sábado, julho 10, 2021

O paralelo 38, Britney Spears e um embaixador bem disposto


Em 2003, quando representava Portugal na OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa), em Viena, fui convidado pelo governo coreano para pronunciar, em Seul, uma conferência sobre um tema que pode parecer algo etéreo para os leitores deste blogue: "OSCE's confidence and security bulding measures".

Essa tinha sido uma especialidade que eu entretanto desenvolvera na minha involuntária "osceosidade" vienense. A organização, sem que daí decorresse o menor encargo para o Estado português (importante!), ofereceu-se para custear a minha deslocação como palestrante a vários seminários internacionais sobre questões de defesa e segurança - da Polónia ao Casaquistão, do Egito ao Japão, da Itália à Jordânia.

Tratava-se de transmitir a experiência ganha pela OSCE, em matéria de diálogos políticos "geradores de confiança", em situações pós-conflito (ou, mais raramente, de prevenção de conflitos), com vista a operações de "learning lessons", neste caso para tentar aplicar essa experiência no quadro da tensão "sul-norte", que prevalece nas Coreias desde o confito dos anos 50. 

Estava-se então no tempo de alguma esperança nos esforços feitos no âmbito dos "six-party talks" (conversações entre as duas Coreias, com inclusão da China, da Rússia, do Japão e dos EUA), para tratar o sensível problema nuclear norte-coreano.

O debate em Seul havia sido extremamente interessante e instrutivo, em especial para melhor perceber a peculiar atitude chinesa (e também russa) no processo, bem como para definir as distâncias estratégicas, muitas vezes pouco percebidas mas bem presentes, entre a Coreia do Sul e os Estados Unidos. Estas diferenças ficaram mais claras ao tempo do envolvimento de Trump na questão coreana.

À parte o seminário, houve a possibilidade de uma deslocação, entre o turístico e o político, ao histórico "paralelo 38", a linha divisória do trágico conflito entre as duas Coreias. Sendo a fronteira mais tensa do mundo, há em seu torno uma espécie de grande "teatro", alimentado pelos sul-coreanos e pelas tropas norte-americanas presentes no local, com óbvia cumplicidade dos coreanos do norte. 

Visitaram-se túneis e postos de observação, de onde se podia ver uma gigantesca bandeira norte-coreana e, através de binóculos, se detetavam, como figuras raras, militares das tropas do outro lado. Foi-se até à sala das históricas conversações norte-sul, bem como ao limite de uma linha de comboio interrompida há muitos anos, pela Coreia do Norte, tendo-nos sido mostrada uma moderna e completamente deserta estação de onde, como nos foi dito, se um dia houver paz e tiver acabado o bloqueio da fronteira, um comboio poderá partir numa longa viagem euro-asiática que irá acabar em... Paris, tido num grande mapa como o extremo ferroviário ocidental da Europa. A uma observação minha, sobre a razão pela qual essa linha mirífica não prosseguiria até Lisboa, desencadeei nos meus interlocutores sul-coreanos um imediato e preocupado nervosismo, com imediata promessa (!) de irem pensar na racionalidade do mapa. A extrema lógica asiática tem destas coisas...

Mas, no local, há outras "lógicas", tão ou mais complexas do que esta. Um dos pontos da agenda incluía um "briefing", feito pelas tropas americanas aí estacionadas, sobre a situação na linha de fronteira. 

Convém que se diga que, para a Coreia do Norte, mantém-se formalmente em guerra com os EUA. O oficial americano parecia uma caricatura cinematográfica, com um típico corte de cabelo paralelipipédico, que lhe dava um ar involuntariamente divertido. O seu discurso estava recheado de "clichés" da vulgata da "Guerra Fria" revisitada (ao tempo da minha visita preponderava em Washington o senhor George W. Bush), que divertiram imenso o pequeno auditório, recheado de especialistas internacionais que tinham das coisas do mundo alguma sofisticação. 

Recordo-me de nos ter sido explicado, com detalhes biográficos e curiosidades pormenorizadas, muito orientadas para um auditório turístico, quem era o lider norte-coreano Kim Jong-Il, pai do atual, Kim Jong-Un -  que nisto de nomes os coreanos do norte são pouco criativos. As restantes informações relevavam de uma espécie de versão para atrasados mentais da série editorial "The complete Idiot's guide", ideologicamente revista pelas Seleções do Reader's Digest nos anos 50. 

A certa altura da palestra, o militar contou que, todas as manhãs, grandes altifalantes emitiam, em direção ao sul, hinos e canções patrióticas norte-coreanas, que faziam já parte da rotina dos dias no local. Porque o "briefing" estava a ser uma maçada de que todos pareciam querer ver-se livres, quando, no fim da preleção, nos interrogou sobre "any questions?", registou-se um silêncio esmagador e de alívio. 

Foi então que decidi, para espairecer o ambiente, "quebrar a loiça" e, com uma falsa ingenuidade, perguntei: "Os hinos e as canções patrióticas são, como nos disse, a regra dessas emissões matinais. Gostava que me respondesse a uma questão: qual seria a sua reação se, numa dessas manhãs, em lugar desse tipo de músicas, os altifalantes norte-coreanos transmitissem uma canção de Britney Spears?". 

O homem bloqueou e olhou-me siderado. Acrescentei: "Não deixaria de ser significativo, se isso acontecesse! Que tipo de conclusões políticas retiraria do facto? Que tinha havido um golpe de Estado na Coreia do Norte?". O militar americano ficou muito sério, fixou-me de uma forma pouco simpática, pousou a varinha com que apontara o "power-point" e disse: "The briefing is over". Uma onda de gargalhadas, mas apenas dos visitantes estrangeiros, ecoou na sala. Decididamente, o humor não é a atitude mais apreciada nas zonas tensas de conflito.

Lembrei-me disto há pouco, ao ler um artigo de jornal, triste e patético ao mesmo tempo, sobre a vida trágica de Britney Spears, uma cantora que mobilizou multidões e que hoje, ainda jovem e perturbada, arrasta pelos tribunais uma vida e uma carreira inexoravelmente decadente.

Quando revelei que estava a pensar escrever sobre isto, alguém, ao meu lado, sugeriu: “Devias falar do outro Paralelo 38!”. E fez-se-me luz! Claro que sim! Boa lembrança é recordar o belo lugar de peixe, no centro de Loulé, o “Paralelo 38”, onde o Abilinho, nos idos de 80, não nos deixava sair ser provar uma aguardente de medronho, que nos trazia pelas mesas. Mas isso são outras guerras! 

3 comentários:

António Barata disse...

Caro Embaixador, já não me lembrava do nome do restaurante embora recorde várias vezes a excelência do peixe grelhado que lá comi, assado numas brasas na lareira, já lá vão quase 30 anos! E, claro, o medronho, figos e nozes no final.

Luís Lavoura disse...

Paris, tido num grande mapa como o extremo ferroviário ocidental da Europa. A uma observação minha, sobre a razão pela qual essa linha mirífica não prosseguiria até Lisboa

Porque, que eu saiba e me recorde, em Paris a estação ferroviária de onde se parte em direção à Alemanha e a Leste é diferente daquela de onde se parte em direção a Sul e a Portugal.

Jaime Santos disse...

A escolha da foto é deliciosa. Do bocejo do soldado, presume-se que os norte-coreanos estariam a escutar a distância o vosso briefing, sabe-se lá por que meios. Ou seria uma ordem de ataque enquanto todos na sala dormiam?

A piada sobre a 'military intelligence' ser uma contradição nos termos é um pouco injusta, mas a ironia não é mesmo o forte entre casernas...

Sai um Kennedy!

Kennedy na equipa de Trump! Ouviram-no durante a campanha? Tudo isto pode vir a ser dramático, mas lá que vai ter piada de observar, lá isso...