viena, antes da minha partida para aquelas paragens, para evitar surpresas com as comidas locais, beberricava um pouco de vodka, algumas vezes ao dia, a começar no pequeno almoço! O meu fígado teria ainda de aguentar uns dias mais esse regime, até porque a “receita” estava a funcionar. Companheiros meus de viagem, menos crentes nas virtudes profiláticas da vodka, tinham tido já problemas. Eu evitara-os por completo. Tinha, assim, um alibi íntimo para ir experimentando vodkas, bebida de que gosto muito. Pura, gelada, sem misturas.

Ainda antes de “sair à francesa” da festa, e até para poder comer alguma coisa que me parecesse menos perigosa, fui em busca de um balcão onde servissem uma vodka. Aí chegado, tive o embaraço da escolha. Havia três ou quatro marcas, todas locais, e eu não conhecia nenhuma. (Informo que há magníficas vodkas na Ásia Central!)

Ao meu lado, um cavalheiro, grande e com ar eslavo, apontou para uma das garrafas, para que o empregado o servisse. Perguntei-lhe, em inglês, se aquele era o melhor vodka, ele confirmou e assim iniciámos uma curta conversa. Era russo, empresário, já vivia por ali há décadas, podia imaginar que então com funções menos privadas, desde os tempos em que o Usebequistão fazia parte da União Soviética.

O país mantinha uma boa relação com Moscovo, embora as facilidades militares concedidas aos americanos, para apoio à ação no Afeganistão depois do 11 de setembro, tivessem provocado algumas reticências por parte da Rússia. Mas esse fora o preço pago pela ditadura local para tentar diluir a pressão internacional que se projetava sobre o seu sinistro regime.

O russo com quem eu falava, porém, não comentou nada disso. E o que eu pretendia perceber dele era algo mais simples: como é que a comunidade russa no Usebequistão vivia aquele novo tempo, que tipo de relação mantinha com a sociedade local, depois da mudança ocorrida com a independência do país. E perguntei-lhe pelo seu caso pessoal: como se sentia agora por ali, que expetativas tinha quanto ao seu próprio futuro.

O homem falou-me com o que me pareceu ser uma grande abertura dos novos equilíbrios que a independência induzira. E, a certa altura, disse qualquer coisa como isto: “Nós não sabemos bem como é que isto vai evoluir, não é muito claro se o país vai estabilizar, há várias tensões que ameaçam o regime. Eu vou tentando fazer os meus negócios, mas estou a preparar o meu regresso à Rússia. Já mandei a minha família para lá e eu próprio, mais cedo ou mais tarde, acabarei por juntar-me a ela”.

Ao ouvir aquilo tive, subitamente, um lampejo de “déjà vu”. Onde é que eu ouvira, tantas e tantas vezes, aquele tipo de discurso? 

Não foi preciso fazer um grande esforço para recordar onde: na Guiné-Bissau, em Angola, em Moçambique. Era a narrativa típica dos portugueses que tinham feito as transições do tempo colonial para as independências, que sentiam que o vento estava a mudar, mas que se iam deixando ficar, a “ver onde paravam as modas”. O discurso de quem transitava do “tempo do colono”, como se diz na África portuguesa, para as novas e frágeis independências, era, afinal, muito parecido, naquele imenso  espaço que resultara da implosão do mundo soviético.

Queijos

Parabéns ao nosso excelente queijo!  Confesso que estou muito curioso sobre o que dirá a imprensa francesa nos próximos dias.